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3 BEM JURÍDICO, DIREITO PENAL E CONSTITUIÇÃO

3.7 Conceito e funções do bem jurídico

Estando devidamente esclarecido que a teoria do bem jurídico tem como

fundamento principal a legitimação da intervenção punitiva estatal, circunscrevendo

as condutas humanas merecedoras de sanção penal exclusivamente às ações que

ofendam os valores e interesses de maior relevância para a vida em comunidade,

restringindo, assim, a discricionariedade legislativa ordinária na tipificação de

condutas e cominação de penas, ao mesmo tempo em que salvaguarda a esfera de

liberdade dos indivíduos, interessante que se abra um parêntese para fixar o

conceito de bem jurídico e suas funções diante de um Estado Democrático de

Direito.

De início, insta destacar que não se está à procura de uma definição

perfeita sobre o instituto bem jurídico, até porque se reconhece a crítica que se dirige

172 Esclarecendo que não se fazendo presente qualquer lesão ou exposição a perigo a um específico bem jurídico, não há que falar legitimamente de intervenção punitiva estatal, Nilo Batista, a respeito do princípio da lesividade, afirma: “Este princípio transporta para o terreno penal a questão geral da

exterioridade e alteridade (ou bilateralidade) do direito: ao contrário da moral – e sem embargo da relevância jurídica que possam ter atitudes interiores, associadas, como motivo ou fim de agir, a um sucesso externo -, o direito ‘coloca-se face-a-face, pelo menos, dois sujeitos’. No Direito Penal, à conduta do sujeito autor do crime deve relacionar-se, como signo de outro sujeito, o bem jurídico (que era objeto da proteção penal e foi ofendido pelo crime)” (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 89).

173 PRADO, 2009, p. 59. A respeito da íntima associação entre o princípio da intervenção mínima e o Estado de Direito, Sávio Rodrigues Guimarães assevera: “Correlato ao princípio de proteção de bens jurídicos, e complementar a ele, é o postulado da intervenção mínima ou da ultima ratio. Dispõe seu enunciado que o recurso à sanção penal, com toda a sua gravidade, é possível apenas quando se estiver diante dos ataques mais graves aos bens jurídicos mais importantes e, mesmo assim, apenas quando nenhum outro ramo do direito dispuser de meios suficientemente preventivos para lhes enfrentar. Este postulado, tal qual a ofensividade, é uma imposição do Estado de Direito, sendo certo que sua acolhida constitucional também deriva da própria natureza constitucional dos direitos fundamentais” (RODRIGUES, 2013, p. 111-112).

100

ao problema da dificuldade, vagueza e fluidez do seu conceito

174

, senão que se

almeja tão somente aclarar o presente objeto de estudo.

No entanto, ainda assim, socorrendo-se das palavras de Eros Roberto

Grau

175

, há de se ponderar um conceito de bem jurídico que tome como premissa

substancial um ponto de vista crítico ao sistema, devendo-se, portanto, rejeitar os

conceitos dogmáticos

– imanentes ao direito posto – e acolher as iniciativas

transcendentes ao sistema

176

.

Realmente, se ao Direito Penal incumbe tutelar o maior desenvolvimento

possível das personalidades dos indivíduos integrantes do corpo social,

especialmente através da promoção dos direitos fundamentais de todos, é iniludível

que a identificação do bem jurídico seja anterior à norma posta pelo legislador,

determinando, já no momento da discussão legislativa, os critérios e requisitos sem

os quais o injusto penal carecerá de legitimidade constitucional.

Como exemplo de autores que perfilham uma posição de bem jurídico

transcendente ao sistema, dentro da qual são considerados pressupostos

indispensáveis para uma pacífica e livre convivência dos indivíduos, podem ser

174 Evidenciando a circunstância de que o bem jurídico ainda é um tópico de contornos imprecisos, Michael Bunzel afirma: “Existe, en mayor o menor medida, consenso sobre el contenido básico del concepto bien jurídico, así como sobre su significado en el sistema social de sanciones como punto de referencia esencial sobre la cuestión de la penalización de los comportamientos humanos, sin embargo, en relación com su concreción en el caso concreto y, especialmente, sobre su eficacia como postulado limitador en sentido estricto, el bien jurídico ofrece al observador en la doctrina y en la jurisprudencia, desde el principio de la moderna ciencia del Derecho penal, un cuadro muy poco unitário” (BUNZEL, Michael. La fuerza del principio constitucional de proporcionalidad como límite de la protección de bienes jurídicos en la sociedad de la información. Traducción María Gutíerrez Rodríguez. In: HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teoría del bien jurídico: ¿Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons Jurídicas y Sociales, 2007, p. 152). No mesmo diapasão, tem-se a cátedra de Roland Hefendehl para quem: “Desde hace mucho tiempo se está arrastando al concepto de bien jurídico a su lecho de muerte, exigiéndole prestaciones que simplemente ló superan. Lograr una determinación del contenido del bien jurídico a prueba de inferencias, lo que haría innecessaria la ulterior reflexión sobre la configuración material de un tipo penal, parece imposible” (HEFENDEHL, Roland. El bien jurídico como eje material de la norma penal. Traducción María Martín Lorenzo. In: HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teoría del bien jurídico: ¿fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons Jurídicas y Sociales, 2007, p. 179).

175

“Finalidade dos conceitos jurídicos é a de ensejar a aplicação de normas jurídicas. Não são usados para definir essências, mas sim para permitir e viabilizar a aplicação de normas jurídicas” (GRAU, 2014, p. 85).

176 Sobre a distinção entre a abordagem das teorias imanentistas e das posições transcendentalistas, Luiz Flávio Gomes escreve: “[...] as formulações imanentistas, justamente porque concebem o bem jurídico de forma ‘normativista’, é dizer, dentro do sistema jurídico, são formais e abstratas e convertem o bem jurídico em uma pura categoria valorativa, o que significa dizer que esvaziam completamente seu conteúdo e a sua função crítica, cumprindo, quando muito, funções simplesmente interpretativas e sistemáticas. Ao contrário, as posições transcendentalistas partem de uma premissa correta (de que o bem jurídico está além do sistema normativo, não situando a

origem do bem jurídico em uma decisão do legislador, senão em uma distinta instância, de natureza

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mencionados os textos de Jorge de Figueiredo Dias para quem há de se definir o

bem jurídico como “a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na

manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo

socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso”

177

.

A mesma senda é trilhada por Claus Roxin para quem os bens jurídicos

“são realidades vitais cuja diminuição prejudica, de forma duradoura, a capacidade

de rendimento da sociedade e vida dos cidadãos”

178

.

Luiz Regis Prado, ao construir seu modelo de bem jurídico tomando como

alicerce a noção de que o conteúdo desses interesses deve defluir dos valores

sociais cristalizados na consciência da comunidade, assevera:

[...] a noção de bem jurídico emerge dentro de certos parâmetros gerais de natureza constitucional, capazes de impor uma certa e necessária direção restritiva ao legislador ordinário, quando da criação do injusto penal. A tarefa legislativa há de estar sempre que possível vinculada a determinados critérios reitores positivados na Lei Maior que operam como marco de referência geral ou de previsão específica – expressa ou implícita – de bens jurídicos e a forma de sua garantia179.

No entanto, ainda que diante de toda a diversidade das noções

apresentadas, cuja conclusão é a dificuldade, senão impossibilidade, de se indicar

um conceito definitivo e acabado de bem jurídico

180

, as seguintes funções do instituto

podem ser claramente delineadas.

177 DIAS, 2007, p. 114. Ao se expressar sobre os bens jurídicos, Hans-Heinrich Jescheck aduz que estes devem ser considerados como “intereses vitales de la comunidad a los que Derecho Penal otorga su protección” (JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: parte general. Traducción José Luis Manzanares Samaniego. 4. ed. Granada: Comares Editorial, 1993, p. 231), no que é compartilhado por Johannes Wessels para quem os bens jurídicos são “os bens vitais, os valores sociais e os interesses juridicamente reconhecidos do indivíduo ou da coletividade, que, em virtude de seu especial significado para a sociedade, requerem proteção jurídica” (WESSELS, Johannes. Direito Penal: parte geral. Tradução Juarez Tavares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 1976, p. 4).

178 ROXIN, 2013, p. 18.

179 PRADO, 2009, p. 81. Em que pese apresentar certo reducionismo, Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli apresentam ideia semelhante, ao aduzirem que “bem jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade de um indivíduo com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante a tipificação penal de condutas que o afetam” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2007, p. 397).

180 Ao contrário do reproche que normalmente se impinge à figura do bem jurídico por não ostentar um conceito definitivo e de ampla aceitação, Knut Amelung entende que essa plurivocidade do instituto é fator de encômios ao instituto. São essas suas palavras: “El carácter «vacío» de este concepto, la absoluta indeterminación del juicio de valor que crea el bien, es al mismo tiempo la razón de su riqueza. El concepto de bien jurídico en sí mismo no dice nada sobre el contenido que hayan de tener los juicios de valor para poder convertir algo en un bien jurídico, y por ello está abierto a casi cualesquiera valoraciones, transfiriéndolas al sistema dogmático jurídico-penal por medio de sus numerosas funciones en el mismo, sin que éste se vea categorialmente sacudido por cada nueva norma y tenga por ello que ser reconstruído. Gracias a esta característica, el dogma del bien jurídico se convierte en punto de conexión de la política con la dogmática, y el concepto de bien

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A primeira função de destaque do bem jurídico é a de fundamentar o

trabalho do legislador ordinário de seleção das condutas incriminadas, as quais se

legitimam apenas e tão-somente na medida em que tutelam os interesses

socialmente valorizados pela comunidade e devidamente consagrados no Texto

Constitucional.

A segunda função do bem jurídico é a de inquinar de ilegítimos os tipos

penais que não salvaguardem bens relevantes do corpo social, fazendo com que

sejam descriminalizadas condutas previstas como injusto penal e que não ostentem

qualquer danosidade social.

Referida função crítica foi recentemente cumprida pelo legislador ordinário

quando se aboliu do ordenamento jurídico pátrio, por meio da Lei n.º 11.106/05, os

delitos de sedução e adultério, catalogados, respectivamente, nos artigos 217 e 240

do Código Penal brasileiro.

Com relação às funções atribuídas ao instituto sub examen, Luiz Regis

Prado considera como as mais relevantes:

1. Função de garantia ou de limitar o direito de punir do Estado: o bem jurídico é erigido como conceito limite na dimensão material da norma penal. O adágio nullum crimen sine injuria resume o compromisso do legislador, mormente em um Estado Democrático e Social de Direito, em não tipificar senão aquelas condutas graves que lesionem ou coloquem em perigo autênticos bens jurídicos. Essa função, de caráter político-criminal, limita o legislador em sua atividade no momento de produzir normas penais;

2. Função teleológica ou interpretativa: como um critério de interpretação dos tipos penais, que condiciona seu sentido e alcance à finalidade de proteção de certo bem jurídico. [...] “Não é possível interpretar, nem portanto conhecer, a lei penal, sem lançar mão da idéia de bem jurídico”;

3. Função individualizadora: como critério de medição da pena, no momento concreto de sua fixação, levando-se em conta a gravidade da lesão ao bem jurídico;

4. Função sistemática: como elemento classificatório decisivo na formação dos grupos de tipos da parte especial do Código Penal. Os próprios títulos ou capítulos da parte especial são estruturados com lastro no critério do bem jurídico em cada caso pertinente.

Em suma, a função limitadora opera uma restrição na tarefa própria do legislador, a teleológica-sistemática busca reduzir a seus próprios limites a matéria de proibição e a individualizadora diz respeito à mensuração da pena/gravidade da lesão ao bem jurídico181.

Seja como for, entenda-se o conceito e as funções de bem jurídico como

se entender

182

, imperioso que se tenha sempre em mente que o arquétipo material

jurídico en un concepto complementario de la positividad del Derecho que traslada el dinamismo de lo político a la estabilidad del sistema jurídico” (AMELUNG, 2007, p. 232).

181 PRADO, 2009, p. 50-51.

182 Susana Aires de Sousa aponta, basicamente, as seguintes funções à figura do bem jurídico, ao assim se pronunciar: “A determinação do bem jurídico tutelado através da criminalização de determinadas condutas constitui um prius, um critério legitimador da intervenção punitiva que se

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do Estado democrático, responsável pela promoção da dignidade da pessoa

humana, não se compadece com a fixação de injustos penais, enquanto

manifestação da restrição da liberdade dos indivíduos, desvinculados da defesa dos

bens mais importantes para o convívio social, ao mesmo tempo em que não se

permite que bens jurídicos de tomo para a sociedade não estejam devidamente

protegidos pela norma penal.