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Arena, Mauro e a periferia da cidade

No documento Filmes falados (páginas 151-157)

Em Arena (2009), o protagonista Mauro vive em prisão domiciliária no Bairro da Flamenga, em Chelas. Como forma de ganhar algum dinheiro, mas também

13) Andrade, J.N. de (Coord.) (1996). Entrever Fernando Lopes (Depoimento a Manuel Costa e Silva). Fernando Lopes Por Cá, (p.76). Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.

de passar o tempo, Mauro faz tatuagens a ele próprio e aos miúdos do bairro. O momento de rutura acontece quando o Alemão invade o espaço que Mauro habita, culminando numa cena de agressão e roubo.

05. Fotogramas, Arena [1’25; 1’49; 3’48]

A narrativa constrói-se no espaço, plano a plano, “tijolo a tijolo, (…) como uma espécie de deambulação entre um espaço e outro.”14 Mauro, que

aparentemente se encontra num espaço fechado em si mesmo, sem pontos de fuga, preso por uma espécie de sombra que paira sobre ele e que lhe cria um mundo encerrado e intransponível, tem este sentimento de angústia que o impele à constante procura de momentos de evasão. Por isso são criados muitos instantes em que a personagem se escapa. Momentos que depressa se encerram. Pequenos nichos urbanos, que podem passar por uma janela ou o topo de um edifício.

No primeiro plano, Mauro surge enclausurado no espaço da sala. O enquadramento condiciona o seu corpo ao sofá. A personagem procura o único recanto em que o sol bate para se deitar, e por isso esse corpo que está preso ao espaço molda-se a ele encontrando um pequeno retiro que lhe permite, apenas por breves segundos, um instante de evasão. Mas este momento é efémero e por isso depressa termina.

No plano seguinte, somos confrontados com outra realidade – “Oh Fábio leva-me aí o lixo (…) vá lá, não te peço mais nada!” [Diz Mauro] – a relação com o bairro é criada pela personagem através dos diálogos que são feitos com o exterior. Mauro adquire uma certa liberdade dentro do espaço que habita ao condicionar a posição do espetador. A câmara não sai de casa enquanto a personagem não o

faz, por isso, as primeiras cenas do filme vivem de uma relação que se constrói a partir do som e de projeções daquilo que a personagem vê através das grades da janela. Mauro permite-se à liberdade imposta pelo inconformismo que nasce relativamente ao espaço, mas também em relação ao mundo tal como ele existe. Por isso procura formas de contornar a clausura a que está condicionado. Nesse sentido a metáfora da janela com grades, como única forma da personagem se relacionar com a realidade exterior, está também presente na própria figura de Mauro, já que é unicamente através dele que o espetador toma conhecimento da realidade que está para além das quatro paredes. A forma como o espetador é colocado em última instância, na relação entre a cidade, a personagem (Mauro) e a câmara, intensifica a ideia de aprisionamento ao espaço. Mas nos planos seguintes esta hierarquização de posições revela-se transitória.

“Anda cá fora, sai da gaiola vá!” [Ameaça o Alemão] – Mauro fecha a cortina permanecendo no seu refúgio. Como consequência, a sistematização dos espaços é quebrada. A liberdade encontrada por Mauro na sua esfera privada é corrompida pela realidade exterior do bairro através da personagem do Alemão e das outras duas figuras que invadem a sua casa. A desintegração do espaço privado serve de justificação para o momento de rutura em que Mauro quebra a prisão domiciliária, liberta-se da sua pequena caixa e transpõe-se para uma outra de maiores dimensões.

06. Fotogramas, Arena [5’27; 6’49; 7’11]

A intimidade que existia no espaço claustrofóbico a que estávamos confinados dissipa-se no momento em que somos colocados pela primeira vez no exterior. O espetador confronta-se com um movimento de recuo

relativamente à personagem. O enquadramento confere a distância necessária para que se evidencie a geometria do espaço. Mauro adquire uma espécie de desafogo espacial que se dissipa no plano seguinte. O enquadramento evidencia a inflexibilidade do espaço relativamente à personagem. O contraste luz-sombra confina a personagem a uma pequena silhueta. A tensão imposta pela estrutura do bairro impele Mauro a avançar. O ritmo aumenta e, num movimento de travelling, assistimos à sua fuga.

Em Arena, a cidade é explorada como um organismo vivo que adquire múltiplas valências, que cria e retira momentos de evasão, e não como fundo, imparcial e estático. Segundo João Salaviza15,

O cinema tem sempre esse desejo por concretizar, de capturar a iminência das coisas, o seu momento concreto. E vive muito essa impossibilidade, porque tudo está vivo em frente da câmara. Acho que passa muito por isso... quero falar de espaços que estejam vivos, que tenham cicatrizes e que projetem qualquer coisa para a frente.

07. Fotogramas, Arena [7’19; 7’23; 8’20; 8’37; 8’49; 9’10; 9’48]

Por isso somos confrontados com dois espaços estruturalmente opostos que anunciam o ponto de mudança na narrativa. Estamos portanto a referirmo-nos

à cena onde a personagem percorre um corredor que culmina numa estrutura regular e retilínea através da qual Mauro surge cercado por uma espécie de quadrado. O enquadramento coloca a estrutura do edifício de uma forma estável fazendo referência à estagnação de que o próprio Mauro é vítima. O desequilíbrio é representado pela colocação da personagem no limite inferior do plano, aliado ao movimento descendente que a câmara executa. Mauro baixa a cabeça. O sentimento de angústia está patente em todo o enquadramento.

Mas, como se trata uma pequena revolução, Mauro insurge-se e logo a seguir a tensão aumenta. A composição equilibrada e estática é substituída pelo movimento que as linhas circulares representam. O quadrado dá lugar a uma espiral. Em oposição ao movimento descendente observado anteriormente, Mauro ascende ao topo de um edifício.

Segundo João Salaviza16, “O Arena é, aparentemente, a história de um tipo que quer recuperar uma nota de vinte euros e vingar-se de um miúdo, mas na verdade, todo aquele caminho é um caminho de libertação com ele próprio.” Trata-se portanto de um percurso na periferia da cidade, de um espaço interior para o exterior, uma viagem de um corpo que se deseja libertar, ou melhor, “uma espécie de catarse feita através de um corpo preso”17. Essa liberdade vai-se construindo e desconstruindo em cada espaço. Em Arena vive-se desse movimento que está constantemente a ser feito entre o espaço urbano e a personagem que está na eminência de se libertar, mas simultaneamente essa experiência de liberdade é feita de uma forma fugaz e efémera, como se de algo frágil se tratasse.

08. Fotogramas, Arena [10’48; 12’57; 14’09]

16) Entrevista realizada pela própria ao realizador João Salaviza. Lisboa, 29 de Setembro de 2012. 17) Ibid.

A metáfora da espiral constrói uma espécie de suspensão na narrativa. O movimento circular coloca Mauro numa espécie de purificação que culmina com a fuga concedida ao Alemão em simultâneo com a sua própria libertação. O enquadramento coloca, pela primeira vez Mauro numa posição de superioridade relativamente ao espaço urbano que o rodeia, e num ato de exaltação a personagem urina sobre a cidade, entregando-se “à luz, como se fosse devorado por ela nesse final distópico de Arena”18.

Conclusão

Belarmino Fragoso, campeão nacional de pugilismo, mas também engraxador, humilde e marginal, surge em Belarmino desconstruído na cidade de Lisboa, sendo inevitável ao espectador seguir a sua deambulação pelos sucessivos espaços para a compreensão do mundo interior desta personagem. Em Arena, Mauro vive em prisão domiciliária, no Bairro da Flamenga, em Chelas. Cingida a quatro paredes, mas também condicionada à sua forma de ver o mundo, esta personagem partilha com Belarmino uma espécie de angústia claustrofóbica. Entre Belarmino e Arena está a distância de quarenta e cinco anos capaz de imprimir uma ideia de rutura entre as duas personagens e as duas obras. João Salaviza explica:

(…) Porque até há uma correspondência entre aquele período e o que vivemos agora: um desencanto, um desgaste de modelos de vida e de modelos de política. (…) Há um legado muito forte, desse cinema dos anos 60, que impôs uma ideia de liberdade.19

Mas esta rutura é somente ilusória, na medida em que estas duas personagens são assombradas pelo mesmo medo de clausura, de aprisionamento ao espaço

18) Câmara, V. (2012, 9 de Março). João Salaviza, o menino dos ouros do cinema português. Ípsilon, p. 8.

19) Câmara, V. (2012, 9 de Março). João Salaviza, o menino dos ouros do cinema português. Ípsilon, p.11.

urbano, mas também o medo pela liberdade que lhes é efémera. Belarmino e Mauro lutam contra a cidade que os aprisiona, mas também contra os seus fracassos. Trata-se, por isso, de um percurso que é feito pelos sucessivos espaços, uma viagem da escuridão para a luz à procura de uma possibilidade de fuga, mesmo que isso signifique um fugaz momento de evasão.

Por isso a suspensão da narrativa transversal a ambas as obras, mas também o simbolismo patente no elemento grades colocam o espetador na dúvida sobre a sua posição relativamente à personagem. Mas também relativamente à posição que a mesma ocupa em relação ao espaço urbano. Por isso fica a dúvida: de que lado do gradeamento está colocada a personagem? As grades funcionam como um elemento de aprisionamento ou de proteção relativamente ao mundo que rodeia a personagem?

No documento Filmes falados (páginas 151-157)