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4 A CONTROVÉRSIA EM TORNO DO BEM JURÍDICO-PENAL TUTELADO

4.1 Modelo patrimonialista

Desde o início do recente tratamento jurídico-penal dispensado aos

crimes tributários, prepondera na doutrina e jurisprudência especializada

215

a ideia de

que o bem jurídico-penal tutelado pelas infrações penais fiscais é o patrimônio

público, cuja integridade, tal qual o patrimônio dos particulares, precisa ser

salvaguardada pelo Estado.

Referida concepção patrimonialista do objeto de tutela das incriminações

fiscais traz ínsita a si uma compreensão privatística da relação tributária, enunciando

o tributo como o preço que o cidadão despende pelos serviços públicos que o

Estado lhe presta.

Esse entendimento puramente patrimonialista implica a atribuição de uma

concepção de natureza privada da relação tributária, no sentido de que ao Estado,

como em um contrato civil, cabe tão-somente um direito de crédito sobre o

contribuinte inadimplente.

De certo modo, a compreensão patrimonialista da relação tributária ressai

destacada no posicionamento firmado no Supremo Tribunal Federal em que se nega

atribuição ao Ministério Público para propor ação civil pública questionando a

constitucionalidade de tributos

216

.

Adotando a teoria patrimonialista do bem jurídico-penal tributário,

devidamente materializado na arrecadação tributária, Carlos Martínez-Bujan Pérez

assinala:

Adoptando la tesis patrimonialista, podría resumirse la configuración del objeto jurídico en el delito de defraudación tributaria matizando que en esta

215 O tratadista argentino Mario H. Laporta, reportando-se à posição patrimonialista adotada pelos Tribunais, afirma: “La jurisprudência, en general, se ubica en este sector, pues ha seguido una línea pacífica, al indicar que el bien jurídico protegido es el patrimonio de la Hacienda Pública en su manifestación relativa a la recaudación tributaria. Siendo que se contempla como bien jurídico, en consonância con la jurisprudencia y la teoría dominantes, la recaudación completa de los impuestos particulares” (LAPORTA, Mario H. Delito fiscal: el hecho punible, determinación del comportamiento típico. Prólogo de Mirentxu Corcoy Bidasolo. Montevideo: Editorial Bdef, 2013, p. 168).

216 EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. QUESTIONAMENTO DA VALIDADE DE TRIBUTO. INTERESSE INDIVIDUAL PATRIMONIAL E DISPONÍVEL. AUSÊNCIA DE LEGITIMIDADE. I. O Ministério Público não tem legitimidade para defender interesse individual patrimonial e disponível de contribuinte, pelo questionamento da cobrança de tributo. 2. Situação que não se confunde com a discussão travada pelo Pleno desta Corte no RE 576.155-RG (Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, julgamento em curso), cuja questão de fundo é se saber se o Ministério Público tem legitimidade para questionar a concessão de benefícios fiscais teoricamente contrários ao interesse público. Agravo regimental ao qual se nega provimento. (AI 327013 AgR, Relator Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, j. em 06/04/2010, in DJ 30/04/2010).

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figura el bien jurídico inmediatamente protegido es el património de la Hacienda Publica, concretado en la recaudación tributaria217.

O Tribunal Supremo espanhol, instado a se pronunciar a respeito do bem

jurídico salvaguardado pelos delitos fiscais, em mais de uma oportunidade, se

pronunciou pelo patrimônio da Fazenda Pública como sendo o objeto jurídico

tutelado por esses crimes, conforme se pode deduzir do acórdão vazado nos

seguintes termos:

El delito fiscal, en su modalidad de elusión del pago de tributos, se configura como un delito de infracción de deber. Concretamente del deber de contribuir a los gastos públicos mediante el pago de los impuestos. Así se establece en la STS nº 2069/2002, de 5 de diciembre: “Aunque el artículo 305 del Código Penal vigente se refiere ya al «que por acción u omisión» defraude a la Hacienda, el delito fiscal, al menos en la modalidad de elusión del pago de tributos, que aquí interesa, se configura como un delito de infracción del deber de contribuir al sostenimiento de los gastos públicos mediante el pago de tributos, conducta esencialmente omisiva. Se configura como un delito especial propio, de naturaleza patrimonial y además de resultado, siendo el bien jurídico protegido el patrimonio de la Hacienda Pública en su manifestación relativa a la recaudación tributaria (STS núm. 1940/2000, de 18 de diciembre)”218.

O § 370 da Abgabenordnung (Lei Tributária alemã) de 1997 é apontado

como o standard de orientação patrimonial do bem jurídico tutelado pelos crimes

fiscais, na medida em que a fórmula eleita pelo Estado alemão de não conceber o

crime fiscal sem a ocorrência de efetiva lesão da pretensão tributária ou de

descimento concreto da arrecadação, favorece a difusão da compreensão

patrimonialista das incriminações fiscais.

Nesse sentido, Rodrigo Sánchez Ríos, escrevendo sobre as

peculiaridades do crime fiscal, aduz:

De forma razoável, tem-se entendido que o modelo seguido pelo direito positivo alemão – a partir de 1977 – seja o de considerar o crime fiscal como um crime material ou de dano. Observa-se que a conduta típica do chamado delito fiscal, descrito no § 370 da Abgabenordnung, requer a efetiva lesão de um prejuízo patrimonial quantitativamente determinado, concebida como diminuição efetiva dos ingressos fiscais. Trata-se de um delito de resultado material, mas que se produz no exato momento em que se “reduzem” (ou

217 MARTÍNEZ-BUJAN PÉREZ, Carlos. El delito de defraudación tributaria. Revista Penal, Madrid, ano 1, n. 1, p. 55-66, 1997, p. 56. Em outra obra, o mesmo autor, fazendo um paralelo com a legislação alemã, assim se pronuncia sobre o caráter patrimonial dos crimes tributários: “[...] dentro de la opinión alemana dominante hay unanimidad a la hora de se entender que, desde el momento en que con su ejecución se frustra la pretensión tributaria estatal en su integridad económica, el delito de defraudación tributaria del 370 comporta un ataque a los intereses patrimoniales del Estado, calificandose por ende sin ambages delito patrimonial” (MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. El bien jurídico en el delito de defraudación tributaria. Estudios Penales y Criminológicos, Santiago de Compostela, v. 18, p. 123-195, 1995a, p. 154).

218 STS 7606/2005, de 25/11/2005. Disponível em <http://www.poderjudicial.es/search/index.jsp> Acesso em: 18 jan. 2015.

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evadem) os impostos, ou se obtém para si ou para outrem vantagens tributarias (sic) ilegítimas219.

A própria legislação brasileira parece se socorrer da solução inicial

proposta pela normatividade alemã ao estabelecer, no art. 1.º da Lei n.º 8.137/90,

que constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou

contribuição social e qualquer acessório.

De acordo com parte respeitável da doutrina, a ideia do crime tributário

como um delito de resultado, incidente sobre o patrimônio da Fazenda pública é

novidade introduzida pela vigente Lei que regulamenta as incriminações fiscais,

tendo em vista que os crimes previstos na revogada Lei n.º 4.729, de 14 de julho de

1965, não exigiam o resultado naturalístico como exigência para sua consumação.

Nesse sentido, tem-se o posicionamento do tributarista Hugo de Brito

Machado, segundo o qual:

[...] no Brasil a evolução legislativa deu-se em sentido inverso. Tínhamos um crime formal, de mera conduta, na Lei 4.729/1965, e passamos a ter um crime material, ou de resultado, com a Lei 8.137/1990.

Realmente, a Lei 4.729, de 14.07.1965, definiu o crime de sonegação fiscal, cujo tipo descreveu em seu art. 1.º, mediante ações ou omissões todas elas relativas a obrigações tributárias acessórias, sem colocar o resultado como elemento integrativo do tipo, não obstante exigisse para a configuração deste, em qualquer caso, o dolo específico.

Já a Lei 8.137, de 27.12.1990, define o crime contra a ordem tributária de duas formas. A primeira, em seu art. 1.º, dizendo que: “Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as condutas”, que indica em seus cinco incisos. E a segunda, em seu art. 2.º, dizendo que constituem crime da mesma natureza, condutas relativas a obrigações acessórias (incs. I e V); o não recolhimento de tributo cobrado ou descontado, que muitos denominam apropriação indébita de tributo (inc. II), além de reproduzir, com ligeira alteração, o tipo que estava na lei anterior, de exigir, pagar ou receber percentagem sobre incentivo fiscal (inc. III), acrescido de outro, configurado pela conduta de deixar de aplicar ou aplicá-lo indevidamente.

Pode-se afirmar, assim, que a lei atual define a supressão ou redução de tributo como crime material, ou de resultado. Sua configuração exige que se defina a existência de um tributo devido, para que se possa afirmar sua supressão, ou redução, mediante uma ou mais das condutas descritas na lei220.

Como se pode constatar, a compreensão do bem jurídico-penal tributário

como o patrimônio da Fazenda Pública traz reflexos para o enquadramento fático da

conduta típica cuja estrutura seria análoga aos crimes contra o patrimônio, com a

219 SÁNCHEZ RÍOS, Rodrigo. O crime fiscal: reflexões sobre o crime fiscal no direito brasileiro (Lei n.º 8.137 de 27 de dezembro de 1990) e no direito estrangeiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 1998, p. 43.

220 MACHADO, Hugo de Brito. A propositura da ação penal no crime de supressão ou redução de tributo e a Súmula Vinculante 24. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 88, p. 189-200, mar./abr. 2011, p. 199-200.

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singularidade de que o delito fiscal tem como objeto numerário pertencente ao

Estado.

O autor português Miguel João de Almeida Costa filia-se entre aqueles

que concebem o patrimônio como o bem salvaguardado pelas incriminações fiscais,

ao afirmar que

[...] o património fiscal é o bem jurídico protegido pelas infracções tributárias. Para o proteger eficazmente, o legislador atribuiu à reposição da verdade um valor decisivo para a suspensão e para a dispensa de pena. No entanto, não é a verdade o bem jurídico protegido, nem a sua ruptura o facto eticamente desvalioso que justifica a criminalização221.

Pedro Roberto Decomain, debruçando-se sobre a objetividade jurídica

dos crimes tributários, filia-se àqueles que entendem ser o patrimônio da entidade

jurídica o bem jurídico protegido pelas incriminações fiscais. São essas as palavras

do autor:

Sem embargo dessa amplitude, sobreleva o bem jurídico receita tributária,

ou crédito tributário, como aquele protegido pela generalidade dessas normas (sem prejuízo, claro, da eventual proteção, por alguma delas, até

mesmo preponderantemente, de algum outro valor).

Para que o Estado possa desincumbir-se das tarefas que lhe cabem, necessita de recursos materiais. No momento contemporâneo, tais recursos são obtidos essencialmente pela arrecadação de tributos. As condutas previstas pela Lei n.º 8.137/90 como crimes contra a ordem tributária e também aquelas constantes dos artigos 168-A e 337-A do Código Penal lesam essencialmente a arrecadação tributária. O valor correspondente ao tributo devido é designado como crédito tributário. Desta sorte, é correto afirmar que a incriminação das condutas que a mencionada lei classifica como crimes contra a ordem tributária e também as condutas descritas nos dois mencionados artigos do CP têm o crédito tributário como bem jurídico que essencialmente procuram proteger222.

Destacando a ideia de que o bem jurídico-penal tributário aproxima as

incriminações fiscais ao estelionato, exemplo de crime contra o patrimônio, os

portugueses Jorge de Figueiredo Dias e Manoel da Costa Andrade aduzem que “o

crime fiscal torna-se, desta forma, uma modalidade especial de estelionato, cuja

conduta típica estará direcionada a causar um dano patrimonial ao Estado”

223

.

No entanto, essa aproximação ontológica entre as incriminações fiscais e

o delito de estelionato não se sustenta do ponto de vista jurídico, na medida em que

221 COSTA, Miguel João de Almeida. a fraude fiscal como crime de aptidão: facturas falsas e concurso de infracções. In: MISCELÂNEAS do Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2010. n. 6, p. 214-215.

222 DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. 5. ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 65-66.

223 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manoel da Costa. O crime de fraude fiscal no novo direito penal tributário português (Considerações sobre a factualidade típica e o concurso de infracções). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 13, p. 54-69, jan./mar. 1996, p. 62.

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a relação tributária tem como subtrato a lei, manifestação do poder de império do

Estado sobre os cidadãos, não se confundindo, de forma alguma, com uma relação

de natureza meramente privada, quase contratualista, segundo a qual o Estado teria

um direito de crédito contra o devedor inadimplente.

Ademais, a relação jurídico-tributária não se encerra com o simples

pagamento do tributo, haja vista que, em seu âmago, também se fazem presentes, e

com a mesma relevância para todas as partes envolvidas, vários outros deveres

como o de apresentar declarações, prestar informações e se submeter às inspeções

fazendárias.

Ressalte-se, todavia, que conquanto ainda desfrute de certa

predominância acadêmica, a corrente patrimonialista pura do bem jurídico-penal dos

crimes tributários perde progressivo espaço para as compreensões funcionalistas,

seja mediante a substituição completa de suas ideias, seja por meio da conjugação

de ambas as correntes para a formatação da objetividade jurídica das incriminações

fiscais.