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4 A CONTROVÉRSIA EM TORNO DO BEM JURÍDICO-PENAL TUTELADO

4.2 Modelos funcionalistas

4.2.5 A função social dos tributos

Somada às concepções funcionalistas acima deduzidas, tem-se a

corrente que proclama que o bem jurídico tutelado pelos crimes tributários

compreende as inúmeras funções que são desempenhadas pelo tributo em uma

sociedade fundada no Estado Democrático e Social de Direito.

Baseando-se na ideia de distribuição adequada dos encargos entre todos,

o objeto de tutela dos delitos fiscais consistiria no cumprimento de todas as funções

sociais reconhecidas aos tributos, especialmente a repartição justa dos ônus entre

todos os contribuintes, respeitando-se a capacidade contributiva de cada indivíduo,

projetando o desenvolvimento da vida em sociedade e a execução das atividades a

cargo do Estado Democrático

235

.

Entende-se, assim, que o bem jurídico tutelado está vinculado ao caráter

financiador que os tributos exercem sobre as políticas públicas sociais, protegendo e

promovendo os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal.

Nesse passo, cônscios de que sem a renda gerada pela arrecadação

tributária, tornar-se-ia impossível a concretização do Estado Democrático de Direito,

cujos objetivos passam necessariamente pela realização da personalidade humana,

centro axiológico do texto constitucional, alguns doutrinadores se posicionam como

sendo o bem jurídico tributário o cumprimento dos programas cominados ao Estado

e implementados mediante a arrecadação dos tributos, estes considerados

instrumentos de consecução das finalidades de promoção da justiça social.

234 SOUSA, 2009a, p. 269.

235 Sobre a repartição equitativa dos ônus de custeio das atividades do Estado entre todos os indivíduos, Roland Hefendehl, relatando a imagem contemporânea difundida daquele que paga corretamente suas obrigações tributárias, assevera: “Quem não paga impostos reduz o montante dos recursos à custa da sociedade; quem os paga acaba sendo o bobo” (HEFENDEHL, Roland. Uma teoria social do bem jurídico. Tradução Luís Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 87, p. 103-120, nov./dez. 2010, p. 113).

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Com efeito, partindo da premissa que o bem tutelado pelos crimes fiscais está vinculado ao seu caráter financiador de políticas públicas e de proteção dos direitos fundamentais, parece possível concluir que o bem jurídico protegido pelo Direito Penal Tributário pode ser retirado do conjunto de valores presente na Constituição na República Federativa do Brasil, que se constitui em um Estado Social e Democrático de Direito, com todas as obrigações que lhe são impostas no atuar ao pleno desenvolvimento da pessoa humana. Esses desideratos constitucionais somente podem ser alcançados através de políticas públicas tendentes à erradicação da pobreza e das desigualdades sociais e regionais, expressamente mencionadas na Constituição, nos arts. 3º, III e 170, VII. Naturalmente, o desenvolvimento dessas políticas não é imune aos custos que lhes são inerentes, os quais somente podem ser arcados com a cobrança de tributos236.

Rememore-se, outrossim, que os delitos fiscais por afetarem todos os

membros da comunidade, não se restringindo a um indivíduo especificamente, são

delitos cujo bem jurídico se insere na categoria dos interesses transindividuais.

Enfatizando essa nuança presente nas incriminações fiscais, agregando estas ao

Estado Social e Democrático de Direito, Luiz Régis Prado pontifica:

A tutela penal da ordem tributária se encontra justificada pela natureza supraindividual, de cariz institucional, do bem jurídico, em razão de que são os recursos auferidos das receitas tributárias que darão o respaldo econômico necessário para a realização das atividades destinadas a atender as necessidades sociais. Tal assertiva é corroborada pela proteção constitucional conferida à ordem econômica (art. 170 da CF).

A atividade tributária do Estado dá lugar a uma política fiscal, que é um dos instrumentos fundamentais da formulação da sua política econômica global. Ocorre isso quando se busca com os tributos uma melhor distribuição da renda nacional, mediante a progressividade da alíquota de certos impostos, bem como pela existência de incentivos fiscais, que visam a estimular o desenvolvimento de regiões ou indústrias.

A sociedade (teoria do contrato social), ao transferir seus poderes para o Estado, condiciona-os à busca da satisfação ampla, geral e irrestrita do bem-estar individual e coletivo, e o papel do Estado, seja na ordem econômica, social ou tributária, é um só: ser um instrumento para o alcance desse objetivo, isto é, ele é um meio e não um fim em si mesmo.

A legitimidade constitucional para a tutela da ordem tributária radica no fato de que todos os recursos arrecadados se destinam a assegurar finalidade inerente ao Estado democrático e social de Direito, de modo a propiciar melhores condições de vida a todos (v.g., tratamento de água e esgoto, criação de áreas de lazer, saúde, educação). É exatamente característica do Estado social promover e garantir a assistência e a solidariedade social237.

Destacando que o valor tutelado pelos delitos fiscais vai muito além da

simples arrecadação tributária, passando necessariamente por um sistema justo,

onde os recursos são usados para a realização do pleno desenvolvimento da

pessoa humana, Claudio R. Navas Rial afirma que o bem jurídico resguardado “debe

236 AFONSO, 2012, p. 106.

237 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 261-263.

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entenderse en un sentido dinámico, es decir, como ingreso-gasto público

indispensable para cumplir la finalidad constitucional propia del Estado”

238

.

Idêntico raciocínio, associando os valores de justiça substancial do Estado

contemporâneo ao objeto jurídico desvendado pelos crimes tributários, é levado a

efeito por Pablo Chico de la Cámara que assevera:

Pese a que el Código Penal guarda silencio sobre cuál es el bien jurídico que protege la norma penal cabe entender que el Legislador tutela el patrimonio de la Hacienda Pública como órgano garante de la función financiera del Estado. Por consiguiente, abarcaría no sólo el «quantum», el objeto material de la función tributaria objeto de la recaudación, sino en un sentido más amplio, los proprios fines que realiza el Estado como garante en la gestión de los fondos públicos a través de la distribución equitativa de la carga tributaria y la ulterior asignación de los recursos públicos239.

A ideia de bem jurídico-penal tributário como sendo a função social

cumprida pelos tributos no Estado Democrático de Direito já foi compartilhada pelo

Tribunal Supremo espanhol, cuja sentença pioneira do caso Lola Flores assim

declara:

Desde el punto de vista de lo que puede denominarse filosofía del sistema penal, el bien jurídico protegido en este tipo de delitos, teniendo en cuenta la esencialidad de los distintos y no siempre coincidentes criterios doctrinales, está íntimimamente relacionado con los artículos 1.1 de la Constitución, que proclama a la Justicia como valor fundamental del Ordenamiento Jurídico, y el 31 de la misma Ley Fundamental, en orden a la función que los tributos han de desempeñar en un Estado democrático de Derecho al exigir uma contribución de todas las personas a los gastos públicos según la capacidad económica del contribuyente mediante un sistema tributario justo, de igualdad y progresividad; se trata en definitiva de proteger el orden económico, dentro del más amplio orden social, conforme el Ordenamiento jurídico que ha de realizar la justicia material dentro de los parámetros de la Ley positiva240.

O tratadista Luis Gracia Martín adota o mesmo ponto de vista, ao atestar

que o “bien jurídico protegido por el Derecho penal tributario puede (y debe) definirse

mediante la fórmula de las funciones del tributo concretadas en la recaudación

tributaria”

241

.

238 RIAL, 2008, p. 152.

239 CÁMARA, Pablo Chico de la. El delito de defraudación tributaria tras la reforma del Código Penal por la LO 5/2010: reflexiones críticas y propuestas de «lege ferenda». Navarra: Thomson Reuters Aranzadi, 2012, p. 27.

240 STS 9824/1990, de 27/12/1990. Disponível em <http://www.poderjudicial.es/search/index.jsp> Acesso em: 23 jan. 2015.

241 MARTÍN, Luis Gracia. La infracción de deberes contables y registrales tributários en Derecho Penal. Madrid: Associación Española de Asesores Fiscales, 1990, p. 72. Em outra obra o autor esclarece: “El Derecho Penal Tributario es una parcela del Derecho Penal Financiero que, en el sentido que acaba de explicarse, protege, mediante un conjunto de figuras de delito y de infracción administrativa, un bien jurídico muy determinado: «las funcciones del tributo»” (MARTÍN, Luis Gracia. Nuevas perspectivas del Derecho Penal Tributario: las funciones del tributo como bien jurídico. Revista Actualidad Penal, Madrid, n. 10/7, p. 183-217, mar. 1994, p. 189).

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Mas não é só isso. Os valores de justiça e solidariedade também devem

ser associados à função social dos tributos como bem jurídico salvaguardado pelas

incriminações fiscais. Postula-se, em razão da democracia substancial perseguida

pelo Estado contemporâneo, e tendo a arrecadação tributária papel relevante na

consecução dessa finalidade, que os valores que norteiam o Estado Democrático e

Social de Direito também devem integrar o objeto jurídico protegido pelos crimes

tributários. Nesse sentido, Eugenio Simón Acosta é contundente ao discorrer sobre o

bem jurídico tutelado pelos delitos fiscais:

[...] el derecho-deber de solidariedad ciudadana que constituye el fundamento del sistema tributário. Sólo indirectamente se protege el patrimonio público con este tipo penal. El tributo es la imprescindible institución niveladora que permite compatibilizar la libertad con igualdad, hace posible el compromiso de estos principios que están em permanente tensión y sirve a la paz social. En otros términos la justa contribución al sostenimiento de las cargas públicas en un bien en sí mismo, protegible por el derecho, y a este bien trata de servir el Código Penal cuando castiga la insolidariedad de quien defrauda a la Hacienda Pública. La protección del patrimonio público, que también se consigue en este delito, es una finalidad mediata o indirecta, que se deriva como simple consecuencia de la protección del valor de la solidariedad, auténtico bien jurídico protegido242.

Em síntese, a ideia central da corrente funcionalista do bem jurídico-penal

tributário como a função exercida pelo tributo no corpo social tem como argumento

nuclear a compreensão de que a garantia dos ingressos tributários são necessários

à manutenção e razão de ser do próprio Estado Democrático, cuja finalidade

inarredável é garantir aos homens a promoção e a proteção dos direitos

fundamentais, o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana e a difusão dos

valores de justiça social, igualdade e solidariedade.

242 SIMÓN ACOSTA, Eugenio. El delito de defraudación tributaria. Pamplona: Thomson Reuters Aranzadi, 1998, p. 24. Trilhando a mesma senda, José Maria de Castro Panoeiro aduz: “A concepção do bem jurídico tributário à luz de uma teoria social traz à tona características comuns aos objetos juridicos, dentre as quais sua vinculação aos ideais de solidariedade, igualdade e

justiça, próprias de um Estado social, e de um Direito Penal Econômico que lhe é corolário. Nesse

enfoque, o sistema tributário previsto na Constituição dá suporte ao dever fundamental de pagar tributos, por ser o meio principal, senão único, para viabilizar a justiça social declarada. Ao se reportar à capacidade contributiva, justiça social, isonomia e estruturar obrigações estatais (saúde, educação, previdência, etc.), o correspondente custeio encontra alicerce no dever de pagar tributos. No mesmo sentido, de maneira expressa, a Constituição Portuguesa evoca a justiça distributiva em dispositivos que afirmam que “o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do

Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza”

(PANOEIRO, José Maria de Castro. Política criminal e direito penal econômico: um estudo interdisciplinar dos crimes econômicos e tributários. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2014, p. 196- 197).

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