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2 A EVOLUÇÃO DO ESTADO – A MISSÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO

2.5 O Estado Democrático de Direito e a missão de transformação da

A ideia de Estado Democrático de Direito é decorrência de um extenso

processo do desenvolvimento do modo como as mais diversas sociedades se

organizaram ao longo dos séculos

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, de maneira que a cada etapa histórica mais

interesses são incorporados à sua proteção.

rumo à democracia participativa. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (Org.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 64-65).

38 Inexistem dúvidas de que a democracia é um valor grego de nascença.

39 Abordando todo o processo de movimento rumo à democracia no mundo ocidental, Simone Goyard-Fabre escreve: “[...] a democracia, em sua marcha irresistível, não precisa da perturbação revolucionária. A Inglaterra e a América são prova disso. A doçura do homem democrático não tem nenhuma necessidade da violência da rua; a igualização das condições na sociedade democrática não se faz derrubando Bastilhas; e a política democrática, na medida em que deseja que o poder

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No Estado Democrático de Direito os direitos fundamentais, enquanto

aspecto indissociável de sua configuração, e como consequência da própria

soberania popular que lhe é inerente

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, são resultado das opções políticas realizadas

pela vontade geral, identificando direitos e garantias em uma organização estatal

composta por homens livres.

O grande diferencial que identifica o Estado Democrático de Direito é o

seu conteúdo transformador das relações sociais, não se limitando, ao revés do que

postulava o modelo de Estado social, com uma melhora nas condições de existência

do ser humano.

Ao contrário do que se dava nos sistemas do Estado liberal-burguês e do

Estado social, que se satisfaziam com a mera normatização abstrata, sem qualquer

compromisso com a verdade no mundo dos fatos, no paradigma do Estado

Democrático de Direito o objetivo é a igualdade material, substancial, a igualdade

vivida e saboreada pelos homens.

Nessa perspectiva, o Estado Democrático de Direito representa uma

espécie de plus normativo em relação aos modelos que o antecederam, na medida

em que não lhe basta a

[...] limitação ou a promoção da atuação, mas referenda a pretensão à transformação do status quo. A lei aparece como fio condutor de

seja contido constitucionalmente pelo poder, não exige o assassinato dos reis. Por isso, Tocqueville acaba se perguntando se a história e o direito políticos não são, pela própria natureza das coisas, uma revolução sem fim, lenta mas não violenta, antes um longo trajeto que um salto. A marcha das coisas não implica rupturas revolucionárias. Ela conduz ao face-a-face mais ou menos conflituoso da aristocracia com a democracia. Esse face-a-face é uma evolução que se dá sem revolução. Portanto, é uma ilusão acreditar que ‘o fato democrático’ seja o resultado de um fenômeno revolucionário que muda a cara do mundo. Aliás, as mutações socio-políticas que acompanhavam o avanço do fato democrático tampouco são o produto da ‘luta de classes’ que é, à sua maneira, uma violência revolucionária. Como também é inútil invocar, para explicar a marcha do espírito democrático, alguma tensão conflituosa ou dialética entre as ideias e os fatos; deve-se admitir que a transformação democrática dos costumes e dos regimes é uma questão de historicidade: é o problema filosófico do tempo, como observava Ampère, que se esconde no fundo da experiência democrática dos povos. E há muito se sabe que, se o tempo é construtivo, ele também é destrutivo. É isso, justamente, o que torna perigosa a marcha inexorável da democracia” (GOYARD-FABRE, 2003, p. 221-222).

40 Destacando as íntimas ligações entre a democracia e a soberania popular, José Afonso da Silva afirma: “A democracia, em verdade, repousa sobre dois princípios fundamentais ou primários, que lhe dão a essência conceitual: (a) o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do

poder, que se exprime pela regra de que todo o poder emana do povo; (b) a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja efetiva expressão da vontade popular; nos casos em

que a participação é indireta, surge um princípio derivado ou secundário: o da representação(SILVA, José Afonso da. Democracia e direitos fundamentais. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin; SARLET, Ingo Wolfgang; PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. (Coord.). Direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 370).

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transformação da sociedade não estando mais atrelada inelutavelmente à sanção ou à promoção41.

A alteração de paradigma é manifesta ainda que vista a olho nu.

Enquanto a concepção tradicional do modelo liberal-burguês aborda a questão das

funções do Estado sob um viés de normatividade ideológica negativa, de modo que

os direitos fundamentais são considerados como escudo dos cidadãos contra as

arbitrariedades do aparelho estatal, no modelo proporcionado pelo Estado

Democrático de Direito, surge uma nova abordagem, segundo a qual o Estado é

tratado como um implementador e garantidor dos direitos

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.

Correspondendo às novas necessidades impostas pela ascensão do

Estado Democrático de Direito e sua função transformadora da realidade, a ideia de

Constituição dirigente

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, com sua proposta de “legitimação material da Constituição

pelos fins e tarefas previstos no texto constitucional”

44

, surge como mola propulsora

desse novo modelo do Estado de Direito.

41 MORAIS, José Bolzan; STRECK, Lenio Luiz. Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 90-91.

42 Deitando luzes sobre a função transformadora que é congênita ao Estado Democrático de Direito, Luciano Feldens dispõe: “[...] referimo-nos à fórmula do Estado Democrático de Direito como expressão do modelo de Estado que encontra no Direito uma função transformadora, sob cuja conceitualidade, diferentemente do que se processava em relação aos paradigmas liberal (Estado- Liberal) – ocasião em que o Direito ostentava uma função meramente ordenadora (ponto de tensão

fixado no Poder Legislativo) e social (Estado-Social) – a traduzir uma noção de Estado com função

promovedora, conectada às políticas do Welfare State (ponto de tensão situado no Poder Executivo)

-, o pólo de tensão das relações Estado-Sociedade desloca-se do Poder Legislativo e/ou do Poder Executivo para alojar-se junto ao Poder Judiciário (ou Tribunais Constitucionais). Como leciona Streck, esse movimento migratório se faz expressão da realidade ‘quando a liberdade de conformação do legislador, pródiga em discricionariedade no Estado-Liberal, passa a ser contestada por dois lados: de um lado, os textos constitucionais dirigentes, apontando para um dever de legislar em prol dos direitos fundamentais e sociais; de outro, o controle por parte dos tribunais, que passaram não somente a decidir acerca da forma procedimental da feitura das leis, mas acerca de seu conteúdo material, incorporando os valores previstos na Constituição. Há, assim, a prevalência do princípio da constitucionalidade sobre o princípio da maioria’” (FELDENS, Luciano. Tutela penal de interesses difusos e crimes do colarinho branco: por uma relegitimação da atuação do Ministério Público: uma investigação à luz dos valores constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 30-31).

43 Apesar da noção de Constituição Dirigente ser apontada como tendo sido criação de Peter Lerche, a difusão do conceito em terras brasileiras é obra da pena de J. J. Gomes Canotilho. Para maiores detalhes ver CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Ed., 1994.

44 BERCOVICI, Gilberto; LIMA, Martonio Mont’Alverne B.; MORAES FILHO, José Filomeno de; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 117.

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A partir da noção de Constituição dirigente, busca-se reafirmar a força

normativa do Texto Constitucional

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, por intermédio de um programa para o futuro,

dentro do qual o Estado e o corpo social estão intimamente interligados.

Nessa perspectiva, a ideia de dirigismo constitucional está relacionada

com a mudança da realidade vivida pelos indivíduos através do direito posto e

concretizado pelo Estado. A Constituição, como instrumento político maior do

Estado, fornecerá o substrato jurídico para essa mudança social.

Realmente, o dirigismo constitucional consagra os direitos fundamentais

da liberdade, na positividade do Estado inerente aos direitos sociais e econômicos,

indispensáveis para uma vivência emancipatória e inclusiva dos indivíduos.

O Estado Democrático não se identifica com um Estado de Direito,

meramente formal, reduzido a simples ordem de organização, competências e

processo, de modo que se deve compreendê-lo enquanto instrumento de

legitimação de justiça social, e não mais como simples promovente da igualdade

formal e jurídica.

Especificamente sobre a mudança de postura que se instaura com o

Estado Democrático de Direito, implicando intervenção estatal em áreas sensíveis à

vida dos indivíduos, Canotilho, em sua magnum opus, assevera que

[...] quem defende uma perspectiva democrático-social do Estado (socialista ou social-democrática), aceita que na Constituição venham traçados os princípios fundamentais, socialmente conformadores; quem visualiza o problema da justiça sob uma ótica liberal-individualista contestará o paternalismo social da lei fundamental e a extensão dos efeitos externos nela consagrada, apelando para uma constituição da liberdade, para uma cura da elegância do Estado e para os perigos de sobrecarga do governo46.

Todas essas circunstâncias que envolvem o Estado, a democracia e seus

corolários trarão consequências para a aplicação e concretização dos interesses dos

cidadãos, principalmente porque, sendo o direito a única ferramenta de que dispõe o

aparelho estatal para o bem-estar social no Estado Constitucional, referidas

questões não podem ser olvidadas.

45 Para maiores detalhes ver HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 1991.

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