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A Lei geral da Copa e arranjos institucionais

CAPÍTULO 2 – A CONSTRUÇÃO DA COPA NO BRASIL E AS IMAGENS DE FORTALEZA PRODUZIDAS PELO PODER PÚBLICO

2.2. A Lei geral da Copa e arranjos institucionais

Além de todo o pacote de intervenções públicas no sentido de proporcionar a infraestrutura, segurança e mobilidade necessárias para a Copa

do Mundo FIFA e o pacote visual do evento, há um conjunto de leis que o país anfitrião se compromete no momento em que se dispõe a sediar um Mundial de futebol. No Brasil, esta legislação foi representada pela Lei Geral da Copa (Lei 12.663 de 5 de junho de 2012) que deu condições especiais para o evento, limitando inclusive instrumentos legais consolidados como a meia entrada aos jogos de maneira irrestrita a estudantes e idosos e a venda de artigos e alimentos não chancelados pela FIFA no entorno e no interior dos estádios. Estes dispositivos foram de encontro a leis já existentes no país, como o Estatuto do Torcedor (uma legislação aprovada no âmbito do futebol brasileiro), que, por exemplo, proíbe a venda de bebida alcoólica nos estádios, sendo que isto não aplicou durante a Copa às marcas patrocinadoras nos locais dos jogos.

A Lei Geral da Copa, segundo o estudo Na Sombra dos Megaeventos

Esportivos, produzido pelo Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul -

PACS e Justiça Global (2012) aborda os seguintes pontos:

1) Proteção da propriedade Industrial e direitos de imagem, som e radiodifusão; 2) Áreas de restrição comercial;

3) Venda e preços de ingressos;

4) Tipos penais, sanções civis e juízos especiais; 5) Vistos de entradas e permissões de trabalho; 6) Responsabilidade da União.

Cada um destes temas abordados na Lei cria, de maneira geral, um regime jurídico especial, ou um estado de exceção (AGAMBEN, 2004) muitas vezes sobrepondo-se ou dando interpretação dúbia para leis já existentes no Brasil. É o caso do primeiro ponto destacado, que trata dos procedimentos de registro de marcas, emblemas e demais "símbolos oficiais" da FIFA no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Neste artigo da Lei não há qualquer definição sobre o que significa o termo "símbolos oficiais", que pode abranger uma variedade enorme de imagens, ideias, ou mesmo expressões linguísticas. Segundo o PACS, até mesmo o numeral "2014" foi registrado, além mais de mil itens somente até o ano de 2012. Isto se torna particularmente preocupante ao se verificar o texto do artigo 5º, parágrafo 1º:

Art. 5º As anotações do alto renome45 e das marcas

notoriamente conhecidas de titularidade da FIFA produzirão efeitos até 31 de dezembro de 2014, sem prejuízo das anotações realizadas antes da publicação desta Lei.

§ 1º Durante o período mencionado no caput, observado o disposto nos arts. 7º e 8º:

I - o INPI não requererá à FIFA a comprovação da condição de alto renome de suas marcas ou da caracterização de suas marcas como notoriamente conhecidas; e II - as anotações de alto renome e das marcas notoriamente conhecidas de titularidade da FIFA serão automaticamente excluídas do Sistema de Marcas do INPI apenas no caso da renúncia total referida no art. 142 da Lei no 9.279, de 1996 (BRASIL, 2012, p. 3-4).

Isto significa dizer que a comprovação ou não de propriedade em um dispositivo legal que aborda justamente tal assunto é algo secundário. Por outro lado, mesmo com base nesta autoridade, não necessariamente constatada, a FIFA tem, em consequência desta Lei, a autoridade de impedir a veiculação de imagens ou a presença da imprensa em ocasiões relacionadas à Copa das Confederações e do Mundo no Brasil.

Esta restrição se mostra ainda mais severa ao se tocar nos limites comerciais destes eventos. De acordo com o artigo 11, a FIFA torna-se responsável pela deliberação do comércio de rua nas denominadas Zonas de Exclusão - áreas que abrangem um raio de 2 km dos locais de competição. Esta disposição afirma a proibição da venda de qualquer produto que não obtenha permissão expressa da entidade.

O descumprimento desta regulamentação incorre em tipificação penal prevista. Em seu artigo 37, o projeto prevê a criação de juizados especiais, varas, turmas e câmaras especializadas para causas relativas aos eventos. Estas instâncias legais teriam prazos de julgamento e logística de funcionamento próprios no intuito da celeridade do processo, o que criou, flagrantemente, uma justiça paralela no país. No caso sul-africano, este juizado especial também foi criado e se mostrou desproporcional na sua atuação, com

45 Segundo Porto (2016), uma marca de alto renome é aquela marca que é conhecida por

consumidores pertencentes a diversos segmentos de mercados diferentes daquele mercado que corresponde aos produtos ou serviços protegidos por esta marca. Informação disponível em: http://www.nbb.com.br/pub/propriedade20.pdf. Acesso em 29/10/2016.

penas de quinze anos, por exemplo, para furtos de câmera fotográfica46. Toda esta supervalorização da FIFA no contexto de uma Copa é expressa também no tocante ao processo especial de concessão de vistos de entrada no país, onde como consta na Lei, a credencial da entidade é o suficiente para assegurar a entrada no território nacional, criando assim, uma espécie de passaporte diplomático.

Art. 26. Até 31 de dezembro de 2014 serão concedidos, sem qualquer restrição quanto à nacionalidade, raça ou credo, vistos de entrada para: I - todos os membros da delegação da FIFA, inclusive:

a) membros de comitê da FIFA; b) equipe da FIFA ou das pessoas jurídicas, domiciliadas ou não no Brasil, de cujo capital total e votante a FIFA detenha ao menos noventa e nove por cento; c) convidados da FIFA; e d) qualquer outro indivíduo indicado pela FIFA como membro da delegação da FIFA; II - funcionários das Confederações FIFA; III - funcionários das Associações Estrangeiras Membros da FIFA; IV - árbitros e demais profissionais designados para trabalhar durante os Eventos; V - membros das seleções participantes em qualquer das Competições, incluindo os médicos das seleções e demais membros da delegação; VI - equipe dos Parceiros Comerciais da FIFA; VII - equipe da Emissora Fonte da FIFA, das Emissoras e das Agências de Direitos de Transmissão; VIII - equipe dos Prestadores de Serviços da FIFA; IX - clientes de serviços comerciais de hospitalidade da FIFA; X - Representantes de Imprensa; e XI - espectadores que possuam ingressos ou confirmação de aquisição de ingressos válidos para qualquer Evento e todos os indivíduos que demonstrem seu envolvimento oficial com os Eventos, contanto que evidenciem de maneira razoável que sua entrada no país possui alguma relação com qualquer atividade relacionada aos Eventos. § 1o Considera-se documentação suficiente para obtenção do visto de entrada ou para o ingresso no território nacional o passaporte válido ou documento de viagem equivalente, em conjunto com qualquer instrumento que demonstre a sua vinculação com os Eventos, nos termos deste artigo.

Em fins de conta, toda esta legislação que instaura uma espécie de estado de exceção no país tem como último ponto a responsabilização da União por quaisquer danos ou prejuízos causados à FIFA. Como afirmam os artigos 29 e 30 da Lei:

46 Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2010/06/fifa-exigiu-mudancas-na-

Art. 29. A União responderá pelos danos que causar, por ação ou omissão, à FIFA, seus respectivos representantes legais, empregados ou consultores, na forma do art. 37, §6º, da Constituição.

Art. 30. A União assumirá os efeitos da responsabilidade civil perante a FIFA, seus representantes legais, empregados ou consultores por todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos Eventos, exceto se e na medida em que a FIFA ou a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano.

Parágrafo único. A União ficará sub-rogada em todos os direitos decorrentes dos pagamentos efetuados contra aqueles que, por ato ou omissão, tenham causado os danos ou tenham para eles concorrido, devendo o beneficiário fornecer os meios necessários ao exercício desses direitos (BRASIL, 2012, p.9).

Fica patente nesta lei a tutela penal do Estado brasileiro dos interesses da FIFA em troca do direito de sediar uma Copa do Mundo. Isto se dá por meio de um regime jurídico especial que se sobrepõe à Constituição de uma nação e responsabiliza-a por danos econômicos que podem acontecer para uma entidade privada.

No entanto, tal imposição não se deu sem resistências. Em relação à meia-entrada nos estádios, direito garantido por lei para estudantes e idosos, após protestos de entidades estudantis e pressão da sociedade, o Governo Federal entrou em acordo com a FIFA e estabeleceu um total de 300 mil ingressos, ou 10% das entradas de todos os jogos47, destinados à meia- entrada para estudantes com identidade estudantil, pessoas com mais de 65 anos e beneficiários do Programa Bolsa Família.

A aceitação das condições impostas pela FIFA para a realização do Mundial em nível nacional reproduz-se nos níveis estaduais e municipais, através de legislações ou decretos que se coadunam com a Lei Geral da Copa. No Ceará, o marco, segundo Frota (2015) foi o Convênio ICMS 134, de 16 de dezembro de 2011 que institui a isenção para a FIFA do pagamento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), justamente a principal forma de arrecadação tributária dos governos estaduais. Este convênio foi ratificado e incorporado à legislação tributária estadual através do Decreto nº

47 Disponível em: http://www.direitosdacrianca.gov.br/temas/esporte/em-pauta. Acesso em

30.873 de 10 de abril de 2012 e pela Instrução Normativa da Secretaria da Fazenda nº22/2012 que estabeleceu que todas as empresas responsáveis pelas obras inseridas na Matriz de Responsabilidades também estariam albergadas pela isenção de ICMS.

Em nível municipal, a legislação de suporte à Lei Geral da Copa se dá através de três projetos de leis aprovados. As duas primeiras foram as Leis Municipais de nº 9.986 e 9.987, ambas aprovadas em prazo recorde de dois dias de discussão, após serem colocadas pelo Legislativo Municipal como "não polêmicas" e sancionadas em 28 de dezembro de 2012. Estas estabelecem, no caso da lei 9.986/2012, as vantagens comerciais aos parceiros da FIFA em âmbito municipal, eximindo a entidade da legislação local quanto à proibição da venda de bebidas alcoólicas em estádios (salvo para menores de 18 anos), deixando a cargo da entidade o controle do que poderia ser comercializado nos espaços oficias da Copa.

Além destes dispositivos, na Lei Municipal nº 9.987/2012 foram definidas as "zonas exclusivas" em um raio de dois quilômetros dos locais oficiais da competição, onde a entrada era regulamentada pela FIFA, deixando a esta o controle de quem tinham acesso ou a permissão de comercialização de produtos nestas áreas. Nesta lei ficou também definido que, em dias de jogos da Copa em Fortaleza, seriam decretados feriados municipais, assim como não seriam permitidos eventos públicos durante o período do Mundial que tivessem relação com a Copa sem a devida autorização da FIFA, incluindo transmissões públicas de jogos em espaços abertos, o que é uma tradição durante o período de Copa no País.

A terceira Lei municipal a se consolidar em função do Mundial foi a de nª 9.988/2012, sancionada também 28 de dezembro, relativa isenção tributária da cobrança do Imposto Sobre Serviços (ISS) para a FIFA e seus parceiros, o que, na prática, retira a possibilidade do incremento direto da arrecadação municipal com a Copa das Confederações e do Mundo, pois esta prevê vigência de até 60 dias após a realização do Mundial na Capital.

Tal influência da FIFA se impôs inclusive no instrumento de regulação urbanística da Cidade, que é o Plano Diretor Municipal. Construído de forma participativa em 2009, a legislação previa a constituição de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), as quais, de acordo com Estatuto das Cidades (Lei

Federal 10.257/2001) devem proteger áreas de habitação de famílias definidas como de baixa renda. Contudo, no próprio instrumento foi incluído pela Prefeitura Municipal, quando da discussão do projeto de Lei do referido Plano Diretor na Câmara Municipal, artigo que relativizava o impedimento da execução de grandes empreendimentos nestas zonas quando se tratasse de projetos ligados ao Mundial de 2014. Tais mudanças são descritas da seguinte forma:

Art. 5º. Fica a Chefe do Poder Executivo, em consonância com o que estabelece o artigo 4º, autorizado a, por decreto, estabelecer exceção aos parâmetros urbanísticos da área em está inserida a ZEIS 1 do Lagamar, quando o interesse público justifica, ou quando estiverem envolvidas ações de infraestrutura viária ou infraestrutura urbana ou ambiental, ou ainda, quando se tratar de projetos que tenham relação com a Copa 2014. (Projeto de Lei Complementar, 21/12/2009) (PEQUENO; FREITAS, 2015)

Toda esta movimentação de recursos legais tem, portanto, efeitos práticos na construção do "estado de exceção" que se configurou na Copa das Confederações e na Copa no Brasil. Vale ressaltar, entretanto, que estas eram condições conhecidas para todos os países ou cidades que se candidatam a sediar um Mundial, inserindo-se como condição. A despeito destes aspectos, o Governo Federal considerou exitosos os eventos no País, construindo inclusive para o Mundial o epíteto a "Copa das Copas", como se verá mais adiante.

Na realidade específica do Ceará, o êxito do evento mostrou-se, de acordo como será demonstrado a seguir, a partir da oportunidade de "apresentar" Fortaleza para o mundo, principalmente, do ponto de vista turístico. Esta estratégia, por sua vez, reafirma o empreendedorismo urbano praticado pelo poder público em Fortaleza, que atua tendo em vista a inserção da Cidade nos fluxos globais de capital, além da superação da associação do Estado com a pobreza e com os efeitos da seca.