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2 A EVOLUÇÃO DO ESTADO – A MISSÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO

2.7 O Estado Democrático de Direito e o princípio da justiça social

Absorvidas as digressões acima esposadas, as quais se escoram na

premissa de que existe uma ligação indissociável entre o Estado Democrático de

Direito e a necessária reverência aos direitos fundamentais, deve-se também fazer

conhecer, ou lembrar, se assim soar mais pertinente, que enquanto arcabouço de

normas e órgãos vocacionados para a transformação da realidade, este mesmo

Estado também mantém um sério e intangível compromisso com a promoção da

justiça social.

De fato, se entre as características que identificam o Estado ora vigente

na contemporaneidade, pode-se mencionar a sua criação e regulamentação por

uma Constituição, o progresso da democracia, a divisão de poderes, o respeito à

legalidade e à segurança jurídica, não se pode olvidar a importância a ser dedicada

à questão da justiça social.

Nesse azo, imperioso destacar que a própria implementação e

concretização dos direitos sociais, surge como uma bússola para orientar o Estado

Democrático, na medida em que esta é uma medida necessária para a redução das

desigualdades econômico-sociais e a promoção de uma legítima justiça social.

Numa visão garantista, claro está que o papel do Estado Social e Democrático de Direito é, ao mesmo tempo, abster-se de violar direitos individuais (garantia-liberal-negativa) e lançar-se ao desafio de realizar programas sociais com o fim de minimizar as desigualdades (garantia social-positiva). O poder, fica, assim, limitado, quer por meio das proibições (os órgãos de poder não podem intervir indiscriminadamente; o uso da força é restrito), quer por meio das obrigações (normas de mandato direcionadas

que os transforma em garantias institucionais (institutionelle Gewährleistungen); a seguir, a função participativa (Teilhaberechte), que afiança a participação da cidadania na formação da vontade estatal e, de último, a função postulativa ou função reinvidicante (Anschpruchgrundlage)” (BONAVIDES, 2012, p. 541).

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aos poderes públicos, determinando o que devem fazer). Nesse jogo de equilíbrio, o papel da democracia é fundamental, tanto sob o prisma formal ou político, como sob o aspecto material ou substancial57.

Em se tratando da perquirição da hipótese brasileira, referida constatação

se revela ainda mais insofismável, haja vista que a Constituição Federal de 1988

devotou especial atenção ao problema da justiça social, estabelecendo em seu art.

1.º os fundamentos da cidadania e da dignidade da pessoa humana e no art. 3.º

previu como objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e

solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das

desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos os indivíduos.

Destarte, iniludível a ilação de que as escolhas adotadas pelo constituinte

originário impõem que a estrutura e o sistema do Estado Democrático de Direito

brasileiro se orientem a uma atuação em todas as esferas de poder que distingam o

atendimento a todas essas aspirações constitucionais, até que, de fato, esse padrão

jurídico-filosófico de Estado vença a previsão meramente formalista de direitos e

alcance a materialidade suficiente para a realização da justiça social

58

.

Intrinsicamente ligada a sua existência, o Estado Democrático de Direito

possibilita a consolidação de um entendimento material que se singulariza pela

finalidade essencial do Estado na persecução do bem comum e na implementação

da justiça social.

Por via de consequência, afirma-se que o fundamento individualizador do

Estado Democrático de Direito brasileiro é ser um Estado com a impreterível função

de alcançar o bem comum e a justiça social; é dizer, o Estado Democrático é

constituído para proporcionar a dignidade da pessoa humana e atender as

necessidades da coletividade.

De fato, no caso do Estado brasileiro, a Constituição Federal de 1988,

para além do rol de liberdades individuais que assegura, oferece um conjunto de

57 PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Direito Penal e Estado democrático de direito: uma abordagem a partir do garantismo de Luigi Ferrajoli. Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2006, p. 47.

58 Mesmo alertando sobre as dificuldades de entendimento a respeito da concepção de justiça social, a qual estaria sujeita a diversas circunstâncias, Eros Roberto Grau assim se manifesta sobre o tema: O princípio da justiça social, assim, conforma a concepção de existência digna cuja realização é o fim da ordem econômica e compõe um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1.º, III). [...] Justiça social, inicialmente, quer significar superação das injustiças na repartição, a nível pessoal, do produto econômico. [...] A posição ocupada pelo princípio na Constituição de 1988 [...] lhe confere extremada relevância enquanto conformador, também, de todo exercício de atividade econômica” (GRAU, Eros Roberto, A ordem econômica na Constituição de 1988. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 224-225).

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direitos sociais, os quais o aparelho estatal não deve desconsiderar em sua atuação,

sob o risco de ofender o programa fundamental que o identifica.

A Constituição do Brasil, de 1988, define, como resultará demonstrado ao final desta minha exposição, um modelo econômico de bem-estar. Esse modelo, desenhado desde o disposto nos seus arts. 1º e 3º, até o quanto enunciado no seu art. 170, não pode ser ignorado pelo Poder Executivo, cuja vinculação pelas definições constitucionais de caráter conformador e impositivo é obvia. Assim, os programas de governo deste e daquele Presidentes da República é que devem ser adaptados à Constituição, e não o inverso. A incompatibilidade entre qualquer deles e o modelo econômico por ela definido consubstancia situação de inconstitucionalidade, institucional e/ou normativa. Sob nenhum pretexto, enquanto não alteradas aquelas definições constitucionais de caráter conformador e impositivo poderão vir a ser elas afrontadas por qualquer programa de governo. E assim há de ser, ainda que o discurso que agrada à unanimidade nacional seja dedicado à crítica da Constituição. A substituição do modelo de economia de bem-estar, consagrado na Constituição de 1988, por outro,

neoliberal, não poderá ser efetivada sem a prévia alteração dos poderes

contidos nos seus arts. 1º, 3º e 17059.

Mesmo mantendo intactas as liberdades conquistadas historicamente, o

Estado Democrático brasileiro vai mais além; transforma-se em protagonista da

comunhão dos direitos, liberdades e garantias individuais com os direitos sociais, de

modo a conduzir-se para a solução da difícil questão da justiça social.

Assim, com a promulgação da Carta Constitucional de outubro de 1988,

tem-se edificada uma República orientada para o bem comum e que tem a igualdade

social como finalidade nuclear; ancorada em uma democracia humanista, o Estado

brasileiro deve buscar concretizar os interesses de todos os seus membros.

Somam-se às conquistas abraçadas pelos modelos anteriores as ideias

de solidariedade e de justiça social

60

.

59 GRAU, 2014, p. 46.

60 Paulo Ferreira da Cunha, escrevendo sobre a solidariedade, o princípio da justiça social e a necessária atuação positiva do Estado nesse novo modelo, e instando a todos a aderirem a esse espírito, anota: “E há, sem dúvida, mesmo para o jurista (e não só para o político), confortável nas suas fórmulas, tantas vezes, um dilema ético que não poderá deixar-se de pôr-se: Fará ele ou não uma ‘opção pelos pobres’? Não é uma dessas opções de classe vétero-marxistas, com toda a sua carga. Mas é um desafio de coragem, como bem afirmou Gomes Canotilho, comentando um dos que esse problema disparou à quietude dos juristas. No fundo, há uma ‘responsabilidade social dos juristas’, só que essa não se traduz, como a das empresas, em dádivas e apoios a causas sociais. Mas num posicionamento. Ao contrário dos seus caluniadores, embora em todos os sistemas haja excepções e aproveitadores das malhas do sistema, a essência deste tipo de Estado não é o parasitismo social, o definhamento do empreendimento, o prêmio da preguiça, o parasitismo deletério, ou o assistencialismo miserabilista. Ele existe porque, ao contrário do que dizem tantos neoliberais, ainda não curados (são incuráveis) pela prova real da derrocada da economia de casino à vista pelas crises recentes, provocadas de forma já reconhecidamente criminosa (e com condenados), os pobres não são marginais incapazes, os célebres ‘perdedores’ (losers) porque incompetentes, ‘madraços’ etc. Há sobretudo pobres – e sempre os teremos entre nós, conforme diz o Evangelho – porque há a caprichosa deusa fortuna, há sorte e má sorte. E quando a má sorte bate à porta de qualquer um, sim, os impostos de todos devem servir para acudir a esse. Independentemente de ter contribuído muito ou pouco. Isso é solidariedade, isso é fraternidade, isso

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É exatamente por isso que não se pode abordar qualquer democracia

como uma ideia que sofre de paralisia; muito ao contrário, a democracia é, por

natureza, um processo dinâmico voltado para a transformação da realidade que

cerca os indivíduos. Os propósitos que alimentam qualquer democracia passam

necessariamente pela mudança de paradigma, incluindo socialmente os cidadãos

órfãos dos programas estatais.

Nesse sentido, Luiz Antonio Machado da Silva, afora afirmar que a

democracia não é “uma estrutura parada no tempo, congelada, cristalizada”

61

,

destacando o liame entre democracia e questões sociais, escreve:

Neste sentido, quando se fala em democracia, o que está em questão são sempre os problemas da democratização ou, para usar a expressão da moda, a ‘questão democrática’. Se o cerne dos regimes democráticos é a criação de um espaço público em que superiores e inferiores negociem como iguais, embora eles na vida privada decididamente não sejam iguais, a democracia requer a criação de um mínimo de condições de sustentação dos inferiores em seu enfrentamento com os superiores no espaço público. Para que os inferiores não sejam esmagados, não se revoltem e/ou não abandonem a luta, é preciso alguma interferência sobre a vida privada, de modo a impedir que os inferiores se enfraqueçam a ponto de não poderem exercer sua cidadania, isto é, negociar pacificamente a redução das hierarquias sociais. É a isto que se chama de política social, que não é uma dádiva gratuita do Estado, mas o resultado de pressões dos inferiores, até certo ponto aceitas pelos superiores. Por aí se vê que política social e regime democrático são termos indissociáveis, pois um é a condição prática, concreta, do outro. Na realidade, os conteúdos, as formas, as dimensões da política social, constituem a substância da questão democrática a cada momento62.

Daí aflora a ilação de que o espírito democrático, reitor da sociedade

moderna, não apenas não pode de ser indiferente aos problemas de justiça social,

como tem a incumbência de dissipá-los por intermédio de atuação propositiva do

Estado.