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Belarmino, Belarmino Fragoso e o centro da cidade

No documento Filmes falados (páginas 145-151)

Obra de estreia de Fernando Lopes na longa-metragem, Belarmino (1964) é, a par de Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963), frequentemente considerado como obra de arranque do movimento de renovação Novo Cinema. Belarmino Fragoso, protagonista de Belarmino, personagem dele próprio, antigo campeão nacional de pugilismo, guarda-costas, engraxador de sapatos, colorista, é também, prisioneiro dos seus mitos, da sua imagem e do seu fracasso.

Metáfora de um país, Belarmino Fragoso descobre na mentira uma forma de encobrir a vida marginal que leva, mas também a fuga a uma cidade que o oprime, que o impede de vencer e de ser campeão11. E nesse sentido, Belarmino é um filme sobre um condenado que se vê constantemente confrontado e perseguido pelos infortúnios da vida, mas que pensa ser livre.

Sobre o filme de Fernando Lopes colocam-se algumas dúvidas relativamente ao seu género e a sua relação com o cinema-verdade. A obra, que não se insere num registo essencialmente ficcional, mas pelo contrário faz a sua revolução estética percorrendo os caminhos contíguos do documentário (Areal, 2008), não

causa dela que as câmaras ligeiras são fabricadas, as Nagra, por exemplo.” (Andrade, J.N. de

(Coord.) (1996).Entrever Fernando Lopes (Depoimento a Manuel Costa e Silva). Fernando Lopes

Por Cá. Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.)

11) Segundo Fernando Lopes (p.40), “Eu ia portanto com uma análise quase clínica do caso ‘Belarmino’. E a certa altura apercebi-me que o Belarmino, à sua maneira era uma espécie de metáfora do país que nós éramos naquela altura, isto é, um país fechado, abafado, e com a ideia de que cada um de nós podia ser campeão se nos deixassem ser campeões.” Coutinho, A. (1996, 2 de Junho). Fernando Lopes (Entrevista a Fernando Lopes). Os Bons da Fita: Depoimentos inéditos de realizadores portugueses.

é um filme de cinema-verdade; é, tal como explica Fernando Lopes12, um filme de cinema-mentira, “no sentido em que é um falso cinema directo, porque foi muito trabalhado pela ideia de introduzir a noção de mise-en-scène no documentário.” Esta ideia da verdade na mentira implícita na obra é construída pelo modelo inquisitório e agressivo que Baptista Bastos imprime durante toda a entrevista. E tal como no ringue, Belarmino é encostado às cordas, como notou Tiago Baptista (2004: 9):

(…) o que se torna óbvio não apenas no cerco que a cidade e o mundo do boxe lhe fazem (com tantos planos que literalmente “engaiolam” o pugilista), como no próprio dispositivo cénico da entrevista de Baptista Bastos, na qual Belarmino surge não apenas acossado pela agressividade das perguntas do entrevistador, mas também verdadeiramente enclausurado pelo aparato técnico do filme e pela própria equipa de cinema que Fernando Lopes, muito significativamente, faz questão de não esconder durante a sequência da entrevista.

Fernando Lopes constrói a personagem assente nesta ideia de combate, colocando Belarmino na cidade-arena, deixando-lhe terreno para deformar a verdade e assim tentar escapar ao seu fracasso, aos seus erros, à sua invisibilidade. Para isso Fernando Lopes reconstrói a realidade da cidade como espaço claustrofóbico, sem pontos de fuga. Por essa razão, o filme inicia-se com a imagem de uma vedação e termina com a imagem de uma grade.

01. Fotogramas, Belarmino [2’19; 3’12; 2’18; 6’41]

12) Coutinho, A. (1996, 2 de Junho). Fernando Lopes (Entrevista a Fernando Lopes). In Moutinho, A. (Coord.), Os Bons da Fita: Depoimentos inéditos de realizadores portugueses, (pp. 39 – 46). Faro: Cineclube de Faro/Inatel.

A primeira sequência do filme funciona como um prólogo para a restante narrativa. Nos primeiros minutos, somos confrontados com ideia de gaiola na sucessão de planos do treino de Belarmino no ginásio do Sporting. O primeiro plano impõe os limites que se avizinham. O espetador é confrontado com uma caixa de luz. Dentro dela estão vários atletas a treinar. O enquadramento coloca o espetador do lado de fora da caixa de luz. No exterior, o negro contrasta com o branco da iluminação do espaço de treino. Entre estes dois espaços, a cerca, a rede de vedação do ginásio, confina o espetador à penumbra, impedindo-o de evoluir no espaço. Belarmino surge no segundo plano. Um corredor cinge aos seus constantes movimentos de treino. Seguimos a personagem através de um travelling frontal e recuamos no tempo, como se de um confronto entre o passado e o presente se tratasse. Voltamos à caixa de luz, mas desta vez estamos com Belarmino, que surge na escuridão do exterior. Permanecemos do lado de fora e acompanhamos a passagem de Belarmino, que sai da zona escura, atravessa a vedação e entra na caixa de luz. Mas este contraste, luz-sombra, branco-negro, interior-exterior não termina. O espectador continua no exterior, e contrariamente ao esperado também Belarmino continua na sombra. A penumbra ressalta o seu isolamento relativamente aos outros atletas. Belarmino está à margem dos restantes elementos. E como se de um regresso ao futuro se tratasse, surge a voz- off recolocando o espectador no presente – “Podia ter sido um grande pugilista, dos melhores da Europa, talvez até um campeão dos meios-leves e agora é quase um punching ball. Belarmino Fragoso. Nasceu campeão. (…) Sem treinador, com semanas, meses e anos de fome e miséria, já velho, Belarmino partiu com o sorriso confiante de sempre.” A primeira sequência do filme é reveladora de um final antecipado. Nesse momento o espectador ultrapassa a rede e coloca-se ao lado de Belarmino.

Mas como se trata de um combate, a mise-en-scène de Fernando Lopes reflete essa ideia, e por isso mesmo somos confrontados com inúmeras situações de contraste que nos impelem a um constante movimento de aproximação e distanciamento. Do interior do ginásio, voltamos ao exterior, e novamente ao interior. E no momento seguinte a entrevista. E com ela o conflito entre o passado e o presente, entre as questões de Baptista Bastos e as mentiras de Belarmino.

O que ele faz contra o que ele diz. O movimento incessante de avanço e recuo continua – exterior – interior – exterior.

02. Fotogramas, Belarmino [20’12; 20’16; 20’34; 20’43; 21’16; 21’44]

Uma panorâmica da fachada de um edifício em contraste com o interior. Mas o combate continua. Ao ataque de Belarmino, o contra-ataque do seu manager. Os sucessivos campo-contracampo imaginários. E de novo a fachada do edifício, mas desta vez a presença de Belarmino contraria a trama que as janelas desenham na fachada. A personagem encerra-se no padrão do edifício. A ideia de aprisionamento ao espaço é acentuada no plano seguinte, quando em contracampo surge um plano desafogado da colina de São Jorge.

A cidade é encenada como uma arena, um ringue, como agente de humilhação social que se exprime pelo isolamento de Belarmino relativamente às vivências da cidade burguesa. À sua vida em casa opõe-se a sua deambulação pelos espaços da cidade. Belarmino é colocado constantemente em confronto com a cidade. Cada espaço que Belarmino transpõe funciona como um round. E o pugilista continua sem ir ao tapete. No interior da sua habitação, Belarmino surge numa espécie de labirinto que o cerca. O espaço corta a sua figura. E de novo o momento em que transpõe a escuridão em direção à luz. Belarmino

desce as escadas do hall da entrada do edifício onde habita. Ao fundo a luz proveniente da rua. Belarmino dirige-se para esse ponto e fica fora de campo. No momento seguinte acompanhamos o seu passo acelerado pelas ruas da cidade, e por momentos a dúvida. Mas nada do que se mostra é. A cidade não lhe permite a liberdade, e por isso mesmo a sua figura é acossada pela mise-en-scène num plano picado. Cercado pela multidão. A pressão da cidade aumenta, culminando num plano contrapicado dos edifícios que cercam a personagem.

03. Fotogramas, Belarmino

[26’33; 32’50; 35’08; 39’45; 36’08; 36’26; 37’27; 37’59; 38’08; 38’11]

O espaço claustrofóbico, a prisão social da vida lisboeta não lhe concede a fuga, apenas sobreviver. Nesse sentido Fernando Lopes constrói inúmeras situações de confronto, colocando o pugilista no centro da tensão. Belarmino é constantemente subordinado aos diversos espaços da cidade. Nos cafés, declara a sua solidão quando surge isolado das restantes figuras. Na Baixa de Lisboa, o pugilista tenta seduzir as diversas mulheres que por ele passam. Belarmino arrisca uma investida. Mas o seu esforço revela a sua invisibilidade relativamente

a uma sociedade que assiste indiferente. Belarmino é colocado novamente em clausura. Novo round. E, mais uma vez, assistimos à sua viagem da escuridão para a luz, do interior para o exterior. A sua figura ocupa a posição central no enquadramento. Uma luz ao fundo do túnel recorta a silhueta do pugilista. A ideia de esperança está patente neste plano. No momento seguinte assistimos a uma corrida do pugilista no estádio. Aparentemente não existem condicionantes para Belarmino. O enquadramento confere a distância necessária para que a sua figura percorra o espaço de uma forma fluida. Belarmino, tantas vezes oprimido, enfrenta agora uma espécie de catarse. Esta sequência de planos permite-nos acreditar que uma nova conjuntura está prestes a ocorrer. Mas, no momento seguinte, a cidade rodeia o pugilista impedindo-o de evoluir.

Na Praça dos Restauradores Belarmino é acossado pelas figuras de bronze que, ironicamente representam a vitória, mas também a liberdade. Dois planos picados do monumento intercalam um plano contrapicado de Belarmino. A personagem experiencia a implacabilidade do espaço, e por fim direciona o olhar para o solo.

Mas em analogia ao povo, Belarmino não se deixa vencer. Tal como explica Fernando Lopes13, “(…) Portanto, eu apercebi-me que um dos elementos estruturais do filme, e uma das coisas mais extraordinárias na personalidade do Belarmino era o seu lado de sobrevivente, capaz de aguentar todas as vicissitudes da vida.” O pugilista resiste. A cidade não consegue levar a personagem ao tapete e por isso Fernando Lopes coloca-o no ringue, num combate real. O esforço do pugilista é evidente. O combate é travado dentro e fora do ringue, porque em oposição ao ambiente de tensão que se vive, somos confrontados com o ambiente de sofisticação do Hot-Club, onde a música faz ressaltar a descontração de quem se diverte. Nesse momento o pugilista, que ao longo de toda a narrativa é colocado à prova, combate após combate, adquire outra posição. Belarmino Fragoso dança na pista do Ritz Club, e dança também no ringue. O aparato cénico da entrevista é revelado. Belarmino é um filme de cinema-mentira, é um filme do Novo Cinema, e por isso nem tudo o que parece ser o é na realidade.

A tensão dilui-se e o pugilista encontra o seu espaço na cidade. Belarmino faz parte desse espaço, ele é uma janela para a cidade, uma redescoberta de Lisboa. É na cidade que a personagem se constrói e desconstrói. A cidade, que só lhe permite sobreviver e que o leva à fuga na mentira, também o completa.

“Eu vou fazer campeões se tiver vida e saúde…” [diz Belarmino] – o pugilista não perde a esperança e continua a acreditar que a liberdade é possível. No último momento, Fernando Lopes atinge o máximo da subjetividade ao colocar a dúvida: as grades do último plano do filme estão à volta de Belarmino ou da cidade?

No documento Filmes falados (páginas 145-151)