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O retorno de Antônio das Mortes

No documento Filmes falados (páginas 95-97)

No filme citado de 1969, ganhador do prêmio da crítica em Cannes, Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, Antônio das Mortes volta a figurar a narrativa. Também o cangaceiro, sob o nome de Coirana. O distanciamento do medievo se dá pela inserção do personagem moderno, o professor – intelectual com trejeitos bastante semelhantes ao próprio autor, Glauber, interpretado pelo brechtiano Othon Bastos. Fica clara a intenção didática do épico, mas nem tanto a irônica. Antônio das Mortes é, antes, uma figura que adorna o tipo vanguardista do autor:

O tropicalismo, a descoberta antropofágica, foi uma revelação: provocou consciência, uma atitude diante da cultura colonial que não é uma rejeição à cultura ocidental como era no início (e era loucura, porque não temos uma metodologia) (...) Tropicalismo é aceitação, ascensão do subdesenvolvimento; por isto existe um cinema antes do tropicalismo e depois do tropicalismo. Agora nós não temos mais medo de afrontar a realidade brasileira, a nossa realidade, em todos os sentidos e a todas as profundidades. Eis por que em Antônio das Mortes (O Dragão da

Maldade...) existe uma relação antropofágica entre os personagens: o

professor come Antônio, Antônio come o cangaceiro, Laura come o comissionário, o professor come Cláudia, os assassinos comem o povo, o professor come o cangaceiro. (...) Esta relação antropofágica é de liberdade. (Glauber in Pierre: 144)

Como pode a crítica conviver com a aceitação? A chave que fica é a do sonho, do absurdo, do abismo longe da racionalidade, do surrealismo de Buñuel, por exemplo. Sem deixar de expressar certa melancolia com a aderência, a cena destacada por Ismail Xavier em sua tese sobre o subdesenvolvimento como

estética pós-68, Antônio das Mortes anda por entre logomarcas de grandes empresas multinacionais de refinarias petrolíferas, desistindo em tonalidade aguda e bem brasileira de sua tarefa de perseguição ao povo. Ele, então, junta-se à metáfora do autor – o professor –, e arma-se para o final redentor extremamente aderente ao que se esperava do western glauberiano. Ao fundo, ouve-se a trilha Volta Por Cima, de Paulo Vanzoline, pontuando a ironia.

Se a carnavalização havia sido, por um bom tempo naquele andar do Tropicalismo, uma saída para o entendimento mais “realista”, ou mais verossímil dos problemas brasileiros, ela vem a ser a paisagem mais importante da adequação do audiovisual e da importação de um tipo de exotismo calcado em imagens grotescas, mulheres e orgias prometidas, festa intensa ao turista branco. Desta maneira a caricatura de um realismo grotesco toma um padrão realizado pela TV, adotado como o jeito brasileiro de se encarar adversidades, e de se criar uma indústria cultural. Este mesmo carnaval, ou esta mesma carnavalização que tinha tonalidade irônica, de inversão popular de festas tidas como de elite, tornara-se o símbolo nacional de visita visual do Brasil contemporâneo – não sendo o mais forte, ao menos como um dos mais fortes. Citando Oswald Spengler e sua obra A Decadência do Ocidente, Ismail Xavier chega a uma conclusão sobre este panorama incitado pelo último filme de Glauber, Idade da Terra.

A crítica da cultura, em Glauber, envolve outras variáveis; sua armadura cristã-popular o afasta de um Spengler, por exemplo, e o teor proclamadamente não eurocêntrico do seu sincretismo confere outro teor à esperança. No entanto, não impede que esta termine na hipótese do Messias, supondo enfim uma sobrevida para o ciclo civilizatório apoiado nas premissas do Ocidente Europeu. (Xavier, 1998: 178)

Ao citar Pasolini, numa narração voice over em Idade da Terra, Glauber reconhece querer revitalizar a figura de Cristo sob essa armadura popular citada por Xavier. O problema da cisão fica mais complicado, portanto, numa provável crítica ao cânone proposta pelo estilo descaracterizado da narrativa fílmica. Estaríamos, portanto, diante de um grande ensaio sobre uma história, aliando mitos ao conhecimento popular de tal festividade mencionada. No filme, Glauber

chega a seu ápice em dilaceramento, deixando o filme sem linha condutiva. Isto já era previsto em seu filme italiano, Claro, mas sem a problemática épica apontada como sítio do poder e da citada autoridade ordenadora. Brahms, sobretudo, vivido por Maurício do Valle novamente, tem a figura grotesca de um grande especulador norte-americano, imperialista segundo a sinopse, ecoando algo que foi deixado para trás por Antônio das Mortes – porém, a sua decadência no sentido mais histriônico possível. Lendo este personagem como um vetor comunicativo de Glauber em relação ao cinema como instituição comercialmente aportada na dianteira de uma indústria norte-americana. Se Antônio das Mortes fosse mesmo personagem de um western, certamente Brahms, misto da etnia dominante do império atual, teria sua caricatura relacionada a este caráter.

Ainda que procuremos um épico tradicional em Idade da Terra ele certamente não terá lastro algum no filme. Se anteriormente, no grupo cinemanovista, Glauber conseguia dialogar com os demais cineastas a respeito de um movimento entusiástico de industrialização nacional do cinema, em seu último filme, sozinho, expressa apenas o que se chamou de “mítica da decadência” geral. Uma adesão integral ao esquema comercial, às estruturas formais propostas pelo comércio de massas, à ordem de uma história contada ainda no modelo da sutura e dos aparatos invisíveis, de uma montagem da ação e do melodrama dominante. O grotesco deste último filme destoa firmemente das produções de sua época, e o filme fica mal compreendido por décadas – inclusive pela crítica. Como intervenção, Idade da Terra mostra um tipo de arte perseguida por poucos no Brasil, e, principalmente, uma discussão sobre o gênero épico ainda fértil em prolongamentos.

No documento Filmes falados (páginas 95-97)