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3 BEM JURÍDICO, DIREITO PENAL E CONSTITUIÇÃO

3.2 O delito como violação de um direito subjetivo

A primeira tentativa consequente e orquestrada de um conceito material

de crime deve ser atribuída a Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach, para quem

o delito há de ser tratado como a conduta, proibida pela norma penal, que causa a

violação de um direito subjetivo tendo por finalidade a proteção dos indivíduos contra

o Estado

100

.

99 SOUSA, 2009a, p. 188.

100 A respeito da autoridade das ideias de Feuerbach e de seu apego à liberdade dos indivíduos contra as arbitrariedades historicamente praticadas pelo Estado, Janaina Conceição Paschoal escreve que o tratadista alemão “que teve formação filosófica e depois jurídica, sempre se preocupou com as questões afetas às relações havidas entre Estado e indivíduo, a exemplo do livro

Anti-Hobbes: overro i limite del potere supremo e il diritto coactivo dei cittadini contra il soverano,

escrito em 1798, no qual o jurista estudou o direito de resistência dos indivíduos perante o soberano, opondo-se, portanto, à ideia de submissão absoluta ao Leviatã. Ao apresentar sua obra, Feuerbach assevera que preferiu opor-se a Maquiavel, porque, enquanto Maquiavel se ateve exclusivamente ao campo político, Hobbes foi o defensor mais coerente do despotismo e da obediência” (PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, criminalização e Direito Penal mínimo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 28).

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Desse modo, todo aquele que viola a liberdade garantida pelo contrato

social e pelas leis penais pratica um crime, sendo este, em sentido amplo, uma ação

contrária ao direito subjetivo do outro, cominada na norma penal

101

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No centro da definição do delito, segundo a teoria de Feuerbach,

encontra-se uma faculdade privada atribuída ao indivíduo pela ordem jurídica

positiva e que é violada pela conduta criminosa. De acordo com Feuerbach, onde

não existir qualquer direito subjetivo a ser protegido, não há que se falar em conduta

criminosa, ainda que algum objeto concreto venha a ser atingido.

Em linhas gerais, a lei penal é editada pelo Estado para tutelar a

faculdade jurídica dos indivíduos. Dessa forma, o Estado cumpre seu papel

determinado pelo contrato social de zelar pelas liberdades fundamentais dos seus

cidadãos.

Alinhavando suas ideias de afastamento do Direito Penal mítico e do

absolutismo, Feuerbach se posicionava contra a criminalização de condutas que

tutelassem qualquer propósito eudemonista, moralista ou religioso, haja vista que

essas esferas da vida humana inscrevem-se no espaço íntimo de liberdade de cada

indivíduo.

Destacando o trabalho de Feuerbach para a instauração de um Direito

Penal exorcizado da moral e assente em juízo crítico da atuação do legislador penal,

Susana Aires de Sousa escreve:

O autor do Código Penal da Baviera recusa ao direito penal quaisquer finalidades eudonistas ou religiosas, rompendo com a realidade herdada do Estado teocrático e procurando fundamentar o ilícito penal – pelo menos no plano dos princípios – através da referência exclusiva aos direitos originários dos cidadãos ou do Estado. [...] O objecto do crime era, deste modo, composto pelos direitos subjectivos enquanto instrumentos de concretização da liberdade pessoal e individual. Só a sua proteção poderia, numa visão contratualista e liberal do Estado, justificar a intervenção

101 Com referência ao direito de resistência dos indivíduos defendido por Feuerbach na hipótese de as cláusulas contidas no contrato social não sejam cumpridas, Salo de Carvalho aduz: “Os direitos (subjetivos) para Feuerbach seriam externos, ou seja, direitos naturais anteriores ao Estado e que com ele não desapareceriam. Assim, cria condição para o seu respeito e garantia, ficando a possibilidade de resistência como alternativa em caso de sua violação por parte do ente público. Na trilha de Locke, os ‘direitos naturais’ não estariam, como em Hobbes, Kant e Rousseau, totalmente alienados ao Estado pelo rito de passagem da natureza à civilização. Tanto em Feuerbach, como em Marat, os indivíduos preservam a esfera da personalidade que, além de impedir a ingerência do Estado (v.g. a liberdade de consciência religiosa), permite o rompimento do contrato caso este descumpra sua função. Se do delito, descumprimento contratual por parte do indivíduo, surge o poder do Estado em punir, evitando assim o mal maior da vingança privada, do abuso do poder público nasce o direito de resistência, pois rompido o elo fundante” (CARVALHO, Salo de. Pena e garantias: a crise do direito e do processo penal, o garantismo jurídico, as teorias da pena, os sistemas de execução, a lei de execução penal, os conflitos carcerários, os direitos (de resistência) dos presos. 3. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 45).

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punitiva. Frente a um poder estatal absolutista, a vinculação do crime aos direitos subjectivos de liberdade pré-positivos funciona pela primeira vez como padrão crítico da criminalização102.

As ideias propugnadas por Feuerbach ganharam corpo quando da

elaboração do Código Penal da Baviera, de 1813, texto no qual é manifesta a opção

por não criminalizar condutas que atentavam contra a religião ou a moral, deixadas a

partir de então aos cuidados das esferas administrativas e policiais.

Na realidade, por entender que cabe exclusivamente ao Estado assegurar

a liberdade de cada indivíduo, Feuerbach desenvolve seu projeto separando, de um

lado, o direito, e do outro, a moral e a religião

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Diante disso, o Direito Penal, coerentemente com o emergente ideal

filosófico e político da época, fundado na ideia de liberdade do indivíduo diante do

aparelho estatal, passa a estruturar-se de acordo com a premissa de lesão aos

direitos subjetivos, refletindo a essencialidade dos limites da intervenção estatal, cuja

missão deve ser ratificar a coexistência pacífica entre os seres humanos.

A respeito dos atributos fundamentais dessa nova ótica desenhada pelos

ideais iluministas, consolidados pela obra de Feuerbach, Luiz Flávio Gomes

pontifica:

Contratualismo (o contrato social como fundamento do direito de punir), utilitarismo (a pena como meio de defesa da sociedade), legalismo (que os

delitos e as penas sejam descritos na lei e que o juiz esteja a ela vinculado de maneira rígida) e secularização (autonomia do Direito penal diante das leis divinas e poder religioso), ao lado da lesão a direitos subjetivos,

danosidade social e necessidade da pena, configuram a maior parte dos

enunciados básicos da política criminal clássica e liberal, que historicamente surge como reação à arbitrariedade da justiça (do “Ancien Régime”, do

102 SOUSA, 2009a, p. 188.

103 Em sentido contrário, Bernd Scünemann, mesmo reconhecendo a reviravolta produzida pela pena de Feuerbach, insiste que o tratadista alemão ainda se curvava a criminalização de condutas meramente imorais: “Respecto a FEUERBACH, aunque en su filosofía del Derecho penal y, en principio, también en el Código Penal bávaro de 1813 por él elaborado encontramos la restricción del Derecho penal al menoscabo de los derechos subjetivos del individuo; también es cierto que concebía los delitos contra la moral como contravenciones de policía altamente criminalizadas y que en su manual tampoco deja lugar a dudas sobre su merecimiento de pena” (SCHÜNEMANN, Bernd. El principio de protección de bienes jurídicos como punto de fuga de los límites constitucionales de los tipos penales y de su interpretación. In: HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teoría del bien jurídico: ¿Fundamento de legitimación del Derecho Penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons Jurídicas y Sociales, 2007, p. 205). No mesmo sentido, Renato de Mello Jorge Silveira registra que “a grande crítica à sua teoria [de Feuerbach] residia no fato de que existiam ações que, apesar de não ofenderem tais direitos subjetivos, ainda assim, eram punidas. Caso evidente de tal situação era representado pelos crimes contra a honestidade. Grande discussão também se deu quanto às chamadas infrações policiais (polizeivergehen). Ainda que não lesionassem direitos subjetivos, Feuerbach entendia ser justificável uma punição, já que tais condutas colocavam em perigo a ordem e a seguridade social” (SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal supra-individual: interesses difusos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. (Série Ciência do Direito Penal Contemporânea, v. 3), p. 38).

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absolutismo), à instrumentalização política do jus puniendi, à carência de garantias (substanciais e processuais), ao casuísmo e à crueldade das penas104.

Com efeito, o principal legado das ideias de Feuerbach foi a fixação de

limites ao poder punitivo do Estado, uma vez que, de acordo com sua doutrina,

foram divulgadas noções de política criminal no pensamento da época evidenciando

a necessidade de que as descrições típicas do legislador dependessem da

demonstração de efetiva lesão a direito subjetivo alheio; sem uma lesão a esses

direitos, não haveria que se falar em crime a ser punido

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No entanto, como toda doutrina que promove uma reviravolta no

pensamento corrente, as ideias de Feuerbach sofreram intensas críticas por parte de

seus opositores, recaindo a maioria delas no fato de que o conceito de direito

subjetivo suscitava bastantes controvérsias, o que acabava por produzir diversos

problemas de ordem prática.

Mesmo assim, nem mesmo os mais implacáveis críticos de Feuerbach

contestaram o fato de que, em face das constantes arbitrariedades praticadas no

período que antecedeu o Iluminismo, devidamente escoradas em uma legislação

que não encontrava limites para a criminalização de condutas, circunscrever a

aplicação do Direito Penal à salvaguarda de um direito subjetivo significava um

imensurável avanço qualitativo na eterna luta de proteção dos indivíduos contra o

Estado.

104 GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal: normas penais primárias e secundárias, normas valorativas e imperativas, introdução ao princípio da ofensividade, lineamentos da teoria constitucional do fato punível, teoria do bem jurídico-penal, o bem jurídico protegido nas falsidades documentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. (Série As ciências criminais no século XXI, v. 5), p. 73-74.

105 Assim se posiciona Winfried Hassemer sobre o contributo de Feuerbach à construção de um Direito Penal vocacionado para a tutela de bens jurídicos, ainda que à época em que sua doutrina tenha sido elaborada, o conceito de bem jurídico ainda não existisse. São essas as palavras do autor: “O conceito de bem jurídico deve-se à idéia de bem do Iluminismo. Ele foi formulado e fundamentado por Paul Johann Anselm Feuerbach por volta do século XIX, como arma contra uma concepção moralista do Direito Penal. A infração contra uma norma (moral ou ética) não podia ser suficiente para explicar uma conduta como criminosa, senão, primeiramente, a prova de que esta conduta lesiona interesses reais de outros homens, precisamente ‘bens jurídicos’. Com isso foi introduzida a mudança para um sistema do Direito Penal orientado empiricamente, mesmo que ainda necessitasse de muitas lutas para atrair a atenção do legislador penal e dos juristas sobre as consequências de seus procedimentos” (HASSEMER, 2005, p. 56).

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