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Brevíssima retrospectiva histórica dos primórdios do contencioso admi nistrativo português anterior a 1976.

CAPÍTULO II – O CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO EM PORTUGAL

1. Génese e evolução do contencioso administrativo desde

1.1. Brevíssima retrospectiva histórica dos primórdios do contencioso admi nistrativo português anterior a 1976.

A origem remota do contencioso administrativo português pode encontrar-se nas Ordenações Afonsinas100, nas Ordenações Manuelinas101 e nas Ordenações Filipinas102. Com o advento do constitucionalismo (período de 1842 a 1845), surge, pelo me- nos em tese, a separação de poderes, com a criação em cada província de um Conselho de Prefeitura, com competência sobre o “contencioso da Administração”103, “que se res-

tringia às questões que prejudiquem direitos patrimoniais dos cidadãos, em especial o direito de propriedade, e à execução dos contratos de trabalho ou de fornecimentos públi- cos”104.

O Código Administrativo de 1836 não introduziu “inovações de relevo nesta matéria, veio, contudo, regulá-la por modo mais claro e pormenorizado”, nomeadamente consagrando que o Conselho de Distrito decidia em última instância105. Quanto ao Código

Administrativo de 1842, qualifica o Conselho de Distrito como tribunal administrativo, mas hierarquicamente inferior ao Conselho de Estado.

100 As Ordenações Afonsinas constituíam uma “colecção de leis destinada a regular a vida doméstica dos súbditos do Reino de Portugal a partir de 1446, durante o reinado de D. Afonso V”, in Infoescola, disponível em: http://www.infoescola.com/direito/ordenacoes-afonsinas/.Vide, em particular, o Livro II, título XLXIV.

101 “Ficaram conhecidas com o nome de “Ordenações Manuelinas” as duas colectâneas de preceitos jurídi- cos elaboradas, num sistema de cinco livros, a partir de 1505, na corte de D. Manuel I, sob a direcção do Doutor Rui Boto, chanceler-mor do reino. A codificação que vigorou de 1514 a 1521 teve duas edições […]. Uma nova codificação, promulgada em 1521, que expressamente revogava e proibia os exemplares da anterior, esteve em vigor até 1603 e conheceu oficialmente quatro edições […]”. Cfr. ALVES, Dias João José – PORTUGAL. Leis, decretos, etc., disponível em:

http://ww3.fl.ul.pt/biblioteca/biblioteca_digital/docs/res222.pdf. Cfr. especialmente diversos títulos do Livro III.

102 “As Ordenações Filipinas resultaram da reforma feita por Felipe II da Espanha (Felipe I de Portugal), ao Código Manuelino, durante o período da União Ibérica. Mesmo após o fim da União Ibérica, as Orde- nações Filipinas continuaram a vigorar em Portugal, confirmadas por D. João IV. Até à promulgação do primeiro Código Civil brasileiro, em 1916, estiveram também vigentes no Brasil”. Vide:

http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242733. 103Cfr. Decreto n.º 23, de 16 de Maio de 1832, artigo 8.º.

104Cfr. MACHETE, Rui Chancerelle de – Contencioso Administrativo…, 2.ª ed., op. cit.., p. 776 e ss., cujo artigo, aliás, seguimos de perto nesta brevíssima síntese sobre o período anterior a 1976.

Os Decretos de 9 e 11 de Junho de 1870 criaram o Supremo Tribunal Adminis- trativo106, inicialmente com carácter meramente consultivo. A Carta de Lei de 6 de Maio

de 1886 institui um tribunal administrativo na sede de cada Distrito, composto por três magistrados nomeados pelo Governo. Um Decreto de 28 de Julho de 1886 reorganizou de forma bastante marcada o STA, que, para além do alargamento das suas atribuições, adquiriu igualmente importantes competências contenciosas que incluíam a fiscalização de actos ministeriais107.

Mais tarde, em 1892, verifica-se uma involução parcial neste longo e lento pro- cesso, uma vez que, devido a restrições orçamentais, o Governo de Dias Ferreira, por Decreto de 21 de Abril de 1892, determinou a extinção dos tribunais administrativos dis- tritais, regressando o conhecimento de questões contenciosas aos tribunais judiciais, ainda que as respectivas decisões fossem recorríveis para o STA, gerando-se um sistema con- tencioso híbrido. Com o Código de 1896 regressou-se, todavia, ao duplo grau de jurisdi- ção especializada, ainda que a primeira instância passasse a ser constituída por elemento (auditor) singular, havendo igualmente algumas competências atribuídas ao juiz ordiná- rio.

Este sistema vigorou até 1924, sem prejuízo de um reforço das competências do STA108 em 1908. A instauração da República, em 1910, não levou a alterações em matéria

contenciosa e de organização judicial.

Em 1924, questões financeiras levaram de novo à abolição, por intermédio do Decreto n.º 9340, de 7 de Janeiro de 1924, dos tribunais administrativos, incluindo o STA, passando todas as competências nessa sede para os tribunais comuns e para o Supremo Tribunal de Justiça. Logo no ano seguinte, pelo Decreto n.º 11250, de 19 de Novembro de 1925, o legislador arrepende-se da sua opção anterior, ressuscitando o STA; contudo, o Decreto n.º 12.258, de 4 de Setembro de 1926 repristinou o Decreto n.º 9340.

Conforme ensina SÉRVULO CORREIA, foi no século XIX que se deu início a uma grande controvérsia acerca do modelo de organização da jurisdição administrativa a seguir. No entendimento de alguns, esse caminho deveria ser um modelo dualista segundo o qual, no que respeita ao contencioso administrativo, deveriam existir simultaneamente tribunais comuns e tribunais administrativos. Outros defendiam um sistema monista no qual seriam apenas os tribunais comuns a julgar as questões contenciosas administrativas.

106 Doravante STA.

107 Cfr. artigo 5.º, § 3.º do referido diploma.

Deste confronto teórico resultou uma terceira tese, de carácter misto, acolhida ocasional- mente em Portugal, que entendia que deveriam existir secções especializadas inseridas nos tribunais comuns, com a função exclusiva de julgar questões do contencioso admi- nistrativo109.

O ano de 1930 é particularmente relevante para o contencioso administrativo português. Finalmente, foram criados verdadeiros tribunais administrativos: as Auditorias (em Lisboa, Porto e Coimbra) e o Supremo Conselho de Administração Pública (com as funções contenciosas do antigo STA, que incluíam a fiscalização dos actos definitivos e executórios prolatados pelos ministros), que, por intermédio do Decreto-Lei n.º 23185, de 30 de Outubro, de 1933, foi substituído por um novo Supremo Tribunal Administra- tivo, dotado de jurisdição própria e sem funções consultivas, constituído pelo Contenci- oso Administrativo, pelo Contencioso das Contribuições e Impostos e pelo Contencioso do Trabalho e Previdência110.

O sistema de administrador-juiz é rejeitado e substituído pelo sistema da “justiça delegada”.

Em conclusão, grosso modo, podemos identificar três grandes fases na evolução do contencioso administrativo:

Fase 1: Período liberal, de 1832 a 1930/33, em que vigorou o modelo adminis- trativista francês da chamada justice retenue, ou de justiça reservada, correspondente “àquela cujo exercício o soberano reserva para si, para o assumir directamente em vez de ‘delegar’ esse exercício nos Tribunais”111.

Fase 2: Período autoritário, de 1930/33 a 1976, com o nascimento de um verda- deiro sistema de “tribunais administrativos”, mas com um sistema judicialista mitigado. Recorde-se que o Supremo Tribunal Administrativo, funcionava junto da Presidência do Conselho de Ministros e era composto por juízes nomeados directamente pelo Governo, o que condicionava a sua independência.

Fase 3: Período de afirmação do Estado Democrático de Direito, a partir de 1976 até ao presente, e que inicia com a actual Constituição e um modelo judicialista, com uma ordem judicial autónoma.

As reformas administrativas de Mouzinho da Silveira tiveram lugar durante o

109 CORREIA, José Manuel Sérvulo – Direito do Contencioso Administrativo, op. cit., p 446.

110 Para uma análise mais desenvolvida, CAETANO, Marcello – Estudos…, op. cit., pp. 349 a 346, para além do já mencionado artigo de MACHETE, Rui Chancerelle de – Contencioso Administrativo…, 2.ª ed., op. cit.., p. 776 e ss.

período do Constitucionalismo Monárquico e possuíam um conteúdo próximo do modelo francês executado por Napoleão Bonaparte. Esse sistema, que visava eliminar a confusão entre o poder judicial e a administração pública, vigorará, ainda que com alguns cambi- antes, até 1976112, com o advento da Constituição da República Portuguesa de 1976, que atribui plena jurisdição aos tribunais administrativos portugueses113, com verdadeiro re- conhecimento dos direitos dos particulares114, fim último do contencioso administrativo.

É sobre esta terceira fase que se debruçará o próximo ponto do nosso trabalho, ainda que com menção de alguns diplomas relevantes que foram promulgados entre Abril de 1974 e a entrada em vigor da CRP de 1976.

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