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Cinema de Fernando Lopes Eduardo Paz Barroso

No documento Filmes falados (páginas 115-117)

Resumo: Este ensaio abordará alguns aspetos da relação entre cinema e literatura na obra de Fernando Lopes: em que medida alguns dos filmes do realizador filmam a literatura como objeto, em vez de se limitarem a uma adaptação de romances. Ou então como funciona a ideia de tradução visual a partir de um código literário e romanesco assente numa “biblioteca pessoal”. A fixação do realizador em romances de Carlos de Oliveira, José Cardoso Pires ou António Tabucchi remete para uma teia de cumplicidades estéticas que perspetivam novas relações entre o cinema e a vida, quer no contexto do Cinema Novo Português, quer também na maturação de uma filmografia que se ocupou de forma original das coincidências e divergências entre a existência e o visível, entre o enquadramento e a montagem. Trata-se também de um contributo para a evocação de Fernando Lopes, assumindo que o seu desaparecimento convida a um recuo face a uma geração de cineastas cujo legado ainda se encontra, em muitos aspetos, verdadeiramente por estudar.

Palavras-chave: Abelha na Chuva; Delfim; adaptação.

Quem se interessa por cinema sabe que a obra de Fernando Lopes (1935 - 2012) possui uma identidade rara, uma perfeição à procura de si própria, e por isso nem sempre consumada, mas determinante para fazer viver as imagens numa plenitude ontológica a que sempre associamos este cineasta. É um facto que nem todos os realizadores da geração do Cinema Novo português evoluíram esteticamente em direcção a uma maturidade talhada com preocupações de Autor. E neste caso, falar de um Autor, é sobretudo considerar uma certa maneira, excessiva,

1) Nota dos editores: por decisão do seu autor, este texto não respeita o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

2) Professor Catedrático de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa e investigador do LabCom, Universidade da Beira Interior.

de estar no cinema, de pensar através dos filmes, de criar uma comunidade de personagens, reais e ficcionais ligadas entre si por afinidades literárias. Fernando Lopes soube espelhar uma amizade saudavelmente misturada com a ética das cumplicidades, e protagonizar sem vedetismos momentos históricos do cinema e do audiovisual português.3 Nesta filmografia encontra-se o rigor de uma entoação visual e a exigência em fazer aparecer o que a câmara não quer e não pode ignorar ou evitar. Dela se desprende uma intensa propagação poética. E não é fácil encontrar uma hierarquia de valores susceptível de distribuir os filmes numa esquematização crítica. É certo que alguns foram mais emblemáticos do que outros. Uns melhores, outros nem tanto. Meia dúzia deles, numa obra que ronda as três dezenas (entre curtas, documentários e longas de ficção) foram suficientes para o tornar num realizador inconfundível. Pode dizer-se que tais filmes (sobretudo os considerados neste texto) transportam a sua impressão digital ao longo do tempo. E nesse núcleo mais restrito, a literatura como questão colocada ao cinema torna-se preponderante. Fernando Lopes filma palavras com uma grandeza de carácter que deixa intacto o poder delas convocarem o interlocutor. E filma Lisboa como objecto exclusivo, tratando a cidade como se fosse, também ela uma palavra cheia de ressonâncias e vislumbres.

“Um túnel escuro que conduz a um rectângulo de luz branca”. Esta frase retirada de uma crítica de José Vaz Pereira publicada no Jornal de Letras e Artes por ocasião de estreia de Belarmino (1964: 13 - 14) simboliza aqui uma ligação umbilical entre palavras e imagens revelada na singularidade do cinema de Fernando Lopes. A sua obra oferece-nos, com efeito, uma das mais densas abordagens da relação entre literatura e cinema, a qual constitui um tema essencial de toda a reflexão fílmica.

3) A dimensão biográfica de Fernando Lopes está recheada de conteúdos romanescos, traços que no seu caso, acentuam uma dimensão consideravelmente superior à da generalidade dos realizadores da sua geração. Daí que tenha pleno cabimento falar-se, como o faz Jorge Leitão Ramos (2012) da necessidade de uma “biografia à americana”, daquelas que reúnem imenso material, vasculham arquivos esquecidos, recolhem resultados de entrevistas inumeráveis, descobrem pessoas de quem nunca ninguém se tinha lembrado, mas que acrescentam um pormenor de grande impacto a adensar o conhecimento do biografado. Infelizmente (ainda) não dispomos dessa biografia. Mas nem por isso diminuiu o valor lendário deste criador, muito íntimo da literatura, e com a sua própria versão da história do cinema. No fim da vida, tragicamente ciente de si próprio e de uma impossibilidade em continuar, parece mesmo que quis perder, como só ele sabia, em câmara lenta.

Não foi por acaso que Truffaut num dos textos mais programáticos da Nouvelle Vague, Une certaine tendence du cinema français (1954), reagiu ao que qualificava como “filmes de argumentistas”, e discutiu a questão da adaptação do texto literário ao cinema. No fundo, a discussão remetia para a importância do realizador, logo do Autor e para a autonomia do texto fílmico. Truffaut, importa recordar neste contexto, mostrava-se convicto de que um romance não contém “cenas impossíveis de serem filmadas” (Barroso, 2002: 221). Em certa medida parte da obra de Fernando Lopes comunga deste espírito, desde logo ao entender a literatura através de uma percepção contemporânea que a desinstitucionaliza. E ao partilhar a ideia de que um filme adaptado de um romance constitui uma leitura, mais do que uma versão visual da narrativa. Nessa medida, o realizador valoriza um trabalho de tradução e transposição semiótica onde o argumento, a direcção de fotografia ou direcção artística, concorrem para uma finalidade autoral que, em última análise, se foca num romance em concreto, filmando-o como se pode filmar um corpo, uma paisagem, ou uma cidade. Afinal, três objectos de eleição constantes nas várias histórias do cinema, e sempre sujeitos às modulações do olhar e à inteligência com que os realizadores de excelência constroem uma visão do mundo, surpreendendo-o como fenómeno.

No documento Filmes falados (páginas 115-117)