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A independência do poder judicial como garantia do direito de acção

CAPÍTULO IV – O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E DA INDE PENDÊNCIA DOS TRIBUNAIS

3. A independência do poder judicial como garantia do direito de acção

A Constituição Portuguesa prevê expressamente a separação de poderes, mas também a respectiva interdependência. O artigo 111.º, com a epígrafe “separação e inter- dependência” determina que “[os] órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição” (n.º 1) e que “[n]enhum órgão de sobe- rania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei” (n.º 2).

O mesmo sucede com a Constituição angolana.

Desde logo, no preâmbulo da Lei Fundamental angolana, se lê que “o Povo de Angola, através dos seus legítimos representantes, os Deputados da Nação, reafirma o seu comprometimento com diversos valores e princípios fundamentais, entre os quais se in- tegra o princípio da separação e equilíbrio de poderes dos órgãos de soberania, e que constituem uma das “traves mestras que suportam e estruturam” a CRA.

Também no artigo 2.º, com a epígrafe “Estado Democrático de Direito”, quali- fica-se a República de Angola como um Estado Democrático de Direito que tem como fundamento, entre outros de transcendente importância, a separação de poderes e a inter- dependência de funções.

Igualmente o artigo 105.º, prescreve que os “órgãos de soberania”426devem res- peitar “a separação e interdependência de funções estabelecidas na Constituição” (n.º 3).

A importância dos princípios da separação e da interdependência torna-se parti- cularmente visível se analisarmos o artigo 236.º, referente aos limites materiais. Assim, qualquer revisão da Constituição deve respeitar a separação e interdependência dos ór- gãos de soberania, conforme estabelecido na alínea j) do supradito artigo.

A interdependência dos órgãos de soberania tem diversas manifestações, tanto na Constituição da República de Angola, como na Constituição Portuguesa.

No caso da CRA, dividimos do seguinte modo essas exteriorizações, das quais apresentamos alguns exemplos427:

425 KELSEN, Hans – Teoria Geral do Direito e do Estado…. op. cit., p. 390. 426 Isto é, o Presidente da República, a Assembleia Nacional e os Tribunais (n.º 1).

1 – Actos relativos à subsistência de titulares de outros ór- gãos

Ex.: Competência do Presidente da República, en- quanto Chefe de Estado428, na nomeação do Juiz Presi- dente do Tribunal Constitucional e demais Juízes do re- ferido Tribunal, do Juiz Presidente do Tribunal Su- premo, do Juiz Vice-Presidente e dos demais Juízes do referido Tribunal, sob proposta do Conselho Superior da Magistratura Judicial, do Juiz Presidente do Tribu- nal de Contas, entre outros (cfr. artigo 119.º, n.º 1, alí- nea e) a k));

2 – Prática de actos de regulação e controlo

Ex.: Competência da Assembleia Nacional no domínio do controlo e da fiscalização, de velar pela aplicação da Constituição e pela boa execução das leis (artigo 162.º, alínea a)) e receber e analisar a Conta Geral do Estado e de outras instituições públicas que a lei obrigar (ar- tigo 162.º, alínea b)).

Ex.: Possibilidade de não aplicação pelos tribunais de normas jurídicas inconstitucionais e ilegais e aprecia- ção da constitucionalidade de quaisquer normas e de- mais actos do Estado; e apreciação preventiva da cons- titucionalidade das leis do parlamento, pelo Tribunal Constitucional (artigo 180.º, n.º 2 alíneas a, b, e d). 3 – Prática de actos de impulso

Ex.: Competência do Presidente da República, en- quanto titular do Poder Executivo, de apresentação de propostas de lei à Assembleia Nacional (artigo 120.º, alínea i)).

Tomo II, 1.ª ed., …op. cit., p. 252 e ss., mas com adaptação à realidade constitucional angolana.

428 Angola adoptou um regime político presidencialista, portanto, o Presidente da República não nomeia um primeiro-ministro, uma vez que o próprio Chefe de Estado é, igualmente, Chefe do Executivo.

4 – Participação procedimental de diversos órgãos:

Ex.: Participação, no procedimento de revisão consti- tucional, da Assembleia Nacional (artigo 166.º, n.º 2, alínea a) e 169.º, n.º 1), do Presidente da República (ar- tigo 119.º, alínea r)) e do Tribunal Constitucional (ar- tigo 227.º, alínea c))

Ex.: Participação no procedimento de referendo da As- sembleia Nacional, no âmbito da sua competência po- lítica e legislativa (artigo 161.º, alínea j), competência para propor ao Presidente da República a submissão a referendo de questões de relevante interesse nacional), do Presidente da República, enquanto Chefe do Estado (artigo 119.º, alínea l), competência para convocar re- ferendos, e do Tribunal Constitucional (artigo 227.º, alínea d). A iniciativa de referendo nacional (artigo 168.º) pode ser exercida pelo Presidente da República, por um quinto dos Deputados em efectividade de fun- ções e pelos Grupos Parlamentares.

Tenha-se em consideração que o esbatimento das fronteiras entre alguns poderes verificado nos anos mais recentes, designadamente no caso da função legislativa, na qual já não existe actualmente um monopólio mas antes uma posição privilegiada de criação de normas, não é aplicável à função jurisdicional.

É, pois, na função jurisdicional que encontramos um exemplo nítido do signifi- cado tradicional de separação de poderes.

No caso angolano interessam-nos especialmente os artigos 174.º e 175.º da CRA. Na CRP, consulte-se os artigos 202.º e 203.º.

Tal como escreve HERMANO SANTAMARIA429 “o Judiciário é um “poder” não só porque exerce uma das funções matrizes do Estado, isto é a jurisdição – como ainda “pela paridade jurídica” com outros poderes constitucionais”. Por este motivo, são concedidas garantias à função jurisdicional a fim de que se consiga um plano de paridade

429 Apoiado na doutrina de VINCENZO ZANGARA, “Studio sulla Separazioni dei Poteri”, in Nuovi

Cuaderni di Capestrano, Padova: CEDAM, 1953, vol. II, pág. 424 (cfr. SANTAMARIA. Hermano Roberto

entre os poderes de soberania.

Estas garantias, constitucionalmente garantidas, nomeadamente aquelas previs- tas no artigo 179.º da CRA, visando os magistrados judiciais – verbi gratia, independên- cia, inamovibilidade, intransferibilidade, irresponsabilidade – são indispensáveis para as- segurar que a função jurisdicional não corre o risco de interferência das restantes funções do Estado.

A independência dos tribunais tem hoje uma relevância extraordinária e deve ser considerada uma pedra basilar num verdadeiro Estado Democrático de Direito. Tal como bem escreveu GIAN ANTONIO MICHELI430, essa independência constitui “la caratteristica della giurisdizione nello stato moderno”.

Deste modo, conforme ensina CARRÉ DE MALBERG: “a independência dos tribunais se constitui o verdadeiro fundamento e a fonte do conceito de jurisdição”. E mais adiante, “pelo facto mesmo de que a autoridade jurisdicional recebeu uma constitui- ção orgânica que a transforma em órgão independente; pelo facto de que a autoridade jurisdicional está subordinada a formas especiais e as decisões judiciárias têm uma força a que não atingem as decisões administrativas – a jurisdição, sob o aspecto jurídico, está erigida em poder distinto, isto é, em uma terceira função da soberania do Estado”431.

À independência da magistratura corresponde a independência dos tribunais. A sua importância é de tal modo vincada que já no século XVIII EDMUND BURKE sus- tentava o seguinte:

“Whatever is supreme in a state ought to have, as much as possible, its judicial authority so constituted, as not only not to depend upon it, but in some sort to balance it. It ought to give security to its justice against its power. I tought to make its judicature, as it were, something exterior to the state” (sublinhado nosso; ou seja, “o poder judicial deve funcionar como se fosse algo de exterior ao próprio Es- tado”)432.

430 “Prospettive giuridiche in tema di giurisdizione volontaria”, in Scritti Giuridici in Onore di Francesco

Carnelutti, 1950, vol. II, pág. 384, citado por SANTAMARIA. Hermano Roberto – O Poder Judiciário

como um dos Poderes de Estado…, op. cit., p. 135.

431 MALBERG, Carré de, Teoría General del Estado…, op. cit., pp. 699 (primera frase) e 735 (segunda frase).

432 HERMANO ROBERTO SANTAMARIA, apoiado em Pedro Lessa, “Do Poder Judiciário”, 1915, pág. 4, atribui esta frase ao Advogado americano JOSEPH STORY (1779-1845), cuja figura ficaria retratada é

Assim, a independência da magistratura e dos tribunais é uma criação do Direito que se sobrepõe ao próprio Estado.

Uma brilhante fundamentação da necessidade de existência de garantias de inde- pendência dos magistrados encontra-se numa obra de HAROLD J. LASKI433:

“A independência do poder judicial em face do Executivo, constitui, corno temos visto, uma das condições essenciais da liberdade. Neste sentido, a doutrina da separação dos po- deres encerra um fundo de verdade permanente. Porque é axiomático que se o órgão executivo puder modelar as de- cisões judiciárias de conformidade com os seus desejos, torna-se indubitável que se erigiria no árbitro absoluto do Estado. É preciso confiar, em qualquer caso, a interpretação da lei a uma corporação de pessoas que não permaneçam ligadas à vontade do Executivo; é preciso, ainda mais, que possam fiscalizar a sua conduta; que possam resolver os li- tígios dos particulares de forma que as suas sentenças cons- tituam um precedente equitativo para quando se trate de re- solver contendas similares; que extraiam dos distintos inte- resses sociais em pugna, uma resolução que oferece a má- xima transcendência política; que convertam uma resolução ditada para um caso particular em uma norma de carácter que quanto maior seja a independência dos juízes, tanto mais seguras serão as possibilidades de que realizem a sua função”.

A existência da função jurisdicional é fundamental num Estado Democrático de Direito, mas essa função não pode ser exercida em quaisquer condições.

famosa numa conhecida longa metragem designada “Amistad”, na qual se narra a história relacionada com o navio negreiro espanhol Amistad.

Contudo, julgamos que esta atribuição não está correcta e que a mesma deve ser direccionada para o poli- tólogo e filósofo irlandês-americano EDMUND BURKE (1729-1797), in Reflections on the Revolution in

France (1790). Existem múltiplas fontes acerca desta questão, por exemplo:

http://prodpquotes.info/prodp/default/view/1617/Philosophers.

433 HAROLD J. LASKI, “El Estado Moderno”, tomo II, 1932, págs. 312-313, apud HERMANO RO- BERTO SANTAMARIA – O Poder Judiciário como um dos Poderes de Estado, op. cit., pp. 137 e 138.

É indispensável que o poder judicial seja pujante e independente. Sem essas ca- racterísticas, a defesa dos legítimos direitos e interesses dos cidadãos queda em perigo.

Sem um controlo jurisdicional fiável e independente, o cidadão ficaria indefeso perante todo o tipo de eventuais arbitrariedades, sujeito a actos administrativos ilegais, a normas inconstitucionais, enfim, a um conjunto de iniquidades. Ou seja, sem uma função jurisdicional independente, os direitos, liberdades e garantias existiriam apenas formal- mente, teriam um carácter fictício. Seria, na realidade, o próprio edifício democrático estar ameaçado.

Neste sentido, é indispensável que sejam concedidas aos magistrados condições excepcionais de exercício das suas funções, sem as quais será impossível assegurar-se a independência face aos restantes poderes.

É neste sentido que a Constituição da República de Angola – tal como a Consti- tuição portuguesa – outorga aos magistrados judiciais, no seu artigo 179.º, um importante conjunto de atributos sem os quais a sua independência perigaria e, consequentemente, seria esvaziado o artigo 175.º da mesma Constituição, que determina que “[n]o exercício da função jurisdicional, os Tribunais são independentes e imparciais, estando apenas su- jeitos à Constituição e à lei”.

Daqui resulta que o Estado, no campo jurisdicional, não dispõe de qualquer van- tagem ou superioridade sobre o particular, pois está, tal como este, obrigado a cumprir as decisões judiciais.

Resulta do princípio da separação de poderes, especialmente evidente no caso dos tribunais, que o poder judicial não é um poder do Estado, mas antes um poder anterior, emanado pelo próprio povo organizado em comunidade, visando, até onde tal for possível face ao estádio de evolução democrática de cada país, a igualdade de armas entre todos os cidadãos e destes relativamente ao Estado, e a mitigação das arbitrariedades. Embora os magistrados não sejam eleitos434, o seu poder resulta da organização democrática e do ordenamento constitucional que tem origem na concretização da vontade popular.

Conforme estatui o artigo 174.º, n.º 2 da CRA, no exercício da função jurisdici- onal, compete aos tribunais “dirimir conflitos de interesses público ou privado, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como os princípios do acu- satório e do contraditório e reprimir as violações da legalidade democrática”. Desta im- portante norma resulta com clareza a relevância suprema da função jurisdicional, mas

434 Nem poderiam sê-lo nunca, pois tal distorceria fatalmente as razões da própria independência dos ma- gistrados e transformá-los-ia em meros políticos, o que seria verdadeiramente aberrante.

também a necessidade de independência dos tribunais, sem o que as suas missões não podem ser concretizadas.

Chegamos, pois, ao ponto fulcral: a independência do poder judicial constitui uma garantia basilar do direito de acção. Sem esta independência, o direito subjectivo de um particular de apresentar pretensões ao conhecimento de um órgão jurisdicional e de obter uma decisão, ficaria em risco. E se o particular pretendesse recorrer da decisão ju- risdicional, eventualmente inquinada pela interferência de outros poderes, possivelmente ressurgiria o problema.

Destarte, a ausência de independência dos tribunais tornaria inviável o objectivo de se alcançar uma tutela efectiva, e o direito de acção perderia a sua mais importante garantia.

4. O direito de acção na sua qualidade de garantia de defesa da dignidade da pessoa

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