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Introdução acerca da inversão proposta pelo autor

No documento Filmes falados (páginas 81-84)

Mauro Luciano Souza de Araújo1

Resumo: O épico, em Glauber, foi remontado à sua maneira, ganhando tonalidades bem particulares de características modernas. A saber, mais irônica, fragmentada, descontínua e violenta; mais crítica que elegíaca – e por essa razão o elemento primitivista parece assumir caráter civilizatório no contexto dependente cultural e econômico. A diferença, a ser buscada na comunicação que se projeta aqui, é a da revitalização de teores regionalistas e populares propostos pelo cineasta, remontados à altura da arte religiosa do medievo, numa avaliação híbrida da cultura importada pela própria imageria do cinema norte-americano em sociedades aquém do know how tecnológico – como se configura a geopolítica do Norte-Nordeste brasileiro e sua recepção e relação com culturas exteriores.

Palavras-chave: Género; personagem; épico; pós-colonialismo; cânone.

O poema épico é gênero da literatura que, de maneira natural, vem a ser adaptado às narrações cinematográficas no momento em que a cultura audiovisual já se estabelecia entre as plateias mundializadas. Sabe-se, após os gêneros virtuosos da indústria terem seu êxito, da observação feita por André Bazin (1991: 199 - 208) sobre o western norte-americano e de como neste tipo de filme houve um perfeito encaixe do filme histórico ao receptáculo da linha romântica adaptada. Em específico, o estilo norte-americano não se encaixaria somente

1) Graduação em Comunicação com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe - UFS (2006). Especialização em Filosofia pela mesma universidade (2008) e mestrado em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos, UFSCar (2010). Crítico de cinema, videasta, professor universitário substituto no BI de artes em Cinema da UFBA - Universidade Federal da Bahia. mauro1luciano@gmail.com

em uma linha dos conhecidos épicos monumentais de adaptações bíblicas e históricas. Porém, aspectos como a deambulação do herói, o que se pode chamar de peregrino americano (pilgrim), e ornamentação da narrativa em torno da história ali se fincavam como conteúdos fortes da criação de personagens próprias da poética considerada antiga. Melhor se sabe, hoje, da variação que este gênero épico conseguiu ter, com todos seus personagens e paisagens – protagonistas e estruturas sociais históricas –, e como ele sofreu essas modificações até o momento pós-moderno2 do filme mundialmente comerciável em obras como Star Wars e seus derivados, tal como confirma Frederick Jameson.

Aqui neste artigo houve a escolha de uma análise, como se vê no título, “a partir” de obras do autor Glauber Rocha, cineasta nascido na Bahia, estado brasileiro, que traduziu muitos códigos europeus ao espectador nacionalista de sua época, e vice-versa. Também na sua crítica compilada em livros como O Século no Cinema, A Revolução do Cinema Novo, ainda que eqüidistante entre impulsos revolucionários e modos de produção, o épico foi elaborado com tamanha inflexão que espanta a raridade de estudos sobre tal ponto. A pretensão aqui é partir do autor e seu trabalho. Não somente por haver uma bibliografia já muito vasta publicada sobre o mesmo no Brasil – inclusive em tingimentos diferentes. Glauber Rocha surge aqui como um movimentador social possuidor de ideias bem comuns à sua geração, uma espécie de catalisador de uma discussão que havia em sua época, e que por isso, manifestou em alguns outros autores uma espécie de influência. Também, este articulador social à maneira do modernista Oswald de Andrade, com seus manifestos – no momento com repercussão internacional dos textos –, elaborou um quadro vanguardista, fragmentário, compartilhado com uma memória que não se coadunava totalmente à história ocidental de uma estética hoje chamada eurocêntrica em que alguns modelos narrativos são seguidos.

A centralidade se coloca nas generalidades do épico adaptado, ou invertido, por este autor, assim como as congruências acerca deste gênero de sua geração.

2) Cf. Jameson, F. “Para a crítica do jogo aleatório dos significantes”. In. Pós-Modernismo – a

lógica cultural do capitalismo tardio (2004: 48 - 64). O autor elabora a ligação epistemológica

entre a história e a produção cultural contemporânea, em alguns momentos explicando como o épico serve à lógica cultural deste momento.

Tal conceito de gênero é herdado de uma longa história deste tipo de poesia e narrativa no cerco do ocidente, e foi realocado pelo autor – e encampado pelos demais cineastas independentes que se inseriam no modelo de subvenção e apoio estatal, em fins da década de 1960.3 Bom lembrar que, em se tratando de um formato estilístico que é legado da literatura dado ao cinema, distinções de natureza de produção e linguagem devem ser pontuadas numa linha condutiva que se percorreu apenas após a instituição dos filmes que encontram elementos épicos. O Cinema Novo, e Glauber Rocha, devem a essa linha, que começa com o êxito internacional dos filmes O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953) e O Pagador de Promessas (Anselmo Duarte, 1962). Desta forma, o entusiasmo visto em filmes do Cinema Novo, cujo movimento Glauber ajudou a construir, não tinha intenções gratuitas. O percurso escolhido de ligação de relações próximas com organismos estatais e as articulações de grupo dá aos filmes do movimento o caráter nacionalista próprio que se demandava em diálogos flexionados entre a arte cinematográfica e o estado autoritário da época, diálogo que ajudou ao surgimento importante do organismo de subvenção da Embrafilme, que patrocinou por mais de duas décadas praticamente todo o cenário de produção hegemônica de cinema no Brasil. Este também foi um dos intentos da produção cinemanovista – a industrialização do audiovisual através do desenvolvimento do mercado interno. Tendo este panorama oficial sido posto após 1968, certamente os filmes, conforme já foi bem exposto por Ismail Xavier (1993), teriam seus temas, sob o épico, ou sob outros formatos estilísticos menos entusiásticos, relacionados ao momento de cerne de uma industrialização do audiovisual. Assim que, com o distanciamento proposto por uma estética visivelmente devedora aos filmes europeus mais contestadores das décadas de 60 e 70, o Cinema Novo já tinha sua notação filmográfica associada à estética de um Terceiro Cinema – latino-americano e fora dos padrões standard propostos pela indústria audiovisual norte-americana. Desta maneira se dava a luta por bilheterias em um panorama já moderno de produção e de recepção dos filmes,

3) Cf. Sarno, Geraldo. Glauber Rocha e o Cinema Latino-Americano (1994). Neste livro Sarno indica a crítica que Glauber faria ao neo realismo italiano como paradigma estético do cinema independente brasileiro elencando justamente o épico como fuga e apontamento ao cinema que seria produzido durante o período autoritário, década de 1970.

e a indumentária que acrescentamos aqui, como uma formalização narrativa, se estabelecia com a devida distância ao cânone estabelecido pela épica tradicional – a saber, a roupagem escolhida aqui no Brasil foi a da paródia. Vejamos em que medida as narrativas contemporâneas deram campo a esse tipo de elementos usados nos enredos brasileiros, e qual a contribuição de Glauber Rocha a este panorama.

No documento Filmes falados (páginas 81-84)