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A génese das garantias constitucionais

CAPÍTULO III – AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS

1. A génese das garantias constitucionais

A génese das garantias constitucionais encontra-se ligada à consciencialização da questão da necessidade de supremacia do direito e da divisão de poderes, através do que o Estado se autodivide e autolimita, nomeadamente pelo reforço dos poderes dos parlamentos e da crescente autonomização do poder judicial.

Na Antiguidade, podemos encontrar algumas formas rudimentares de “garantias constitucionais”.

Um exemplo é a chamada “Constituição dos hebreus”, de 1.600 a.C., a Torá302,

inserida num Estado Teocrático no qual era a “Lei de Deus” que continha as garantias que delimitavam o poder dos governantes (os “Juízes”).

Também o povo Viking criou normas garantísticas proclamadas solenemente pelos seus chefes e que regiam a vida dos cidadãos. No ano de 930, os chefes de clãs reuniram-se em Assembleia designada de Alþingi, considerada o mais antigo parlamento do mundo. O parlamento funcionava no Verão na localidade de Þingvellir, onde esses Goðis (chefes) “reviam as leis, resolviam disputas e nomeavam os jurados que iriam jul- gar os processos judiciais. As leis não eram escritas, mas antes memorizadas e recitadas por um lögsögumaður («relator da lei»)”303.

Também na Grécia antiga distinguiam-se as nomoi (regras fundamentais) e as psefismata (regras menos relevantes), as primeiras não seriam facilmente alteráveis, tendo em conta o seu conteúdo teoricamente garantístico, o que sucedia de forma relevante com as segundas, fazendo recordar a moderna distinção entre lei constitucional e lei ordinária. Igualmente podemos referir a Lei das XII Tábuas (Lex Duodecim Tabularum), uma resposta dos plebeus à opacidade das leis exclusivamente aplicadas por pontífices e representantes dos patrícios, e que visavam especialmente os sobreditos plebeus. Iniciada esta luta em 462 a.C., apenas em 451 a.C. se reuniu um grupo que criaria um conjunto de doze leis, redigidas sobre madeira e afixadas no Fórum Romano304.

302 Pode, para este efeito, qualificar-se como a lei escrita dos Judeus, consistente nos cinco livros da Bíblia hebraica, a que os não judeus designam por “Pentateuco”.

303 Cfr. https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_Iceland.

304 Existem inúmeras fontes de informação sobre a Lei das XII Tábuas, tanto em livro físico, como na Internet. Uma excelente síntese, da autoria de JUSTO, A. Santos– As Leis de Sólon e das XII Tábuas…,

op. cit. p-. 323 e ss., encontra-se disponível em:

Na Idade Média, começa a vislumbrar-se uma superação, lenta e complexa, da justiça privada, mas ainda não poderá falar-se, de forma alguma, de uma distinção crista- lina entre o público e o privado.

A sociedade medieval baseava-se em relações, de parentesco e entre suserano e vassalo, assumindo um carácter hierarquizado e estático. Assim, enquanto a nobreza feu- dal dispunha de vastos territórios e cobrava impostos aos camponeses, o clero detinha um poder enorme, isentado de impostos e cobrador de dízimos. Quanto aos servos, não pas- savam de trabalhadores agrícolas, sem direito a salário ou qualquer outro benefício, ex- cepto o direito de habitarem no local de trabalho, direito a protecção militar e de recebe- rem os alimentos indispensáveis à sobrevivência305.

Num tipo de sociedade como este, de carácter feudal, a distinção entre o que era público e o que pertencia à esfera privada, era pouco evidente e insegura.

Apesar de tudo, no caso significativo e modelar da Inglaterra medieval, encon- tramos o caso particular do jurista Henry of Bracton306, a quem é atribuída a monumental obra De Legibus et Consuetudinibus Angliae (Das leis e costumes de Inglaterra), que não chegou a ser terminada. Neste trabalho, assinale-se a distinção que Bracton faz entre gu- bernaculum e jurisdictio307, em que o primeiro representava a esfera do rei, que agia como

autor de actos não sindicáveis, fosse a que nível fosse, incluindo o plano judicial. Quanto à jurisdictio, correspondia à esfera da competência dos tribunais.

Foi após a invasão normanda comandada por Guilherme de Orange, em 1066, que foram criadas as Cortes Feudais, que julgavam as causas com recurso ao direito cos- tumeiro, ou direito comum jurisprudencial, isto é, a common law.

A Magna Carta, de que já falámos anteriormente, imposta pelos barões feudais anglo-saxões a um rei fragilizado, sem feudos por não ser primogénito – falamos obvia- mente do rei João Sem-Terra – foi a primeira verdadeira grande positivação de direitos e

305 Cfr. BLOCH, Marc – A Sociedade Feudal…, op. cit., p. 86.

306 Ou Henrici de Bracton, ainda que, segundo a Encyclopædia Britannica, o seu verdadeiro nome tivesse

sido Bratton e que apenas a sua morte se tenha passado a usar o nome “Bracton”. Ainda assim a Harvard Law School Library indica outra designação: Henricus de Brattona or Bractona. Além de polemizar a su- posta autoria exclusiva da sua monumental obra De Legibus et Consuetudinibus Angliæ (traduzida como “Bracton on the Laws and Customs of England”), elaborada entre 1210-1268.

Em suma, Bracton foi um jurista e juiz do século XIII, nascido em Bratton-Clovelly, Devonshire cerca de 1216 e morre em 1268 em Exner, de cuja catedral era então chanceler. Sua obra Tractatus de legibusetcon-

suetudinibusregniAngliae, escrita entre 1250 e 1256, mas que poderá ter sido iniciada, segundo a Harvard

Law School Library cerca de 1220 por outras pessoas. Acerca de Bracton, existem múltiplas fontes. Dois exemplos:

https://en.wikisource.org/wiki/1911_Encyclop%C3%A6dia_Britannica/Bracton,_Henry_de http://bracton.law.harvard.edu/.

garantias mais próxima daquilo que nós chamamos hoje Constituição e garantias consti- tucionais. Algumas normas da Magna Carta de uma forma ou de outra persistiram até aos dias de hoje, nomeadamente o instituto do habeas corpus.

Esta ideia de separação de poderes, sem a qual as garantias constitucionais não existirão ou não passarão do papel, aos olhos de hoje aparenta ser ainda muito imperfeita, e a dificuldade de destrinça entre área pública e área privada só seria melhor clarificada com o advento de Estado moderno.

Assinalamos alguns marcos históricos nesta caminhada rumo a um Estado com poderes limitados, isto é, um Estado de direito:

 A Revolução Gloriosa, entre 1688 e 1689, que conduziu à queda do rei Jaime II, da dinastia Stuart, católico, substitu- ído por sua filha protestante, Maria, e pelo genro. Assim terminou o absolutismo monárquico britânico, com o alar- gamento do poder parlamentar, passando a chefia do Go- verno para o Primeiro-Ministro. Esta revolução representa, no nosso entendimento, juntamente com a revolução ame- ricana e a revolução francesa, um dos três grandes marcos na evolução histórica do pensamento referente à questão das garantias constitucionais.

 Petition of Right de 1628.

 Bill of Rights, de que falámos a propósito da génese da tu- tela jurisdicional efectiva, e que firmou a perda do poder absoluto pelo rei.

 Pacto de Mayflower, de 1620.

 Virginia Declaration of Rights, de1776.  United States Declaration of Independence.  United States Bill of Rights (1789)

 Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen, de França

Importância fulcral neste processo assume a Constituição Federal dos Estados Unidos da América308, considerada por muitos a primeira Constituição escrita da huma-

nidade, embora já anteriormente, conforme verificámos, tenha havido positivação de ga- rantias constitucionais em diversos documentos anteriores, tais como a Magna Carta, e a Constituição Francesa de 1791, a primeira constituição escrita francesa.

Este longo processo confluiu no constitucionalismo contemporâneo, no qual as garantias contidas nas diversas constituições do Estados democráticos de direito foram sendo crescentemente concretizadas.

Em Portugal, a primeira constituição, datada de 1822, continha já um importante complexo de garantias, de que é um mero exemplo o consagrado no artigo 4.º (“Ninguém deve ser preso sem culpa formada”).

Evidentemente, pode existir uma distância importante entre a consagração es- crita de garantias constitucionais e a sua concretização prática, que se torna certamente muito mais complexa em ambientes politicamente muito instáveis, ou de ditadura.

Daí que sustentemos que apenas num Estado Democrático de Direito, dotado da indispensável estabilidade política e social, as garantias constitucionalmente consagradas podem ser qualificadas como efectivas na sua globalidade.

Em Portugal, é a partir da entrada em vigor da Constituição de 1976 que se dá um grande avanço nesta matéria, não apenas no sentido do aperfeiçoamento da positiva- ção das garantias constitucionais, mas igualmente na interiorização da sua importância e da indispensabilidade do seu respeito por via da sua concretização/regulamentação pela legislação ordinária.

O mesmo é verdade para a Constituição da República de Angola e para o seu vasto acervo de direitos, liberdade e garantias, nomeadamente constantes do artigo 30.º e ss. desta Lei Fundamental.

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