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A governança empreendedorista e a cidade global como um novo paradigma

CAPÍTULO 1 OS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS E A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DAS CIDADES

16 O pastiche é, sobretudo, a utilização do referencial histórico em construções que pouco se

1.2. A governança empreendedorista e a cidade global como um novo paradigma

Durante a década de 1970, como resposta à crise do capitalismo global, em que a recessão, a desindustrialização e o desemprego apareciam como marcas "estruturais" da economia global, uma nova perspectiva da gestão das cidades passou a se consolidar nos países capitalistas mais avançados, como os Estados Unidos e a Inglaterra. Esta, diferentemente da perspectiva eminentemente administrativa e burocrática das gestões locais até então, pregava o Estado como agente responsável pela atração da circulação do capital nos contextos locais, através de novas estratégias como é o caso, por exemplo, das parcerias público-privadas (PPP's).

Este novo paradigma surge, segundo Harvey (2001), em um momento em que a capacidade do estado-nação de controlar os fluxos financeiros das empresas parecia declinar e o investimento das empresas passa a concentrar suas negociações com os poderes públicos locais e não com as instâncias mais abrangentes de governo. Casos como da cidade de Baltimore (EUA) nos anos 1970, cuja estratégia do poder público de renovar o uso de um ancoradouro com a formação de um centro de entretenimento e comércio, alavancando significativamente o turismo e gerando empregos em plena recessão, tornaram-se modelos copiados por outras cidades americanas e do resto do mundo, inspirando até hoje outras realidades urbanas.

O fato é que desde então, segundo o autor, este é um movimento crescente e parece ter consolidado o papel empreendedor das gestões urbanas. Tal conceito amplifica na cartilha da gestão urbana contemporânea a noção de risco, o que contrasta com a racionalidade e a previsibilidade que

constituíram o pensamento sobre a cidade com o urbanismo modernista. Neste sentido, uma cidade passa a assumir os riscos de um investimento em parceria com a iniciativa privada na expectativa do retorno em forma de geração de empregos e dinamização da economia local.

Esta nova perspectiva da gestão urbana, como afirma Harvey (2005), além de possuir a noção de Parceria Público-Privada (PPP´s) e investimentos de risco como elementos constituintes, tem como marca a busca pela construção de uma imagem positiva da realidade local, como condição para o bom ambiente de negócios e a ideia de que o investimento é feito no "local certo com as pessoas certas".

Em Baltimore, o momento de transição pode ser fixado com exatidão. Em 1978, um referendo aprovado por estreita margem após uma vigorosa e litigiosa campanha política sancionou o uso de uma área pública para um empreendimento imobiliário privado, que se tornou o espetacular e exitoso

Harborplace. Depois disso, a política de parceria público-

privada conquistou confiança popular, assim como a efetiva presença oculta em quase tudo que envolvia governança urbana (HARVEY, 2005, p.173).

Esta ideia é defendida por Borja e Castells (1996) quase como um novo receituário urbano, onde o planejamento de uma cidade deve, necessariamente, passar pela adoção das PPP´s desde o seu momento inicial. Para que isto ocorra, é necessária a liderança, seja de agentes públicos ou privados, e a construção de uma coalizão na cidade. A ideia é que haja a convergência para um sentimento de patriotismo na população local para que os riscos assumidos sejam consensuados:

[...] a definição de um projeto de Futuro só será eficaz se mobilizar, desde o seu momento inicial, os atores urbanos públicos e privados e concretizar-se em ações e medidas que possam começar a implementar-se de imediato. Somente assim, verificar-se-á a viabilidade do plano, gerar-se-á a confiança entre os agentes que o promovem e poder-se-á construir um consenso público que derive numa cultura cívica e num patriotismo de cidade (BORJA e CASTELLS, 1996, 158).

Uma vez estabelecida tal tipo de coalizão, entre outras estratégias adotadas pelas cidades para a atração de investimentos, o empreendedorismo

urbano busca construir vantagens competitivas de uma cidade frente às demais, fazendo com que tais diferenciais atraiam investimentos voltados ao desenvolvimento urbano na atualidade. Estes comumente são assim descritos por Sánchez (2010):

1) Vantagens na oferta de recursos naturais de uma cidade (por exemplo, petróleo, clima etc.);

2) Oferecimento de subsídios (isenções fiscais, crédito barato, aquisição de terrenos, oferta de infraestrutura subsidiada como água e energia);

3) Oferta de mão de obra qualificada ou força de trabalho barata como atrativos;

4) Infraestrutura de transporte e comunicação como forma da dinamização da circulação do capital como diferencial competitivo para as empresas, e

5) Venda qualificada do espaço urbano para o consumo, seja por meio de atrativos culturais, esportivos, turísticos, de compras, ou entretenimento em geral. Neste último ponto, insere-se a realização de festivais, eventos culturais e grandes eventos esportivos como forma da promoção da imagem da cidade e dinamização da economia local.

Toda esta disputa entre as cidades pela fixação do capital fez com que as empresas multinacionais barateassem muito mais os custos do deslocamento de local, sempre à procura de cada vez mais vantagens ofertadas, construindo, desta forma, uma perspectiva onde os governos locais passam a sustentar, de fato, a iniciativa privada, ao invés de simplesmente estimulá-la.

Assim, os aspectos aqui já abordados em relação ao novo padrão de governança local do final do século XX e princípio do XXI, configuram o empreendedorismo urbano: 1) busca pela construção de uma imagem positiva interna e externa das cidades, no sentido de se integrarem economicamente e culturalmente ao mundo globalizado; 2) estabelecimento de aliança junto a iniciativa privada, com o fim de potencializar os investimentos em infraestrutura e desburocratização das ações; 3) a oferta de vantagens competitivas ao mercado; e 4) a geração de um sentimento patriótico em prol dos riscos de investimento assumidos. Além destes aspectos citados, Borja e Castells (1996) destacam ainda que os governos locais devem também ser promotores da

inovação democrática no sentido do incentivo à participação popular, a cooperação social e a integração de políticas urbanas.

É importante destacar que este processo de atração do capital privado através deste modelo de governança, segundo Harvey (2001), tem fortes efeitos políticos e sociais em uma gestão urbana. Como é observado nos diversos exemplos de cidades empreendedoristas - o caso mesmo de Baltimore (EUA) - a atração do capital multinacional, por si só, não transformou a realidade excludente e contraditória de uma cidade. O que se percebe, em geral, como afirma o autor, é o incremento na desigualdade de renda na sociedade. Neste sentido, a construção da imagem do poder público fomentador do "progresso" e desenvolvimento econômico passa a construir um capital político alienante, focado na aparência e não na resolução da essência das condições de vida em uma cidade.

Aqui é importante destacar a tese de Florestan Fernandes (2005) a respeito da "modernização conservadora", modelo de desenvolvimento típico das grandes cidades brasileiras sobre o qual o autor afirma que as utopias ligadas ao estado democrático de direito estabelecido (a igualdade, a fraternidade e a liberdade) são abandonados tornando-se nada mais do que “quinquilharias históricas libertárias de origem europeia” (FERNANDES, 2005, p. 366). Desta forma, “na medida em que não perturbem o desenvolvimento capitalista interno nem o equilíbrio do sistema capitalista mundial”, ou, ainda, na medida em que sejam “úteis para a intensificação da acumulação capitalista”, os problemas não precisam ser combatidos, o que cristaliza uma condição de classe “egoística e irresponsável”. Ou seja, através de um conjunto de mudanças lideradas pelo Estado que visam modernizar os meios de produção não há preocupação em interferir nas relações desiguais de produção, acomodando os interesses dos setores dominantes e sem alterar significativamente a estrutura e o acesso ao poder. Essa estratégia se resume à mudança infraestrutural que permite a adaptação às demandas produtivas do capitalismo globalizado, mas com a "participação popular", restringindo-se ao fornecimento de mão de obra na cadeia econômica incentivada.

Este aspecto soma-se também ao fato de que, como afirmam Borja e Castells (1996), a mobilização para a construção de uma imagem interna e externa positiva de uma cidade no âmbito de um evento como uma Copa,

principalmente quando ocorre em cidades que não são grandes capitais ou ainda não reconhecidas internacionalmente, requer quase sempre a existência de uma figura política que consiga mobilizar os agentes públicos e privados em prol desta imagem externa. Como afirmam os autores:

O governo local deve favorecer o acordo com outras administrações públicas e a cooperação público-privada como meio para realizar tanto a promoção exterior citada como aquelas obras e serviços que os déficits acumulados, as novas demandas urbanas e a mudança de escala da cidade exigem. O acordo e a cooperação demandam iniciativa política, inovação legal e financeira e consenso entre os cidadãos (BORJA; CASTELLS, 1996, p.160).

Com isto, este agente político deve realizar esta mobilização a partir do que Bourdieu (2005) chama de capital político. Esta abordagem indica que governos locais (e seus agentes políticos) devem se tornar uma espécie de extensão das imagens de cidades e seus feitos (materiais ou símbólicos) em nível global, contribuindo, por outro lado, para a ampliação do capital político destes governantes. Incrementa-se daí a confusão entre o público e privado, principalmente, através da proposição da estreita ligação entre entes públicos e capital privado, expressas, seja através das PPP´s ou da personificação de agentes públicos como empreendedores urbanos. Sobre este tipo de capital Bourdieu (2005, p.31) afirma que:

é preciso levantar a hipótese de que existe um outro princípio de diferenciação, ou outro tipo de capital, cuja distribuição desigual está na base das diferenças constatadas, particularmente no consumo e nos estilos de vida. Estou pensando aqui no que poderíamos chamar de capital político, que assegura a seus detentores uma forma de apropriação privada dos bens e de serviços públicos (residências, veículos, hospitais, escolas etc.).

Para Sánchez (2010), toda esta movimentação política e econômica no contexto contemporâneo das cidades remete geralmente ao incentivo às experiências de consumo vivenciadas com o turismo de lazer ou de negócios, visando usuários solventes, que consumam na cidade sem se fixar. Pois, do contrário, constituiriam um passivo a ser administrado com a necessidade da

ampliação da infraestrutura urbana, gerando, em consequência, custos adicionais para as administrações públicas. Consolida-se daí a busca pela efemeridade do consumo como incremento da economia local, o que se coaduna, segundo a autora, com a superficialidade das discussões sobre as problemáticas do espaço urbano. Questões como a segregação espacial e os impactos deste tipo de "política pública" têm como marca a não participação popular nas discussões e decisões centrais de intervenções e gastos públicos, deixando a ação democrática, quando muito, como algo acessório.

Segundo Vainer (2000), partindo-se do pressuposto da exacerbação da aparência em detrimento da essência das políticas públicas, cada vez mais se atribui maior importância ao marketing de uma cidade (ou city marketing), o que se configura, de fato, nas formas de venda de um determinado espaço urbano. Nas palavras do autor, o que realmente se vende em uma cidade são:

[...] atributos específicos que constituem, de uma maneira ou de outra, insumos valorizados pelo capital transnacional: espaço para convenções e feiras, parques industriais e tecnológicos, oficinas de informação e assessoramento a investidores e empresários, torres de comunicação e comércio, segurança [...]. (VAINER, 2000, p.78).

O city marketing, ou seja, a imagem que uma cidade pode vender a seus possíveis "consumidores", tem como principal produto o espaço urbano e sua conexão com atrativos turísticos e oportunidades de negócios, aspectos valorizados e divulgados em megaeventos, excelentes espaços de divulgação, uma vez que estes são reconhecidos mundialmente. Porém, tais imagens públicas convertidas em produtos, a serem objetos do city marketing, retiram da cidade o que lhe é politicamente essencial para a experiência da democracia: a multiplicidade como coexistência e possibilidade de conflito (SÁNCHEZ,2010).

Consequentemente, pode-se inferir que, para uma cidade se colocar neste circuito de atuação, devem ser feitas pelo menos definições: 1) a forma como é vendida; 2) o modo como é administrada, geralmente inspirada nos ditames empresariais; e 3) o sentimento de identidade que se tenta gerar e difundir como uma marca constitutiva neste ambiente de competição (VAINER, 2000). Com isto, a busca pela construção da imagem de uma cidade através

do city marketing e a perspectiva da gestão urbana, amparada no receituário do empreendedorismo urbano, tem como uma das premissas o ingresso nos principais espaços econômicos e culturais ou fluxos de capitais mais centrais .

As cidades que integram este perfil são chamadas por Sassen (1998) como cidades globais, ou urbes que formam uma rede de centros de coordenação, controle e prestação de serviços para o capital global. Carvalho (2000) analisa que a definição atual do termo atende a um tipo ideal weberiano que caracteriza tais metrópoles como "nós" ou "pontos nodais" entre a economia nacional e o mercado mundial. Seriam, desta forma, cidades que, independentemente de já terem sido fortemente industriais, passam a abrigar sedes destas empresas multinacionais, cujas atividades econômicas concentram-se no setor de serviços especializados, ou seja, elos da rede decisória do capitalismo mundial.

A participação das cidades consideradas periféricas como Fortaleza nesta rede decisória é buscada, inicialmente, promovendo positivamente a imagem desta como capaz de realizar um evento global e, portanto, seguir padrões internacionais de excelência em organização, mesmo que, para isto, tenha que instaurar regimes legais particulares ou estranhos à realidade local. Isto caracteriza, como afirma Vainer (2009), uma "cidade de exceção", na qual, para o atendimento dos padrões de integração global, ocorre a suspensão da legislação e dos direitos, o que é comum em ocasiões como os megaeventos, radicalizando contextos urbanos marcados pela extrema segregação social e falta de diálogo político quanto às decisões das instâncias de poder.

Isto é algo que, a partir do advento da Copa, consolidou-se em Fortaleza e que, como se verá a seguir, inseriu-se como uma continuidade de uma gestão "modernizadora", presente, ao longo na história recente da capital cearense.

1.3. O processo de modernização da capital cearense a partir dos