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4.3 O INCÁRIO

4.3.5 Esclarecimentos

Chegando até aqui, próximo à metade do trabalho, parece pertinente fazer certos esclarecimentos quanto ao componente sócio-histórico apresentado e algumas das possíveis dúvidas ou pensamentos sobre as sociedades pré-colombianas, principalmente a incaica e suas formas de organização.

Em primeiro lugar, precisamos entender que no centro da discussão sobre essas sociedades está presente uma ideia que, diferente do universalismo e etapismo capitalista, deve ser defendida: as qualidades particulares e a formação histórica, não só dos incas, mas de todos os povos da Abya Yala antes da chegada europeia no continente os levaria a um resultado inerentemente diferente de um sistema capitalista (TAVARES, 2019).

Afirmar esse conceito parece simples. Mas, no centro da ideologia capitalista, a ideia se permeia das maneiras mais sutis, seja na fala, no ato ou no conhecimento geral dado pela educação. De forma a compreender que outras sociedades, que até o século XV se

encontravam fora do manto ideológico e de produção ocidental e europeu – sejam elas latino- americanas, africanas, oceânicas e de outras regiões do mundo – realizariam um processo próprio e único de desenvolvimento, completamente diferente do capitalismo.

Assumir o oposto leva a análises errôneas e equivocadas sobre essas sociedades, não somente por observar a particularidade europeia e a generalizar de maneira abstrata, mas porque ignora o processo histórico colonial de acumulação primitiva e criação de valor através das trocas desiguais com a exploração da periferia. Ao passo que eleva o capitalismo, e seus ideais, ao campo mais alto do desenvolvimento humano, tornando-o “fatalmente” o ideal que todas as sociedades almejam e que deveriam culminar a ser.

Em autores da nossa bibliografia, encontramos exemplos dessa trapaça. Como em Henri Favre (2004, p. 48), ao afirmar que, para os incas, seria “[...] apenas questão de tempo a transformação de um Império tradicional em um grande Estado”. Nessa citação, percebemos duas tendências ao equívoco. A primeira ao assumir os valores de governos europeus ao modelo incaico em expansão, pois, como já explicitado anteriormente, o Tawantinsuyu difere de qualquer “Império tradicional” visto até então. A segunda, ao colocar o desenvolvimento tendo como resultado o Estado. Compara-se esse desenvolvimento àquele do Estado Moderno europeu de um Estado-nação, uma concepção própria de Estados capitalistas – que será explorada melhor adiante – a qual serve, de acordo com Dieterich (In: Tavares, 2019), para dar ao Tawantinsuyu seu desenvolvimento ante uma visão etapista, cujo resultado “final”, “desejado” ou “inevitável” das sociedades seria o capitalismo.

Além dos dois equívocos identificados na citação de Favre, outros dois elementos, que se complementam entre si e aos dois exemplos dados, apresentam os mesmos vícios ao interpretar o Tawantinsuyu. O primeiro, discorre sobre o perfil das sociedades originárias comunal, que discutiremos de modo aprofundado no capítulo sobre o processo de colonização e os relatos europeus das sociedades pré-colombianas, como elas eram vistas como “selvagens” e “primitivas” ou como a “irracionalidade” dos indígenas os fazia serem vistos como se sequer fossem humanos Bartolomeu de las Casas (2007); possibilitando que, ao discutirmos a questão do Estado-nação da Bolívia como tal, possamos introduzir posteriormente a discussão entre o “ser” e o “não-ser” (ZIMMERMAN, 1987).

O segundo elemento é a questão de como o poder se dava nas regiões da Abya Yala, onde se tem um grande poder central. Partindo do ideal de que o modo de produção pré- colombiano é considerado “primitivo” por aqueles de origem ocidental, também assim seriam consideradas suas estruturas sociais e de estabelecimento de superestrutura. De forma que as

regras, instituições e leis seriam incapazes, por não serem do mesmo direito europeu, de regular a terra, seus recursos e sua gente.

Portanto seriam seus líderes inerentemente incapazes de governar, mas, por serem líderes tiranos e despóticos, seriam necessariamente “vilões” contra a liberdade e a visão comunitária – que em si era minimizada diante da produção privada e servil. Todos elementos que, como veremos a seguir, acabam por se tornarem justificativas para desmistificar a presença de um “comunismo primitivo” na Abya Yala. Uma declaração que não poderia estar mais enviesada pelo capitalismo.

Não nos prolongaremos quanto a isso, logo que acreditamos ser fruto de discussão para trabalhos futuros. Porém, de forma a esclarecermos a presença do Inca, e sua autoridade, assim como o caráter comunista das sociedades andinas, apoiaremo-nos em dois trechos muito elucidativos de José Carlos Mariátegui, em Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana.

Primariamente, faz-se necessário descrever que o quadro onde se desenvolve o comunismo para Marx seria de uma era pós-industrial. Em uma Inglaterra recém saída da Revolução Industrial, onde séculos de acumulação tornaram possível a produção de excedente suficiente para a sociedade se reproduzir de maneira plena. Marx iria declarar que, com a abundância na produção mundial, como jamais visto antes, não haveria razão para a miséria continuar a existir na humanidade (MARX; ENGELS, 2005).

Tal condição é de um quadro fundalmentalmente visto pelos ideais comunistas que podemos destacar na sociedade incaica. No entanto, se nos apoiarmos no conceito moderno de marxismo, excluindo as condições históricas e a unicidade da formação incaica e andina, não apenas nos colocaríamos em completa dissonância da crítica do capital, caindo em mais uma ideologia capitalista, mas, como vemos em Mariátegui (2008), excluiríamos toda a cosmovisão dessa sociedade como forma de se relacionar com a natureza e entre si:

O comunismo moderno é coisa distinta do comunismo incaico. [...] Um e outro comunismo são o produto de diferentes experiências humanas. Pertencem a diferentes épocas históricas. Constituem a elaboração de civilizações diferenciadas. A dos incas foi uma civilização agrária. A de Marx e Sorel é uma civilização industrial. Naquela, o homem se submetia à natureza. Nesta, às vezes a natureza se submete ao homem. É um absurdo, portanto, confrontar as formas e instituições de um e de outro comunismo. O único que se pode comparar é sua semelhança incorpórea essencial, dentro da diferença essencial e material de tempo e de espaço. E para essa comparação faz falta um pouco de relativismo histórico [...].

O regime incaico - constata - foi despótico e teocrático; logo - afirma - não foi comunista. Mas o comunismo não supõe, historicamente, liberdade individual nem sufrágio popular. A autocracia e o comunismo são incompatíveis na nossa época; mas não o foram em sociedades primitivas. Hoje uma ordem nova não pode renunciar a nenhum dos progressos morais da sociedade moderna. O socialismo

contemporâneo - outras épocas tiveram outros tipos de socialismo que a história designa com diversos nomes - é a antítese do liberalismo: mas nasce de suas entranhas e se nutre de sua experiência. Não desdenha nenhuma de suas conquistas intelectuais. Não escarnece nem vilipendia senão de suas limitações (MARIÁTEGUI, 2008, pp. 91-92).

Assim, é a partir da visão sobre o caráter comunista ou não dos incas que podemos tratar a questão do despotismo e de como a religião agia na sociedade incaica. A visão que se tem sobre esses aspectos em relação às sociedades atuais é que, teoricamente, os governos considerados avançados, “plurais” ou que buscam a “diversidade”, são aqueles de caráter democrático, capitalista, laicos – por “prezar a liberdade” e que “garantem direitos a todos” – mas principalmente o direito a propriedade privada. É uma visão essencialmente moderna, descolada da realidade incaica e serve para ocultar a própria formação dos Estados europeus.

O regime incaico certamente foi teocrático e despótico. Mas esse é um traço comum a todos os regimes da antiguidade. Todas as monarquias da história se apoiaram no sentimento religioso de seus povos. O divórcio do poder temporal e do poder espiritual é um fato novo. [...] James George Frazer [...] escreve: „Remontando o curso da história, se verá que não por um simples acidente que os primeiros grandes passos para a civilização foram dados sob governos despóticos e teocráticos [...] todos países nos quais o chefe supremo exigia e obtinha a obediência servil de seus súditos pelo seu duplo caráter de rei e de deus. Seria apenas um exagero dizer nessa época longínqua o despotismo era o maior amigo da humanidade e, por paradoxal que pareça, da liberdade. Pois, afinal de contas, existe mais liberdade, no melhor sentido da palavra - liberdade de pensar nossos pensamentos e de modelar nossos destinos - sob o despotismo mais absoluto e a tirania mais opressora que sob a aparente liberdade da vida selvagem. [...] O francês Charles Gide pensa que, mais exata que a célebre frase de Proudhon, é a seguinte fórmula: „O roubo é a propriedade‟. Na sociedade incaica não existia o roubo porque não existia a propriedade. Ou, se preferirmos, porque existia uma organização socialista da propriedade. [...] Os frutos do solo não são entesouráveis. Não é verossímil, por conseguinte, que dois terços fossem açambarcados para o consumo dos funcionários e sacerdotes do império. Muito mais verossímil é que os frutos que se supõe serem reservados para os nobres e para o inca estivessem destinados a constituir os depósitos do Estado. E que representassem, em suma, um ato de previdência social, peculiar e característico de uma ordem socialista (MARIÁTEGUI, 2008, pp. 92-93).

Logo, finalizamos esta seção de esclarecimentos gerais deixando em aberto discussões gerais sobre a forma comunitária, mas destacando que, ao utilizarmos uma visão moderna para realizar críticas sobre as civilizações passadas, não só anulamos sua importância e influência, mas agimos como um instrumento do capital para realizar o desmerecimento e o memoricídio desses povos; reproduzindo o mesmo juízo de valor e racismo construído secularmente para desmoralizar grupos não brancos, enquanto se coloca de escanteio o ideal da propriedade comunal e, como descreve Tavares (2019), de uma possível saída atual do capitalismo ao aprender com o socialismo comunitário dos povos indígenas, não só dos Andes, mas da América Latina.