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2 A EVOLUÇÃO DO ESTADO – A MISSÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO

2.6 O papel dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito

Estando já devidamente caracterizada a questão do Estado Democrático

de Direito com o propósito de transformação da realidade social, importa, por ora,

destacar a íntima relação existente entre a democracia e o respeito aos direitos

fundamentais.

A relação entre esses dois elementos estruturais da vida política e jurídica

de uma sociedade é tratada com acuidade por boa parte da doutrina que se propõe

a analisar o vínculo da democracia com os direitos fundamentais.

Afinal, não se revela coerente que um Estado que se anuncia

enfaticamente como democrático possa desrespeitar, ou mesmo se omitir a

promover, os direitos e as garantias alcançadas e usufruídas por seus cidadãos.

É exatamente da intrínseca conexão entre a democracia e os direitos

fundamentais, no âmbito das sociedades contemporâneas, que se criam as

condições necessárias para o bem-estar social. Daí que se pode afirmar, com

segurança, que pode até haver direito sem democracia, mas não há democracia

sem direito, haja vista que o espírito democrático exige normas definidoras dos

modos de aquisição e exercício do poder.

Identificando a ligação entre democracia e direitos fundamentais, o

italiano Norberto Bobbio, em sua obra A Era dos Direitos, logo na Introdução do seu

trabalho, escreve:

O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das Constituições democráticas modernas. A paz, por sua vez, é o pressuposto necessário para o reconhecimento e a efetiva proteção dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional. Ao mesmo tempo, o processo de democratização do sistema internacional, que é o caminho obrigatório para a busca do ideal da ‘paz perpétua’, no sentido kantiano da expressão, não pode avançar sem uma gradativa ampliação do reconhecimento e da proteção dos direitos do homem, acima de cada Estado. Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico; sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais deste ou daquele Estado, mas do mundo47.

47 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de janeiro: Elsevier, 2004, p. 1.

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O tratadista italiano Luigi Ferrajoli não destoa do entendimento esposado

pelo seu compatriota Bobbio ao atestar que os fundamentos axiológicos dos direitos

fundamentais “são identificáveis, a meu ver, nos valores da igualdade, da

democracia, da paz e da tutela dos mais fracos por intermédio daqueles direitos

perseguidos”

48

.

Por certo, a democracia é o requisito da garantia jurídica e de efetivo

respeito aos direitos fundamentais. Por sua vez, em uma típica relação de mão

dupla, os direitos fundamentais são pré-requisitos da democracia, consentindo com

que o indivíduo possa participar do processo e escolhas democráticos (exercício dos

direitos políticos), e reunir as condições culturais e materiais que lhe permitirão a

participação ativa e efetiva na política (liberdade de expressão, independência

econômica, garantia de direitos sociais etc.).

Nesse azo, os direitos fundamentais, enquanto direitos subjetivos de

liberdade, criam um espaço contra o exercício de poder arbitrário, e como

legitimadores de um domínio democrático, asseguram o exercício da democracia

mediante a exigência de garantias de organização e de processos com

transparência democrática (princípio majoritário, publicidade crítica etc.).

Trilhando a mesma senda dos citados doutrinadores e da argumentação

ora expendida, José Joaquim Gomes Canotilho também se posiciona pela umbilical

ligação entre os direitos fundamentais e a democracia, aduzindo que

[...] tal como são um elemento constitutivo do Estado de Direito, os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático. Mais concretamente: os direitos fundamentais têm uma função democrática dado que o exercício democrático do poder: 1 - significa a contribuição de todos os cidadãos para o seu exercício (princípio direito de igualdade e da participação política); 2 – implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício (o direito de associação, de formação de partidos, de liberdade de expressão, são, por ex., direitos constitutivos do próprio princípio democrático; 3 – envolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais, econômicos e culturais, constitutivo de uma democracia econômica, social e cultural. Realce-se esta dinâmica dialética entre os direitos fundamentais e o princípio democrático. Ao pressupor a participação igual dos cidadãos, o princípio democrático entrelaça-se com os direitos subjetivos de participação e associação, que se tornam, assim, fundamentos funcionais da democracia49.

48 FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: uma discussão sobre direito e democracia. Tradução Alexander Araujo de Souza. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 30-31.

49 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1995, p. 430. Paulo Bonavides, ao acrescentar a democracia como direito de quarta geração, seguindo a clássica divisão tripartida do precursor Karel Vasak, assinala: “A multifuncionalidade dos direitos fundamentais, os métodos materiais e concretistas da hermenêutica contemporânea, o princípio da proporcionalidade enquanto corretivo ao arbítrio do Estado contra a

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Donde se infere que o Estado Democrático de Direito é basicamente um

Estado de direitos fundamentais, no sentido de que é composto por um arcabouço

de normas constitucionais superiores, que obrigam os poderes constituídos a

respeitá-las, observando o seu núcleo fundamental, sob pena de nulidade dos

próprios atos normativos e da declaração de sua inconstitucionalidade.

Outro aspecto de tomo que assoma diante da nova configuração do

Estado Democrático de Direito e de sua indisfarçável ligação com os direitos

fundamentais é o respeito à dimensão objetiva desses interesses e as

consequências que essa feição dos direitos fundamentais implica à atuação do

espírito democrático que circunda o Estado contemporâneo.

A dimensão objetiva dos direitos fundamentais, de recente configuração

histórico-doutrinária, se soma à dimensão subjetiva, de domínio preponderante no

século XIX e até meados do século XX, segundo a qual, seguindo a postura liberal-

clássica do Estado, os direitos fundamentais garantem a liberdade do indivíduo e a

igualdade em seu sentido meramente formal (igualdade de todos perante a lei, isto

é, igualdade de direitos quando positivados em instrumento legal).

No entanto, empós o ocaso do Estado liberal-oitocentista e do Estado

social restou evidente que o simples reconhecimento de liberdades, conforme assim

se caracteriza a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, era insuficiente para

garantir concretamente as promessas do Estado constitucional.

Realmente, o reconhecimento de se poder resistir à intervenção estatal na

esfera de liberdade individual de cada cidadão, que com o advento do Estado

burguês se revelava tão relevante para os direitos àquela época, já não se mostrava

mais tão importante para a transformação da realidade que teimava em não se

alterar.

De acordo com o aspecto meramente subjetivo dos direitos fundamentais,

na relação jurídica que se cria entre o indivíduo e o Estado, aquele pode exercer

pessoa humana, a constitucionalização ou juspublicização dos princípios gerais de Direito são pressupostos instrumentais de capital importância e aplicação indeclinável para caracterizar a democracia nesta idade em que o princípio democrático já não pode deixar de ser proclamado e reconhecido como um direito fundamental. Da democracia assim concebida se infere a formação de uma terceira modalidade de Estado de Direito, que outra coisa não é senão o Estado social, conduzido no aperfeiçoamento de suas instituições ao mais alto grau de juridicidade. O Estado de Direito da terceira dimensão – derradeiro capítulo dessa evolução – concretiza enfim a liberdade na realidade social e é, ao mesmo passo, a democracia que se substantivou com o primado dos direitos fundamentais” (BONAVIDES, 2012, p. 542-543).

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uma liberdade negativa, ao mesmo tempo em que o último, de forma simétrica,

possui a obrigação negativa de não fazer, de não intervir na esfera individual.

Socorrendo-se das palavras de Daniel Sarmento, para quem a dimensão

subjetiva dos fundamentais, como mero dever jurídico de abstenção, está

intimamente ligada à teoria liberal, tem-se que

[...] os direitos fundamentais no constitucionalismo liberal eram visualizados exclusivamente a partir de uma perspectiva subjetiva, pois cuidava-se apenas de identificar quais pretensões o indivíduo poderia exigir do Estado em razão de um direito positivado na sua ordem jurídica50.

No entanto, o contínuo avanço dos estudos de Direito Constitucional,

sobretudo após o fim da 2ª Guerra Mundial, exigindo uma nova postura por parte do

Estado diante das suas relações com os indivíduos, implicaram uma mudança

expressiva na concepção dos direitos fundamentais.

À visão formalista clássica dos direitos fundamentais como prerrogativas

“destinadas, em primeira instância, a proteger a esfera de liberdade do indivíduo

contra intervenções dos Poderes Públicos”

51

, será acrescentada, sem que isso se

traduza como falta de consideração à tarefa tradicional dos direitos fundamentais,

uma nova leitura, segundo a qual, os efeitos desses interesses, por representarem

“os valores nucleares de uma ordem jurídica democrática”

52

, não podem se resumir à

limitação jurídico-negativa da atuação do Estado.

Nessa linha, o tratadista português Vieira de Andrade pontifica em

magistério vazado nos seguintes termos:

[...] os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares, antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe a perseguir53.

Com efeito, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais permite, para

além da simples restrição ao exercício do poder político, a atribuição de efeitos

jurídicos concretos mesmo àquelas normas consagradoras que, pela sua natureza,

50 SARMENTO, DANIEL. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 105.

51 Cf. Caso Lüth-Urteil BVerfGE 7, 198 (204). Para maiores detalhes ver SCHWABE, Jürgen. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Tradução Beatriz Hennig et al. Montevidéu: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005.

52 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 32.

53 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p. 144-145.

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exigem uma integração legislativa para criação de direitos subjetivos pelos seus

titulares.

Assim considerando, os direitos fundamentais constituem, além de

direitos de defesa do cidadão contra o Estado, dimensões positivas para o

preenchimento intrínseco, através do poder de conformação do legislador

democrático, desses direitos

54

.

Assim, em sua interação com a atividade estatal, os direitos fundamentais passam a projetar-se em dois sentidos (uma espécie de viagem de ida e volta): (a) como direitos de defesa, indicando o dever do Estado de respeitá- los (perspectiva negativa), e (b) como imperativos de tutela, indicando o dever do Estado de protegê-los ativamente (perspectiva positiva) diante de ataques provenientes de terceiros mediante a implementação de medidas eficazes (deveres de proteção)55.

Sob este prisma, não existem dúvidas de que o advento do Estado

Democrático de Direito, enquanto novo standard absorto a uma ordem jurídica e às

atividades do Estado com o propósito de transformação da realidade, está

intimamente ligado à dimensão objetiva dos direitos fundamentais, cuja

compreensão material liga-se a uma perspectiva comunitária dos direitos humanos.

Roborizando a argumentação ora esposada, Paulo Bonavides escreve

que “a concepção material dos direitos fundamentais reabilita o Estado e o consagra

como agente e protetor desses direitos, conferindo-lhe aquela dignidade da qual o

liberalismo o privara”

56

.

54 José Joaquim Gomes Canotilho, ao tratar da divisão de poderes, visualiza também as dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, o que o faz nos seguintes termos: “As três dimensões anteriormente analisadas – juridicidade, constitucionalidade, direitos fundamentos – indiciam já que o princípio do Estado de Direito é informado por duas ideias ordenadoras: (1) ideia de ordenação subjetiva, garantindo um status jurídico aos indivíduos essencialmente ancorado nos direitos fundamentais; (2) ideia de ordenação objectiva, assente no princípio da constitucionalidade, que, por sua vez, acolhe como princípio objectivamente estruturante o princípio da divisão de poderes. Essas duas dimensões não se divorciam uma da outra, mas o acento tônico caberá agora à ordenação funcional objectiva do Estado de Direito” (CANOTILHO, 1995, p. 250).

55 FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal: garantismo, deveres de proteção, princípio da proporcionalidade, jurisprudência constitucional, jurisprudência dos tribunais de direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 13).

56 BONAVIDES, 2012, p. 541. Em outro fragmento da mesma obra, o constitucionalista cearense, indicando as funções contemporaneamente cumpridas pelos direitos fundamentais, assim se manifesta sobre a dimensão objetiva: “Alargando, ao mesmo passo, as funções dos direitos fundamentais, dantes totalmente subjetivos, a nova concepção material lhes outorga dimensão de objetividade de tamanha latitude que eles deixam de ser, segundo pondera notável publicista alemão, um veto ao Estado, que fere a liberdade, e se tornam, no seu dizer, um mandato, que a Sociedade confere ao Estado para promover a própria liberdade. Desse modo, acrescenta, o elemento subjetivo da liberdade cede lugar aos componentes objetivos, institucionais, valorativos e funcionais. Disso resulta um considerável alargamento das funções dos direitos fundamentais, que já não se circunscrevem meramente aos direitos de defesa (Abwehrrecht), mas passam a adquirir quatro novas funções: primeiro, a função axiológica ou função normativa, com que elegem, dispõem e decidem sobre valores (wertentscheidende Grundsatznormen); segundo, a função institucional,

41

Em face do raciocínio ora orquestrado, pode-se afirmar que um dos

corolários inafastáveis do Estado Democrático de Direito é a salvaguarda dos

direitos fundamentais consagrados, não apenas sob a dimensão meramente

subjetiva, predominante no Estado liberal-oitocentista, segundo a qual os direitos

fundamentais, basicamente, se cingem à proteção do indivíduo contra a intervenção

estatal, mas também sob a dimensão jurídico-objetiva, sob o pálio de que o Estado

tem o dever estatal de promover os direitos fundamentais que ele mesmo reconhece

como legítimos em seu ordenamento jurídico.