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As garantias constitucionais no ordenamento jurídico angolano

CAPÍTULO III – AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS

C) Garantias jurídicas, que correspondem à instrumentaliza-

3. As garantias constitucionais no ordenamento jurídico angolano

Numa análise prima facie, poder-se-ia dizer que a CRA, em matéria de garantias constitucionais, seria simplesmente uma cópia da CRP. É isso que parece resultar de ar- tigos como o 2.º, n.º 2, 28.º, n.os1 e 2, 57.º, 164.º, alínea b), e 236.º da CRA326.

Esta observação pecaria, todavia, pela ligeireza e imponderação, e seria franca- mente redutora.

Para além de outras especificidades de que não curamos de averiguar nesta sede,

324 Entre outras, obviamente.

325 Ainda que este conceda que “se admitem distinção, não são autoexcludentes” (FELICIANO, Guilherme Guimarães – Tutela Processual… op. cit., p. 1000).

326 Atente-se no artigo 2.º, n.º 2, da CRA que estabelece que “A República de Angola promove e defende os direitos e liberdades fundamentais do Homem, quer como indivíduo quer como membro de grupos so- ciais organizados, e assegura o respeito e a garantia da sua efectivação pelos poderes legislativo, executivo e judicial, seus órgãos e instituições, bem como por todas as pessoas singulares e colectivas”.

Isso é visível igualmente no artigo 28.º, n.º 1, da CRA que determina que “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias fundamentais são directamente aplicáveis e vinculam todas as entidades públicas e privadas”.

Outro exemplo importante é o artigo 57.º, n.º 1, da CRA: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário, proporcional e razoável numa sociedade livre e democrática, para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

Exemplo igualmente relevante é o artigo 164.° (Reserva absoluta de competência legislativa): “À Assem- bleia Nacional compete legislar com reserva absoluta sobre as seguintes matérias: […] “Direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos”.

Por fim, o artigo 236.° da CRA estabelece os limites materiais de revisão, determinando que “as alterações da Constituição têm de respeitar”, nomeadamente “o núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias”.

importa referir a autonomização, concedida à garantia dos direitos e liberdades funda- mentais, conforme resulta do artigo 56.º e ss. da CRA, insertos numa secção intitulada “Garantia dos Direitos e Liberdades Fundamentais”.

Mas, em nosso entendimento podemos apontar um aspecto de especial relevân- cia e que marca uma diferença verdadeiramente marcante face à CRP: a figura do recurso extraordinário de constitucionalidade, que abordaremos infra.

A CRA apresenta um longo catálogo de direitos, liberdades e garantias, dividido em:

A) Direitos e Liberdades Individuais e Colectivas (artigos 30.º a 55.º);

B) Direitos e Liberdades Fundamentais (artigos 56.º a 75.º).

Particular importância assume nesta matéria o artigo 27.º da CRA, que estabe- lece que “[o] regime jurídico dos direitos, liberdades e garantias enunciados neste capítulo [que é referente aos princípios gerais dos direitos e deveres fundamentais] são aplicáveis aos direitos, liberdades e garantias e aos direitos fundamentais de natureza análoga esta- belecidos na Constituição, consagrados por lei ou por convenção internacional”.

De acordo com JÓNATAS MACHADO, PAULO NOGUEIRA DA COSTA e ESTEVES CARLOS HILÁRIO327, que acompanhamos, os critérios que fundamentam a

eventual existência de uma analogia são três: em primeiro lugar, impõe-se uma análise do direito em causa a fim de compreender se o mesmo encerra em si a sua “fundamenta- lidade no quadro da consciência axiológica e jurídica da comunidade”.

Em segundo lugar, importa saber se “o direito em presença constituía expressão de um valor ou princípio constitucional que serve de base de um direito, liberdade e ga- rantia”.

Finalmente, importa averiguar se existe uma proximidade essencial do direito análogo com os direitos, liberdades e garantias, em consequência de nos encontrarmos perante “um direito preponderantemente negativo ou a abstenções estaduais”.

São estes os critérios que nos auxiliam a ajuizar determinados direitos328como

327 MACHADO, Jónatas E. M., COSTA, Paulo Nogueira da e HILÁRIO, Esteves Carlos – Direito Consti- tucional Angolano, op. cit., pp. 196 e 197.

328 Os mesmos Autores apresentam como exemplos os artigos 23.º,29.º e ainda alguns dos direitos constan- tes nos artigos 76.º, n.º 2 e 83, n.º 1, todos da CRA.

análogos aos direitos, liberdades e garantias.

Igualmente tem sido sustentado pela generalidade da doutrina que os direitos que exprimam uma dimensão negativa no âmbito dos direitos económicos, sociais e culturais, tais como a saúde ou o ambiente, devem igualmente qualificar-se como análogos aos di- reitos, liberdades e garantias.

Por outro lado, podem existir direitos não previstos na Lei Fundamental que con- tenham todas as dimensões indispensáveis por forma a serem qualificados como “direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias”, de que será exemplo o direito à personali- dade jurídica.

Outros aspectos relevantes são a aplicabilidade directa dos preceitos constituci- onais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias e o seu carácter vinculativo relati- vamente a todas as entidades públicas e privadas329.

3.1. A aplicabilidade directa dos preceitos constitucionais respeitantes aos di- reitos, liberdades e garantias

A aplicabilidade directa significa, no caso específico da CRA, que os seus artigos 30.º a 75.º são imediata, integral e directamente aplicáveis, não dependendo necessaria- mente de regulamentação e produzindo efeitos assim que a Constituição entrou em vigor. O Estado, incluindo os poderes executivo, judicial e legislativo, fica assim, de imediato, juridicamente vinculado, podendo qualquer particular invocar aqueles direitos de forma directa. Além disso, o legislador ordinário não pode, de forma alguma, constranger a sua aplicação, ou limitá-la. Se isso sucedesse, a lei daí resultante poderia ser desaplicada pelos tribunais, pelo menos na parte ofensiva, e as normas afectadas poderiam/deveriam ser declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional.

Destarte, o juiz ordinário é legalmente compelido a fazer uso da Constituição da mesma forma que acontecerá com outros diplomas.

Todavia, nem sempre é possível o juiz, per se, solucionar todos os problemas que podem resultar do princípio da aplicabilidade directa. Certamente que o juiz se con- frontará muitas vezes com matérias a que não pode dar o devido seguimento, em virtude de estarem em causa situações que, inapelavelmente, carecem de regulamentação, por vezes pesada e complexa – é o caso do direito de sufrágio previsto no artigo 54.º da CRA.

Atente-se ainda que o legislador ordinário, nesta matéria, mostrando-se necessá- ria a sua intervenção, não possui liberdade absoluta, já que está obrigado a conformar-se com o quadro constitucional, não se tratando de “trabalhar” meras normas vagas e pro- gramáticas.

3.2. O carácter vinculativo dos preceitos constitucionais respeitantes aos di- reitos, liberdades e garantias.

Nos termos do n.º 1 do artigo 28.º da CRA, os “preceitos constitucionais respei- tantes aos direitos, liberdades e garantias fundamentais são directamente aplicáveis e vin- culam todas as entidades públicas e privadas”.

Esta vinculatividade possui um enquadramento constitucional que sumariamos: Recorde-se que uma das tarefas fundamentais do Estado angolano consiste em assegurar os direitos, liberdades e garantias fundamentais330.

Por outro lado, importa referir que se trata de garantia geral do Estado assegurar o respeito pelo “livre exercício dos direitos e das liberdades fundamentais e o cumpri- mento dos deveres constitucionais e legais”, bem como zelar pela inviolabilidade dos direitos e liberdades fundamentais consagrados na CRA e criar as “condições políticas, económicas, sociais, culturais, de paz e estabilidade que garantam a sua efectivação e protecção, nos termos da Constituição e da lei”331.

É importante ainda referir o carácter de Estado Democrático de Direito da Re- pública de Angola; daqui resulta igualmente a obrigatoriedade, por parte do Estado, de promover e defender “os direitos e liberdades fundamentais do Homem, quer como indi- víduo quer como membro de grupos sociais organizados, e assegura o respeito e a garantia da sua efectivação pelos poderes legislativo, executivo e judicial, seus órgãos e institui- ções, bem como por todas as pessoas singulares e colectivas”332.

O artigo 28.º, n.º 1, da CRA tem um conteúdo praticamente igual ao artigo 18.º, n.º 1, da CRP, o que nos permite beneficiar da doutrina portuguesa acerca desta matéria. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, por exemplo, ensinam que a referida norma da CRP, que é a “expressão mais consequente e mais exigente do Estado de Direito demo-

330 Cfr. artigo 21.º, alínea b) da CRA. 331 Cfr. artigo 56.º da CRA.

crático (artigo 2.º), contém os mais importantes dos princípios materiais comuns aos di- reitos, liberdades e garantias:

1.º A aplicação imediata dos preceitos constitucionais (n.º 1, 1.ª parte).

2.° A vinculação de todas as entidades públicas (n.º 1, 2.a parte).

3.º A vinculação das entidades privadas (n.º 1, 3.ª parte). 4.º A reserva de lei (n.º 2).

5.º O carácter restritivo das restrições (n.os 2 e 3), traduzida, designadamente, em proporcionalidade (n.º 2, 2.ª parte), generalidade e abstracção de lei restritiva (n.º 3, 1.ª parte), proibição de lei restritiva retroactiva (n.º 3, 2.ª parte) e garantia do conteúdo essencial (nº 3, 3.a parte)”333.

A vinculação a que se refere o artigo 28.º, n.º 1 da CRA tem igualmente uma face de proibição: os direitos, liberdades e garantias não podem ser violados pelos tribu- nais, que “estão obrigados a pautar a sua actividade e o desenvolvimento dos processos judiciais pelo respeito e protecção estrita desses direitos”334.

Por último, os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias fundamentais vinculam igualmente as entidades privadas. Nesta situação, pode- rão estar em causa direitos como a reserva da intimidade da vida privada (artigo 32.º, n.º 1 da CRA), direitos de autor (43.º, n.º 2, in fine, da CRA) ou a proibição do lock-out (artigo 51.º, n.º 2, da CRA).

3.3. As garantias constitucionais no ordenamento jurídico angolano – súmula

Em síntese, a Constituição angolana atribui às garantias dos direitos uma rele- vância notável, pois lhes dedica uma extensa secção intitulada “Garantia dos Direitos e Liberdades Fundamentais”.

É nesta secção, constituída pelos artigos 56.º e ss., que encontramos supremas

333 MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui – Constituição…, Tomo I, 1.ª ed., …op. cit., p. 152. 334 ALEXANDRINO, José Melo – O Papel dos Tribunais..., op. cit., p. 10.

garantias como a proibição da pena de morte, a proibição da tortura e de tratamento de- gradantes, a imprescritibilidade e a inamnistiabilidade de crimes hediondos e violentos, entre os quais avulta o genocídio, o princípio nulla poena sine lege e ne bis in idem, garantias do processo criminal que incluem a protecção do direito de defesa, do recurso, do patrocínio judiciário e da presunção de inocência, o habeas corpus e o habeas data, entre outras.

Estas garantias constitucionais, sejam elas comuns ou não a outros ordenamentos jurídicos em outros países, juntamente com a relevância que na CRA é atribuída ao prin- cípio da dignidade humana, que precede a vontade popular, conforme estatui o artigo 1.º da CRA, a suma importância do indivíduo face ao Estado, o respeito pelos tratados inter- nacionais referentes aos direitos humanos, aplicáveis oficiosamente pelos tribunais, nos termos do artigo 26.º, n.º 3 da CRA, e o cuidado extremo na consagração do catálogo de direitos fundamentais, fundamenta a nossa conclusão de que a Constituição de Angola é uma das mais avançadas do mundo no que se refere à protecção dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, sendo justo conferir-lhe o estatuto de Constituição própria de um Estado Democrático de Direito, na tradição ocidental.

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