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4 A EMERGÊNCIA DO DISCURSO DA DIVERSIDADE NAS POLÍTICAS

4.4 A FORMAÇÃO DISCURSIVA DA SOCIEDADE DE ERNESTO LACLAU E A

Tomando por base o que foi exposto do trabalho antropológico de Darcy Ribeiro, é possível concluir que a identidade nacional da população brasileira é híbrida, plural, resultado das mestiçagens de povos que foram sujeitos ativos na construção do progresso civilizatório do país. Ou seja, não há um grupo homogêneo capaz de representar totalmente as características da nação uniformemente por haver grupos sociais de características e territórios diversos na composição dos cidadãos brasileiros.

Dentro do contexto de diversas coletividades sociais de características particularistas que questionam o universalismo dominante de alguns grupos, ou seja, com a emergência de múltiplas identidades étnicas, nacionais e políticas que contestam o status quo da relação de poder, Laclau (2011) afirma que aconteceu a "morte do sujeito", no sentido absoluto e essencialista, para dar lugar a um tipo subjetivo transcendental.

Para Laclau (1993), o sujeito social não é uma consciência absoluta, não há objetivismo em sua formação, pois seu surgimento se dá a partir da multiplicação de identidades em decorrência do colapso dos lugares a partir dos quais os sujeitos universais falavam, como por exemplo, a autoafirmação multicultural étnica brasileira em contraste aos herdeiros da colonização.

O sujeito universal da era moderna promoveu a ideia de que esse é uma obra divina inacessível à razão, no qual entre a universalidade e o corpo particular que o encarna apenas Deus media (LACLAU, 1993).

Conforme esclarece Mirta Giacaglia (p. 79, 2008), esse conceito pode ser chamado de lógica da encarnação, no qual "universal e particular constituem identidades plenas, porém separadas, cuja conexão é resultado da intervenção divina, não acessível à razão".

Porém, a modernidade passou a substituir Deus pela razão como garantia universal, pregando a total transparência racional e anulando a lógica da encarnação. A universalidade estava outra vez manifestada em um particularismo: a cultura europeia, colocada no status de expressão da essência humana universalizada. Em outras palavras, o eurocentrismo constrói

55 sua identidade universalizando sua própria particularidade e anulando o fundamento anterior (GIACAGLIA, 2008).

A Europa se dispôs incorporar o papel de agente privilegiado da história no período da expansão marítima e colonial, tornando-se assim agente da mudança histórica por se colocar como a encarnação universalista e tomando para si a tarefa universal de civilizar, modernizar e expandir o progresso em contraposição às culturas particulares das colônias, que não eram consideradas dessa forma pelos colonizadores, posicionando-os como os povos sem história (GIACAGLIA, 2008).

Essa defesa europeia de sua missão civilizadora para estabelecer uma sociedade mundialmente livre era um argumento que Laclau (1993) considerava potencialmente racista, porém, considerado "progressista" pelos seus apoiadores.

Esse contexto histórico que permeou a chegada do branco português nas terras nativa brasileiras foi determinado por uma universalidade que nada mais é do que um particularismo que em algum momento da história se tornou dominante, fato não colaborativo para o surgimento de uma sociedade reconciliada (LACLAU, 1993).

Nos tempos atuais, é possível constatar variados particularismos em luta política a fim de garantir seus direitos sociais, gerando uma relevante diversidade de grupos com capacidade de impedir algum tipo de domínio totalitário. Porém, para Laclau (2011), apelar para uma pura particularidade em nada colabora no combate aos problemas das sociedades contemporâneas.

Eu posso defender o direito das minorias sexuais, raciais e nacionais em nome do particularismo; mas se o particularismo for o único princípio válido, eu também terei que aceitar o direito de autodeterminação de todos os tipos de grupos reacionários envolvidos em práticas antissociais. E mais: como as demandas dos vários grupos necessariamente colidirão entre si, nós teremos que apelar - sem poder postular algum tipo de harmonia pré-estabelecida - para alguns princípios mais gerais que regulem tais choques. De fato, nenhum particularismo existe que não apele para tais princípios na construção de sua identidade. Estes princípios podem ser progressistas aos nossos olhos - tal como o direito à autodeterminação dos povos - ou reacionários - como o darwinismo social ou o direito à Lebensraum - mas sempre estarão lá, e por motivos essenciais (LACLAU, 1993, p. 33).

Sob outro aspecto, Laclau (2011) afirma que vários particularismos coexistindo num todo coerente, sem haver uma condição antagônica, gera apenas uma relação diferencial, no qual cada sujeito particular aceita sua posição sem contraposições com os demais. Isso pressupõe a presença de todas as identidades no mesmo espaço e do fundamento que justifica e acomoda a diferenciação entre elas.

56 Uma vez que as correlações entre grupos são constituídas de poder, em que não existem apenas distinções próprias, mas diferenças baseadas na exclusão e subordinação de outros agrupamentos, a relação puramente diferencial pode vir a sancionar o status quo do encadeamento de poder entre as formações coletivas. É isso que significa o "desenvolvimento separado", em que apenas se percebem as dessemelhanças particulares entre os círculos sociais, ignorando a interdependência de poder em que se baseiam (LACLAU, 2011).

Dentro da relação universalismo e particularismo, é fundamental compreender que toda identidade está inserida em um contexto ou totalidade, que quando contestado também provoca, concomitantemente, questionamento à formação identitária particular que se opõe ao mesmo, pois o sistema tolhe a constituição da oposição ao mesmo tempo em que é condição de possibilidade de sua existência. Dessa forma, toda diferença leva consigo, mesmo que inconscientemente, a oposição de luta, uma vez que não possuem características puras e federáveis (GIACAGLIA, 2008).

Logo, universalismo e particularismo vivem em tensão constante e irreconciliável e para Laclau (2011), o universal nada mais é que um particular que se sobressaiu sobre os demais e passou a ser o significado do todo, ou seja, aquilo que é total ou universalizado é sempre uma relação relativa.

Vamos supor que estamos lidando com a constituição da identidade de uma minoria étnica, por exemplo. Como dissemos anteriormente, se esta identidade diferencial for inteiramente atingida, ela só poderá sê-lo dentro de um contexto - por exemplo, um Estado-Nação - e se o preço a pagar pela vitória total dentro desse contexto é o da total integração nele. Se, ao contrário, a total integração não acontecer, é porque aquela identidade não se desenvolveu inteiramente - há, por exemplo, demandas insatisfeitas em relação à educação, emprego, bens de consumo, etc. Contudo, estas demandas não podem ser feitas em termos de diferença, mas de alguns princípios universais que a minoria étnica partilha com o resto da comunidade: o direito de todos terem acesso a boas escolas, ou viverem uma vida descente, ou participarem do espaço público da cidadania, etc (LACLAU, 1993, p. 33).

Uma demanda, uma ideia ou uma reivindicação de direitos inicialmente particulares entre seus envolvidos se alçam a condição de universal através da transformação em ponto nodal contido numa prática articulatória. Uma articulação é uma prática estabelecida entre elementos que se organizam em torno de um ponto nodal, tornando-se momentos naquele contexto.

Ou seja, quando há demandas ou identidades não articuladas, estão são definidas como elementos, ao passo que quando as mesmas se organizam em torno de um ponto nodal, tornam-se momentos da articulação. O elemento não perde sua particularidade, pois apenas se

57 converte em momento contingencialmente em uma determinada prática articulatória (MENDONÇA, 2009).

A organização acontece em torno de um ponto nodal na função de princípio articulador, cujo discurso é o seu resultado, sendo esse "uma consequência de articulações concretas que unem palavras e ações, no sentido de produzir sentidos que vão disputar espaço no social" (MENDONÇA, 2009, p. 157).

Portanto, o ponto nodal pode ser um discurso comum e articulador de todas as diferentes demandas ou ideias que mantém suas características particulares ainda presentes, mas que cancelam essas diferenças no instante da articulação, gerando uma relação de ordem hegemônica de aspectos aglutinadores e sistematizadores, capaz de unificar as diferenças em torno de uma manifestação única (MENDONÇA, 2009).

O discurso que se torna o ponto nodal passa por um processo de esvaziamento de sua significação, passando a ser um significante tendencialmente vazio a fim de assumir a função representativa ao renunciar sua identidade particular (ou diferencial) a fim de representar o aspecto equivalente entre todas as demandas dos conjuntos sociais da comunidade (LACLAU, 2011).

Uma vez que uma identidade se posicionando como uma diferença dentro de uma totalidade carrega consigo a oposição de luta, a condição antagônica é própria da relação hegemônica.

Porém, as relações políticas não são identidades prontas numa objetividade já pré- determinada, pois o antagonismo é o próprio momento em que elas passam a ser constituídas, sendo uma condição de possibilidade para sua formação (MENDONÇA, 2012).

A fim de esclarecer esse conceito, um exemplo que pode ser dado para representar uma relação antagônica é o racismo contra populações afrodescendentes e sua cultura religiosa herdada. No momento em que um grupo de indivíduos brancos de dada sociedade impede que outros manifestem sua religiosidade africana inerente a sua formação social no mesmo ambiente em que dividem, os membros reprimidos são impedidos de vivenciarem plenamente sua identidade, pois a presença caucasiana impossibilita a plena constituição cultural originária da África naquela comunidade.

A ausência da relação antagônica e a presença de uma lógica apenas diferencial em que particularismos coexistem, ignorando as relações de poder, é a mesma noção desenvolvida pelo apartheid, segundo Laclau (1993), pois indica que uma identidade foi absorvida pelo sistema dominante, que passou a estar conformada com sua posição, não

58 havendo possibilidade de articulação com outras organizações identitárias para formar uma demanda popular e um campo antagônico contra a ordem estabelecida.

Dessa forma ocorre a dissolução do povo ou da identidade popular, que necessariamente é constituída pela oposição ativa a um exterior que a nega e impede sua completude ao se portar como inimigo, ao mesmo tempo em que é condição necessária para sua existência, e proporciona o surgimento de uma formação hegemônica.