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Das origens e evolução histórica do Princípio da Separação de Poderes

CAPÍTULO IV – O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E DA INDE PENDÊNCIA DOS TRIBUNAIS

1. Das origens e evolução histórica do Princípio da Separação de Poderes

As origens mais remotas do princípio da separação de poderes, ou, pelo menos, as suas primeiras sombras, podem situar-se na Antiguidade Clássica, mais concretamente na Política, de Aristóteles394. Nesta obra, defende-se o governo misto, que atribuiria fun- ções distintas a diversos actores no processo político, A classificação aristotélica de regi- mes (monarquia/tirania, aristocracia/oligarquia e democracia/demagogia), “pressupunha uma natural degeneração dos tipos de governo e, para evitar essa degeneração, Aristóteles propõe um governo com elementos de cada tipo, um governo misto. Os controles coloca- dos à natural tendência de abuso de poder tinham por escopo a manutenção dos regimes virtuosos. A noção de equilíbrio vinda do governo misto está, portanto, muito vinculada à ideia de manutenção de um regime, de evitar a sua degeneração”395.

Na obra acima mencionada, Aristóteles considerava a existência de três poderes basilares, o Poder Deliberativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário: “Em todo go- verno, existem três poderes essenciais, cada um dos quais o legislador prudente deve aco- modar da maneira mais conveniente. Quando estas três partes estão bem acomodadas, necessariamente o governo vai bem, e é das diferenças entre estas partes que provêm as suas. O primeiro destes três poderes é o que delibera sobre os negócios do Estado. O segundo compreende todas as magistraturas ou poderes constituídos, isto é, aqueles de que o Estado precisa para agir, suas atribuições e a maneira de satisfazê-las. O terceiro abrange os cargos de jurisdição”396.

A ideia do governo misto prosseguiu sua marcha durante a Idade Média; con- tudo, a ideia da divisão de poderes visava objectivos diversos dos actuais. Desde logo, discutia-se o poder eclesiástico, o que implica uma palavra sobre o movimento concilia- rista, que discutia a necessidade e os termos da eventual submissão do poder papal aos

394 Aristóteles foi um filósofo grego (384 - 322 a.C.) que se debruçou sobre inúmeras áreas do conheci- mento, e a sua obra filosófica foi compilada no Corpus Aristotelicum, em consequência do extraordinário trabalho dos estudiosos da era escolástica. Uma das grandes obras de Aristóteles foi justamente “Política” (Πολιτικά), composta por oito livros, cujas reflexões teriam tido origem nos tempos em que ele preceptor de Alexandre Magno.

395ABRAMOVAY, Pedro Vieira – A separação de Poderes…, op. cit. p. 14.

396 ARISTÓTELES. Política. (Coleção: Obra prima de cada autor). São Paulo: Martin, Claret, 2005, p. 87,

concílios da Igreja, assim se limitando a autoridade instituída. A este propósito, informa PEDRO VIEIRA ABRAMOVAY que o historiador QUENTIN SKINNER escreveu que “conciliaristas como Gerson criam uma imagem da Igreja como monarquia limitada agindo por meio de uma assembleia representativa […]. Essa ideia fica clara em Gui- lherme de Ockham que, no Brevilóquio do Poder Papal, afirma que o Papa «tem autori- dade de Deus apenas para preservar, e não para destruir»”397.

Assim se entende que, antes do século XVII, a ideia de governo misto visava essencialmente evitar que alguns poderes instituídos perdessem força, isto é, vissem o seu estatuto social e político degradado.

Acrescente-se ainda que, quando falamos em governo misto e em separação de poderes, não estamos a pensar exactamente na mesma coisa398.

Existia essencialmente um esforço com um pendor essencialmente conservador e preservacionista e não um desejo de transformação radical da sociedade, com a intro- dução clara e transparente de mecanismos de limitação de poderes.

Para falarmos dos modernos conceitos de separação de poderes, é indispensável citar o papel inovador da Inglaterra.

Neste ponto importa salientar a obra de PHILIP HUNTON,A Treatise of Monar- chy, de 1643399. Na secção IV deste Tratado, HUNTON enumera um conjunto de pontos

fundamentais no que respeita a saber até onde o soberano pode levar os seus poderes numa monarquia mista.

397 Idem, ibidem, p. 15.

398 Tal como se pode ler na obra de BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO Gianfranco – Dicionário de Política…, op. cit., p. 559: “Em seu significado original, o Governo misto é o resultado da distribuição do poder entre as diversas forças sociais, cuja colaboração há de servir para manter a concórdia necessária à convivência civil. A separação dos poderes resulta, em vez disso, da distribuição das três fun- ções principais do Estado, legislativa, executiva e judiciária, por órgãos diversos. Poderia haver uma certa correspondência entre ambas as concepções, se cada força social fosse titular de uma função específica, se, por outras palavras, houvesse correspondência entre os sujeitos a quem é distribuído o poder e as funções exigidas aos detentores do poder político, ou seja, se se pudessem estabelecer estas três equações: rei — poder executivo, aristocracia = poder judiciário, democracia = poder legislativo. Mas tal correspondência não é de modo algum o escopo do Governo misto, que visa não tanto a evitar a concentração das diversas funções do Estado numa só mão, mas à participação das diversas forças sociais, com seus respectivos ór- gãos, no exercício do poder, particularmente na função principal que é a legislativa. A confusão pode nascer e tem nascido de fato de ambas haverem sido excogitadas para resolver um problema de equilíbrio. Mas um é o equilíbrio das forças sociais que tem em vista o Governo misto e outro o das funções e seu respectivo exercício a que mira a separação dos poderes. A melhor prova da sua diversidade pode ser encontrada na diferença dos respectivos opostos: a negação do Governo moderado é o despotismo; a negação do Governo misto são as várias formas de Governo simples, que não são necessariamente despóticas”.

399 HUNTON, Philip – A Treatise of Monarchy. Disponível em: http://www.yorku.ca/comninel/courses/3025pdf/Treatise.pdf.

O terceiro ponto apontado por PHILIP HUNTON400 é particularmente impor-

tante, pois se refere a um governo misto com componentes democráticas e outras aristo- cráticas, no qual considera que se o monarca, nomeadamente, invade a esfera de outro poder, pode-se gerar, relativamente a este poder, não apenas um direito, mas antes o dever de recusar submissão a procedimentos ilegais.

Outra obra relevante nesta matéria é Excellencie of a Free-State: Or, The Right Constitution of a Commonwealth, de MARCHAMONT NEDHAM, de 1656401. Outros autores importantes são os amigos JOHN TRENCHARD (1662-1723) e WALTER MOYLE (1672–1721), com o apoio de JOHN TOLAND (1670-1722), possíveis autores ou divulgadores da expressão “checksand balances”402, pela qual se identifica um sistema

político no qual os diversos ramos do poder surgem dotados de poder de veto relativa- mente a outros ramos, a fim de evitar abusos de poder.

DAVID WOOTON403 traz-nos uma interessante tese, apoiado na doutrina de JOHN TRENCHARD e WALTER MOYLE404 mediante a qual se defende que o sistema checks and balances não apenas se contrabalança, mas, principalmente, progride, com recurso à moderna mecânica. Assim, teriam sido as novas descobertas da ciência que trouxeram consigo o conceito de equilíbrio dinâmico. A partir desse momento, percebeu- se que forças exercendo pressões em sentido oposto proporcionavam, sob determinadas circunstâncias, um efectivo progresso. Deste modo, seria o equilíbrio entre os poderes políticos que conduziria à evolução política.

O nome de JOHN LOCKE405 (1632-1734) revela-se fundamental nesta matéria.

400 O texto original respeitante a este terceiro ponto é o seguinte:“Thirdly, in such a composed state, if the monarch invade the power of the other two, or run in any course tending to the dissolving of the constituted frame, they ought to employ their power in this case to preserve the state from ruin; yea, that is the very end and fundamental aim in constituting all mixed policies: not that they, by crossing and jarring, should hinder the public good; but that, if one exorbitate, the power of restraint and providing for the public safety should be in the rest. And the power is put into divers hands that one should counterpoise and keep even the other: so that, for such other estates, it is not only lawful to deny obedience and submission to illegal proceedings (as private men may), but it is their duty; and by the foundation of the government they are bound to prevent the dissolution of the established frame”.

401Consultável na “Online Library of Liberty”:

http://oll.libertyfund.org/titles/nedham-excellencie-of-a-free-state.

402 Neste sentido, vide WOOTON, David, Liberty…, op. cit. Este mesmo Autor sustenta uma interessante tese, mediante a qual defende que o sistema checks and balances não apenas se contrabalança, mas, prin- cipalmente, progride, com recurso à moderna mecânica. Assim, teriam sido as novas descobertas da ciência que trouxeram consigo o conceito de equilíbrio dinâmico. A partir desse momento, percebeu-se que forças exercendo pressões em sentido oposto proporcionavam, sob determinadas circunstâncias, um efectivo pro- gresso. Deste modo, o equilíbrio entre os poderes políticos conduziria à evolução política.

403Vide WOOTON, David, Liberty…, op. cit., pp. 18 e 19.

404Vide, por exemplo, TRENCHARD, John (com MOYLE, Walter) – An Argument…, op. cit.

405 Uma boa e simples biografia (em inglês) encontra-se no sítio electrónico dedicado ao filósofo inglês: http://www.johnlocke.net/.

As suas obras mais importantes nesta matéria406são os dois Tratados Sobre o Governo

Civil (Two Treatises of Government), 1660-1662. O Primeiro Tratado destinava-se a re- futar o pensamento de Robert Filmer, sistematizador do patriarcalismo. O Segundo Tra- tado definiu a teoria política da sociedade civil fundada no direito natural e na teoria do contrato social407408.

Locke entende que os poderes do Estado lhe advêm do contrato social que o legitima. Quanto ao Poder Legislativo, Locke considera-o preponderante, uma vez que procede, não à criação, mas antes à declaração das normas que pré-existiam na vida em sociedade, ainda que, eventualmente, complexificando-as e aperfeiçoando-as e, ainda, es- tabelecendo as regras que deverão reger outros ramos do Estado.

Na filosofia lockeana, mesmo o poder que ele considera mais importante – o legislativo – encontra-se limitado pelo contrato social que o legitima e que garante um conjunto de direitos naturais como a vida, a liberdade ou a propriedade, anteriores à po- sitivação dos mesmos. Temos, assim, uma teoria de separação de poderes ancorada na proeminência do Poder Legislativo.

É da autoria de JORGE BACELAR GOUVEIA uma excelente síntese acerca das ideias de John Locke nesta matéria, e a que aderimos. De acordo com Locke, o poder político deveria deter três funções distintas:

- “O poder legislativo, enquanto capacidade para emitir leis, a ser entregue ao parlamento como assembleia de repre- sentantes;

- O poder executivo, enquanto faculdade de aplicado das

406 Publicada anonimamente.

407 Um resumo possível seria o seguinte: “Primeiro tratado do governo civil

1. Réplica ao Patriarcha de Robert Filmer.

2. Crítica à teoria do legado da soberania pela linhagem de Adão. Segundo tratado do governo civil

1. Definição de poder político. Estado de natureza. Outras formas de poder: despótico, esclavagista, parental. Cap.1-6

2. Origem e fim do poder político. Poder supremo legislativo. Inter-relação e limites aos poderes legis- lativos, executivo e federativo Cap. 7-14

3. Recapitulação, distinção entre paternal, político e despótico. CAP 15

4. Modos ilegítimos de ganhar ou usar o poder político: conquista, usurpação, tirania. CP 16-18 5. Dissolução do poder político e suas consequências: retorno temporário ao estado de natureza. Cp.

19”.

Resumo recolhido no sítio: https://ensaiosenotas.com/2016/05/19/locke-e-suas-ideias-politicas/

408 O Segundo Tratado encontra-se acessível em linha, aqui: http://www.gutenberg.org/files/7370/7370- h/7370-h.htm

leis aos casos concretos, através da administração e atra- vés dos tribunais, a confiar-se ao rei e ao governo; - O poder federativo, enquanto sector de gestão das relações

internacionais do Estado, bem como atinente à segu- rança do Estado, também a ser cometido ao rei e ao seu governo”409.

Existiria ainda aquilo que Locke considerava a prerrogativa, “que funcionaria como poder residual e ilimitado do rei, para defesa do Estado perante situações anor- mais”410.

Quanto ao poder legislativo, deveria submeter-se a quatro limites:

“(i) a igualdade de aplicação sem variação de casos particu- lares, como o rico ou o pobre, o cortesão ou o campe- sino;

(ii) a vinculação das leis ao bem do Povo;

(iii) a necessidade do consentimento do Povo no aumento dos impostos;

(iv) a impossibilidade da atribuição de poderes legislativos a órgão diverso do Parlamento”411.

Em 1689 nasceu Charles-Louis de Secondat, mais conhecido como MONTES- QUIEU (1689-1755).

Montesquieu visou especialmente a prevenção do abuso de poder. Para tal con- cebeu uma tripartição de poder, um mecanismo de segurança que visava a realização desse objectivo e que, ainda hoje, conserva, de algum modo, a sua actualidade.

As palavras de ordem chave eram, para Montesquieu, a distribuição das tarefas, a regulação de competências e a compensação das funções. Conciliação e equilíbrio entre as forças sociais eram as verdadeiras finalidades da separação de poderes.

Sem prejuízo das suas semelhanças, há aspectos fundamentais que distinguem

409 GOUVEIA, Jorge Bacelar – Direito Constitucional de Angola, op. cit., pp. 224 e 225. O mesmo Autor escreve algo de semelhante na sua obra Manual de Direito Constitucional, 5.ª ed., II vol., op. cit., no ponto 144-II.

410 Idem, ibidem, p. 225. 411 Idem, ibidem, p. 225.

Locke e Montesquieu: enquanto Locke visa especialmente estremar o poder régio, trans- mitindo-lhe a ideia de que o povo, origem da soberania, tem o direito de reagir perante o abuso ou o desleixo notório, Montesquieu não tem como escopo fundamental a separação de poderes em termos puramente jurídicos, mas antes a necessidade de equilibrar as forças sociais, sem o que a liberdade quedaria em risco.

Assim, embora encontremos semelhanças entre Montesquieu e Locke, nomea- damente no que se reporta ao poder legislativo, reservando-se o mesmo ao Parlamento, e ao poder executivo e federativo (que Montesquieu juntou numa única figura, precisa- mente o poder executivo) e que correspondia à administração do Estado, da responsabi- lidade do rei e do seu governo, a grande diferença entre ambos reside no exercício do poder judicial, que seria claramente extirpado do âmbito do poder executivo e entregue a tribunais independentes e ainda numa perspectiva dinâmica de relacionamento entre os poderes do Estado, fazendo opor uma faculté de statuer a uma faculté d´empêcher (isto é, estatuir versus impedir).

Ou seja, dito de forma simples, as funções federativa e prerrogativa de Locke encontram-se incluídas na função executiva de Montesquieu, o qual, ao contrário de Locke, autonomiza a função judiciária412.

Em suma, tal como ensina MARCUS FARO DE CASTRO413, “[o] resultado da

Separação de Poderes é, segundo Montesquieu, não a paralisia institucional, mas sim uma peculiar dinâmica do processo político, em que permanece inviável o uso instrumental do poder a serviço de qualquer concepção concreta de ordem, valorizada como um bem ex- clusivamente por um indivíduo ou grupo social em detrimento de outros. Assim, para Montesquieu, estando distribuídos entre diferentes pessoas ou corpos de magistratura dis- tintos, «estes três poderes [de legislar, de executar e de julgar] deveriam formar um re- pouso ou uma inação»”. Contudo, “como pelo movimento necessário das coisas, eles são impulsionados a agir, eles serão forçados a se mover de maneira concertada”.

Assistimos, portanto, a partir do século XVIII ao início de um movimento no sentido de ultrapassar a ideia do sistema de checks and balances enquanto instrumento destinado exclusivamente a evitar o despotismo, mas igualmente como motor do pro- gresso.

No que se reporta à matéria sub judice, ainda hoje se faz sentir a influência dos ensinamentos de Locke e, especialmente, de Montesquieu.

412 COSTA, Hekelson Bitencourt Viana da – A Superação da Tripartição de Poderes… op. cit., p. 12. 413 CASTRO, Marcus Faro de – Política e relações …, op. cit., p. 65.

Contudo, a doutrina expendida por estes dois grandes pensadores está muito li- gada, como é natural, à época em que aqueles viveram. Evidentemente, deve existir, e tem existido, um esforço contínuo de adaptação dos grandes princípios da divisão de po- deres às novas realidades, assim se impondo uma também incessante reformulação de conceitos.

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