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A ideologia é uma construção, é um conceito historicamente formulado dentro de cada modo de produção e reprodução humana, ou seja, é proveniente não de uma ordem divina superior, mas da expressão das relações materiais que impõe uma expressão de mundo na realidade. E essa expressão, para tanto, traduz-se de forma quase invisível ao ser humano, de maneira que é passada como parte de um corpo presente de instituições, meios de comunicação e teorias. Tendo-se, assim, um “sistema de representações, crenças, valores que, como veremos, são impostos de modo não consciente ao homem ao entrar nas relações sociais de produção e funcionam como ídolos (Marx dirá fetiches), não como ideias” (SILVA, 2011, p. 24).

Há muitas formas percebidas cotidianamente em que a ideologia pode se realizar. A fim de ilustrar o entendimento sobre a realidade e a ideologia, utilizaremos o exemplo referenciado pelo autor venezuelano Ludovico Silva, que emprega uma analogia de Marx, comparando a ideologia a uma câmara escura.

A ideologia se trata de uma “expressão”, uma linguagem que descreve a realidade a quem a observa, mas não é a realidade em si. Para tal, a analogia de Marx funciona de forma semelhante ao comparar o processo do fenômeno físico realizado dentro de uma câmara escura com a forma na qual o ser humano cria seu processo de conhecimento e consciência sobre o mundo, dado o processo histórico observado (SILVA, 2011).

Uma câmara escura é um aparelho óptico, cujo funcionamento é simples. Consiste, basicamente em um compartimento inicialmente fechado e sem iluminação ou interferência

do mundo externo no seu interior. Por meio de uma abertura em um de seus lados, a luz refletida e refratada pelos objetos e pessoas que se encontram no meio externo, diretamente expostos à abertura, adentra a câmara, atravessando a caixa e formando uma imagem na superfície, no fundo da câmara. A particularidade da imagem formada é que ela se inscreve de modo invertido, de cabeça para baixo, demonstrando o objeto observado não na forma correta, mas oposta – o em cima vira o embaixo e o embaixo vira em cima.

Dessa forma, compara-se o comportamento da consciência humana a semelhante fenômeno. A câmara seria a ideologia, que, ao receber informações do mundo exterior, inverte a imagem da realidade do fenômeno histórico vivente, formando uma imagem no fundo da câmara que não é o referencial exposto pelo meio, mas “um „reflexo‟ da realidade histórica, no qual „os homens e suas relações aparecem invertidos‟” (SILVA, 2011, p. 27).

No entanto, devemos nos atentar para não declarar a ideologia como uma visão invertida da realidade por representar o seu “reflexo”. Assumir tal ideia não apenas a coloca como um processo natural, físico, tal como a inversão da imagem de um objeto para seu observador, mas também como algo contrário do real, quando, com efeito, a ideologia é uma parte do real, uma expressão da realidade que “é, pois determinada pelas estruturas sociais, mas dialeticamente, não de maneira linear, mecânica” (SILVA, 2011, p. 43), onde, como descreve Konder (2020, p. 44), têm-se o:

[...] funcionamento do “mundo invertido [verkehrte Welt] que embaralha a nossa consciência, trocando valores intrinsecamente qualitativos – valores absolutos fundamentais para as convicções duradouras que nos permitem orientar nossas vidas – por valores quantificados, sempre relativos e conjunturais.

A ideologia é o movimento em que ocorre a abstração da condição histórica vista de fato, de maneira que as suas condições se tornam elementos ideais e relações essenciais na sociedade. Congelando-as no tempo de forma a estabelecer regras, determinações e naturezas, fenômenos históricos elevam-se ao patamar da “verdade” ou da realidade total. Para tanto, a realidade histórica vivida pelo indivíduo acaba por contribuir na determinação do produto da ideologia vigente para que se dê como precedente da ação de um ser concreto, ou seja, o ser humano em seu ambiente de ação por meio do trabalho (SILVA, 2011).

Assim, a ideologia, seja ela qual for, é um recorte da realidade, nunca sua totalidade. Ao exprimir-se como um falseamento da realidade como um todo, “[...] a ideologia faz parte do real [...], mas não parte de suas relações visíveis” (SILVA, 2011, p. 27).

Esse processo apresenta então as caracterizações inerentes de seu funcionamento nos períodos mais recentes da história. A primeira descreve-se através da alienação, que consiste em um fenômeno histórico que apropria o desenvolvimento natural humano, dado pela sua produção por meio do trabalho, e gera “una reproducción o expresión ideal, inmaterial, de aquellas relaciones sociales materiales” 6 (SILVA, 1971, p. 15) no indivíduo.

No entanto, como visto de forma predominante no modelo de produção mercantil e capitalista, a relação de produção que se dá pela fetichização do produto produzido adquire o caráter de um elemento eterno, primordial ou natural ao ser humano. A alienação atravessa todas as relações de trabalho no mundo moderno, mostrando-se como um conceito universal que compõe todas as relações humanas, que dita como se dará o antagonismo entre as classes, separando, inerentemente, os indivíduos não só um dos outros, mas do resultado de seu trabalho realizado, alienando-o.

Resumidamente, tem-se a fetichização do trabalhador, do produto de seu trabalho e de suas relações com a exploração capitalista sendo ocultada pela ideologia.

Con la desaparición de la explotación vendrá la desaparición de la ideología de la explotación. Toda ideología es justificación de una explotación. Al desaparecer ésta desaparecerá la ideología7 (SILVA, 1971, p. 19).

Quanto à segunda característica da ideologia, iremos caracterizá-la pelo que ela não é, que seria uma parte integrante do campo das ideias, pertencendo somente à psique dos indivíduos por meio de suas vivências e opiniões. Essa visão é reducionista e ideológica em si, logo que subtrai as relações materiais e de exploração, tornando a si mesma somente parte da mentalidade dos indivíduos, de forma que ela não seria afetada, ou não teria, inerentemente, uma relação dialética com a prática.

A ideologia, antes de qualquer coisa, faz parte de um processo de repressão composto por “un sistema de valores, creencias y representaciones que autogeneran necesariamente las sociedades en cuya estructura haya relaciones de explotación a fin de justificar idealmente su propia estructura material de explotación” 8 (SILVA, 1971, p. 19).

Esses valores e crenças não surgem espontaneamente e não são elementos que transcendem o campo de ação humana. Eles são parte desse campo, podendo sofrer transformações e mudanças em seu funcionamento ou percepção, mas que obedecem uma

6

“uma reprodução ou expressão ideal, imaterial, daquelas relações sociais materiais” (tradução nossa).

7

“Com o desaparecimento da exploração, virá o desaparecimento da ideologia da exploração. Toda ideologia é justificativa para exploração. Quando ela desaparecer, a ideologia desaparecerá” (tradução nossa).

8

“um sistema de valores, crenças e representações que autogeram sociedades em cuja estrutura existem relações de exploração a fim de justificar idealmente sua própria estrutura material de exploração” (tradução nossa).

lógica, a lógica de quem detém o poder. Como bem descreve Marx, “A classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante [...] são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47).

Por meio da ideologia, apresenta-se um conjunto de ideais como a explicação racional dos fenômenos observados no dia a dia que, através de uma série de conceitos abstratos e totalizantes, a classe dominante “é obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse comum de todos os membros da sociedade” (MARX; ENGELS, 2007, p. 48). Ou seja, a ideologia se passa como um elemento concreto impresso sobre o real, assumindo, por fim, um caráter universalizante não só ante todas as classes, mas a realidade.

Portanto, é perceptível qual foi a principal ideologia propagada pelo mundo entre os séculos XIV e XIX, a ideologia baseada na mentalidade da metrópole europeia e das classes dominantes. Uma ideologia moderna que garantiria, portanto, “una teoría de la historia universal y, a partir de ella, un proyecto político mundial”9 (AMIN, 1989, p. 75): o eurocentrismo.