2 A EVOLUÇÃO DO ESTADO – A MISSÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO
2.4 O Estado Social e a concretização dos direitos dos indivíduos
Diante dessa nova necessidade de intervencionismo estatal nas relações
humanas, não se admitindo mais a ótica do “laissez faire, laissez passer”, surge a
concepção do Estado social, segundo a qual a mera igualdade formal,
proporcionada pelo liberalismo, despida de conexão com a realidade vivida pelas
pessoas, não satisfaz os interesses da sociedade.
De fato, enquanto o Estado liberal-burguês, de traços eminentemente
formal, individualista e abstencionista, não se ocupava das verdadeiras mudanças a
serem promovidas, o Estado social se interpõe como uma espécie de coordenador e
protetor dos mais desfavorecidos, regulador e redistribuidor das riquezas em alguma
medida
34.
34 A respeito do documento constitucional de origem do Estado Social, a doutrina aponta a Constituição do México do ano de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. Nesse sentido, registra Carlos Miguel Herrera: “A história constitucional tem oficialmente a sua certidão de nascimento com a Constituição alemã de 11 de agosto de 1919. Mas, para dizer a verdade, esta já tem um precedente fundamental na Constituição mexicana de 5 de fevereiro de 1917, elaborada em Querétaro. Se este antecedente não pode ser evitado, não se trata de um simples (e inútil) gesto de erudição: encontramos ali, estabelecida pela primeira vez em um texto constitucional que alcançará vigência, a relação específica entre direitos sociais e revolução inconclusa” (HERRERA, Carlos Miguel. Estado, Constituição e direitos sociais. Tradução Luciana Caplan. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (Org.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 13). Em sentido contrário, Simone Goyard-Fabre ensina que “a marcha da história modificou consideravelmente a extensão e a compreensão dos direitos do homem. Por um lado, a Constituição de 1848, ao insistir em seus artigos 1 e 2 sobre o caráter democrático da República francesa, determinou como sendo suas ‘bases’ o trabalho e a ordem pública, que colocou na mesma categoria da propriedade e da família. Os direitos de ‘segunda geração’ tinham adquirido uma conotação econômica e social expressamente mencionada pelos textos. Não é falso ver nessa transformação a influência da ideologia socializante que triunfava nesse período da história” (GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia?: a genealogia filosófica de uma grande aventura humana. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 288).
30
Para a formação da consciência dessa nova postura do Estado, a
doutrina social da Igreja Católica, com suas diversas Encíclicas, exerceu papel
relevantíssimo, na medida em que difundiu, entre seus seguidores, a necessidade
de maior solidadariedade, fraternidade, igualdade material, justiça e compromisso
com as relações humanas
35.
O Estado social, pode-se dizer, consiste em uma etapa histórica que
busca cicatrizar a neutralidade e as insuficiências produzidas pelo liberalismo
burguês. A anterior indiferença aos conflitos sociais e as mazelas vividas pelos
indivíduos, segundo propugnava a doutrina do liberalismo, é substituída por um
modelo conformador.
Nesse contexto, o Estado toma para si a tarefa fundamental de ajuste da
sociedade, intervindo nas relações humanas de modo a produzir justiça e
solidariedade na vida de seus indivíduos.
Se, por um lado, o Estado liberal-oitocentista se conforma com a proteção
dos valores da liberdade pessoal e da difusão dos direitos religiosos e civis, o Estado
social, de outra parte, difunde a ideia de que é impossível usufruir as liberdades
propugnadas pela burguesia ascendente sem a satisfação mínima das necessidades
do ser humano.
Destarte, é desde o surgimento do Estado social que se vislumbra um
modelo de organização estatal que não se circunscreve a uma abordagem
meramente negativa dos direitos, tal como soía acontecer no liberalismo-
abstencionista, exigindo-se, por via de consequência, uma postura positiva por parte
do Estado, no sentido de promover as condições mínimas de existência dos
indivíduos e da coletividade.
De fato, a consolidação do Estado social promove a materialização de um
novo paradigma constitucional, mais voltado à tutela concreta dos interesses dos
35 A título de ilustração, entre tantos documentos papais importantes para o Estado Social, cite-se a Encíclica Mater et Magistra, de João XXIII que, em seu art. 20, dispõe: “O Estado, cuja razão de ser é a realização do bem comum na ordem temporal, não pode manter-se ausente do mundo econômico; deve intervir com o fim de promover a produção de uma abundância suficiente de bens materiais, ‘cujo uso é necessário para o exercício da virtude’; e também para proteger os direitos de todos os cidadãos, sobretudo dos mais fracos, como são os operários, as mulheres e as crianças. De igual modo, é dever seu indeclinável contribuir ativamente para melhorar as condições de vida dos operários”. (JOÃO XXIII, Papa. Carta encíclica mater et magistra de sua santidade João XXIII aos veneráveis irmãos patriarcas, primazes, arcebispos, bispos e outros ordinários do lugar, em paz e comunhão com a sé apostólica, bem como a todo o clero e fiéis do orbe católico. Roma, 1961. Disponível em: <www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/ documents/hf_j-xxiii_enc_15051961_ mater_po.html>. Acesso em: 14 jul. 2014).
31
indivíduos do que a satisfação com a simples normatização dos direitos em bases
legais. Nessa perspectiva, abordando a alteração da matriz constitucional, André
Copetti sinaliza:
[...] através da positivação de direitos sociais, econômicos e culturais, houve uma ampliação no âmbito das pretensões jurídicas, possíveis de serem manifestadas pelos cidadãos. Partiu-se de um quadro normativo institucional em que apenas pretensões de omissões podiam ser interpostas contra o Estado, para outro, muito mais complexo no qual se positivou possibilidades de exigências de proibição de omissões às instituições estatais, contemplando-se assim, a perspectiva de tutela não só de direitos subjetivos dos indivíduos atomizados, mas também de direitos e interesses de grupos determinados e parcelas difusas da população, constituindo-se, a partir disso, um âmbito não-individual de tutela jurídica36.
Em verdade, o qualitativo ‘social’ tornou-se uma exigência para uma
adequação do modelo de Estado vigente às necessidades da comunidade de verem
cumpridos plenamente os ideais de paz e bem-estar sociais, garantidores da vida
humana, principalmente em face da deterioração da qualidade de vida na sociedade
do final do século XIX.
No entanto, a necessária correção de rumo do individualismo
protagonizado pelo Estado liberal-burguês, almejada com a instituição de um novo
modelo de Estado, não foi acompanhada da fruição de direitos por parte dos
cidadãos, muito em função das próprias deformações causadas pela ideia difundida
de social.
Realmente, o modelo instaurado de Estado social acabou por ostentar
regimes integralmente antagônicos de governo, sob o equívoco de manter o social
como caracterizador do Estado e não do Direito implementado na comunidade.
Sobredito equívoco acabou por conciliar simultaneamente a existência de
Estados sociais ditatoriais, nazistas e fascistas, com outros sistemas que se
autoproclamavam democráticos
37.
36 COPETTI, André L. Racionalidade constitucional penal pós-88: uma análise da legislação penal face ao embate das tradições individualista e coletivista. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz; MORAES, Bolzan de (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 218.
37 Corroborando o argumento ora orquestrado, Paulo Bonavides apresenta as espécies de Estado social: “Distinguimos em nosso estudo duas modalidades principais de Estado social: o Estado social do marxismo, onde o dirigismo é imposto e se forma de cima para baixo, com a supressão da infra-estrutura capitalista, e a consequente apropriação social dos meios de produção – doravante pertencentes à coletividade, eliminando-se, desta forma, a contradição, apontada por Engels no
Anti-Duehring entre a produção social e a apropriação privada, típica da economia lucrativa do
capitalismo – e o Estado social das democracias, que admite a mesma ideia de dirigismo, com a diferença apenas de que aqui se trata de um dirigismo consentido, de baixo para cima, que conserva intactas as bases do capitalismo” (BONAVIDES, Paulo. O Estado social e sua evolução
32