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Antes de descrevermos a colonização, precisamos entender o fundamento principal do pensamento dos invasores da região dos Andes. Tendo suas origens no ideal de que possuíam o gene de uma “raça de ferro”, os invasores espanhóis vinham de uma longa tradição de conflitos. A Península Ibérica havia passado por mais de sete séculos de conflito, em uma guerra que teve por resultado a expulsão de judeus e mouros de seus territórios. Gerações de portugueses e espanhóis nasceram, viveram e morreram em meio a uma disputa sanguinária e de destruição sistemática de certos membros da sociedade (RAMOS, 2014, p. 44).

Com uma pequena parte de sua sociedade tendo ascendido para novas posições sociais, enquanto a maioria, como já descrevemos, apenas aspirava a riquezas, a transição do período medieval ao mercantil-capitalista na Espanha se deu de forma vagarosa. Logo que, com o pensamento ibérico comum sendo governado por ideais cavalariços e da destruição de “infiéis” no país, a educação guerreira e a necessidade de viver de saques acabaram por se tornar viciosas ao próprio governo e à população da península. Em um movimento que, tal como descreve Manoel Bomfim (2005, p. 83), se desenvolveria como um parasitismo social, baseado no predadorismo de outros povos e da incapacidade de se desenvolver por si só, que viria a ser regra durante o processo de colonização.

Além do mais, durante essa época, a Europa já vivia o Renascimento e via a chegada crescente de riquezas vindas das Índias. Em um quadro onde novas estruturas de produção possibilitavam a reprodução das classes altas da Espanha, visando o enriquecimento com recursos ultramarinos, uma pequena minoria da sociedade iria se regozijar dos espólios das invasões, enquanto a fome e a miséria assolavam a maioria da população.

Possibilitando um quadro que, até então, na história, nunca fora visto, um pauperismo tão latente na Europa. Com milhares de mendigos perambulando pelas ruas e províncias europeias, vivendo apenas de esmolas, furtos e favores, logo essa população seria tratada como parte “improdutiva” da sociedade. Para lidar com a ociosidade, a Espanha encontraria

duas saídas: a criação de “polícia de mendigos” e a promoção do envio desses indivíduos para as colônias como mão de obra barata (RAMOS, 2014, p. 77).

O famoso império engendra a picaresca, a fome secular e místicos devorados pelas suas iluminações. Enquanto a Europa desenvolve uma economia burguesa moderna, a Espanha dos Áustrias espiritualiza sua miséria num Quixote sarcástico e sonha com novelas de cavalheiros. Nobreza e financistas dominam os seus tristes reis: o pai, doente de grandeza, mergulhado por alguma tara orgânica num misticismo guerreiro; seu filho, vítima de uma hipocondria criminosa. Por baixo, perambula uma multidão de camponeses sem terra, artesãos sem artesanatos, letrados sem pão e vagabundos sem destino (RAMOS, 2014, p. 72).

Para tanto, com o primeiro sinal de novas terras e dos povos originários, os estrangeiros que chegaram ao novo continente eram aqueles desesperados, pobres e com sonho de conquista que haviam sido enviados por uma elite mesquinha e interessada em acumular o máximo de recurso. Em uma ação militar que, diferenciando-se muito daquela descrita como “encontro entre civilizações” dos originários e dos Europeus, foi registrada como um massacre coordenado pela Coroa e pela classe média, de forma a garantir para si, e não para a humanidade como um todo – imagem frequentemente veiculada –, as vantagens do primeiro contato.

Com a tarefa de universalizar os interesses gerados pela “descoberta” do “Novo Mundo”, generaliza-se enormemente os relatos dos primeiros cronistas ao chegarem no continente. Testemunhos, como aqueles de Pero Vaz de Caminha, na “Carta de descobrimento do Brasil” (OLIVEIRA; VILLA, 2012), dão a entender que as interações entre europeus e nativos ocorreram de maneira extremamente positiva.

A visão eurocentrista se daria, então, da seguinte forma: através do escambo de bens e da troca de conhecimentos entre diferentes culturas, aos poucos os estrangeiros e os originários caminhariam juntamente na construção de uma nova sociedade, na qual instrumentos e costumes “primitivos” seriam então substituídos ou introduzidos por novos, vindos da Europa, tendo aderência universal e, se não, seria miscigenada. Nessa lógica, serviria para que as nações “civilizadas” do Velho Mundo trouxessem ao “Novo Mundo” o desenvolvimento.

E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico, a Vossa Alteza, nos fez muita devoção (OLIVEIRA; VILLA, 2012, p. 32).

No entanto, diferentemente do que é visto nos relatos de Pero Vaz, em que se tem majoritariamente o contato amigável entre diferentes, outros cronistas, comandantes e religiosos da época descreveram essa interação de forma muito mais próxima daquela vista durante sete séculos no conflito entre mouros e espanhóis. Tendo, no entanto, uma diferença crucial: as tecnologias militares espanholas. Para tanto, o conflito que se daria seria muito mais violento, resultando, em menos de três séculos, no massacre quase completo da população indígena no continente.

No cerne do genocídio, aliado à sede por ouro espanhola, o eurocentrismo acabava por se realizar nas colônias. Através do ideal de que os indígenas seriam preguiçosos, ingênuos e “selvagens” ante os europeus, além de terem suas formas de organização consideradas ilegítimas – por serem governadas por déspotas e tiranos e pelo fato de a autoridade do rei europeu ser a única aceita –, com sua população sendo considerada de natureza “passiva, submissa e bestial”, os originários seriam incapazes de se realizar por si tal qual indivíduo ou grupo. Garantindo aos espanhóis o papel paternalista que permitiria a dominação total (GUTIERREZ, 1993).

Dessa forma, em um fenômeno visto por todo o período colonial, que perdura até os dias de hoje no capitalismo dependente, a destruição da cosmovisão indígena por meio da pregação religiosa europeia adquire um caráter muito mais profundo do que pode ser observado superficialmente. Com a descaracterização de suas divindades em virtude da propagação da fé cristã, os indígenas tiveram destituídos de si o próprio elemento comunal que os ligava à natureza e entre si. Por sua vez, a escravidão e o trabalho precarizado dos indígenas nas fazendas, minas e cidades garantia uma enorme fonte de lucro para a Espanha, enquanto o racismo se tornava instrumento de dominação. De maneira que, a discussão sobre o uso da terra e do trabalho se vinculariam profundamente ao próprio racismo e ao “problema indígena” visto nos séculos seguintes (MARIÁTEGUI, 2008).

Assim, do norte ao sul do continente, as mais diferentes relações se estabeleciam entre os originários e os estrangeiros, as quais, sempre em caráter de desigualdade, alienavam centenas de milhares de indígenas da sua cosmovisão comunitária e/ou ligada a um poder central. Ao passo que eram retirados do cultivo e desfrute de suas terras, perdiam sua razão de ser, tendo de deixar a “velha identidade” para trás.

Tal como pode ser visto nos escritos de Hernan Cortez (2007, pp. 63-64), o destruidor de civilizações, na invasão espanhola na mesoamérica:

Os principais destes ídolos e nos quais eles tinham mais fé eu derrubei de seus assentos e os fiz descer escada abaixo. Fiz também com que limpassem aquelas capelas, pois estavam cheias de sangue dos sacrifícios que faziam. Em lugar dos ídolos mandei colocar imagens de Nossa Senhora e de outros santos, apesar da resistência de Montezuma e de outros nativos, por entenderem que as comunidades se levantariam contra mim. Eu os fiz entender quão enganados estavam em ter esperanças naqueles ídolos, e que deveriam saber que existe um só Deus, senhor universal de todos, o qual havia criado o céu, a terra e todas as coisas e fez a eles e nós, sendo imortal, e que a este é que deveriam adorar.

Equiparando-os a animais, cujo abate mecânico, impessoal e de forma não ritualística já era comum aos europeus, centenas de milhares de vidas indígenas seriam ceifadas por toda América. Como apontado por Las Casas (2007, p. 55), muitos nem eram considerados humanos pelos invasores:

[...] os espanhóis tiveram a ideia de fazer um massacre ou castigo (como eles dizem) a fim de implantar e estabelecer o terror pelas suas crueldades em todos os recantos dessa região. Pois sempre foi costume em todos os países em que entraram, praticar incontinenti, à sua chegada, alguma cruel e notável matança a fim de que esses pobres e dóceis cordeiros tremessem do medo que lhes inspirava (sic).

A partir dessa noção, destacamos que o período colonial na América Latina, com intensa descaracterização e genocídio das populações locais, além da espoliação da terra, permitiria o engrandecimento dos mercados e Estados europeus; sendo a colonização dos Andes e da região que viria se tornar a Bolívia essencial no processo.

Formando uma sociedade colonial que nasce convulsionando, as províncias dominadas nos Andes seriam as principais bases de sustentação do capitalismo durante os três séculos de colonização. Em uma incorporação das terras e dos seus habitantes que, diferentemente da América portuguesa – de “lenta digestão” –, foi devorada pela Espanha na “primeira investida”, engolindo tudo e todos no “Novo Mundo” (BOMFIM, 2005, p. 107).

Com essa premissa geral, iniciamos a exposição da chegada espanhola à costa da América Andina. A invasão teve repercussões imediatas à ordem do Tawantinsuyu e a todo o futuro dos povos originários da região. Pizarro e seus homens estabeleceriam o primeiro contato e a destruição, mas as repercussões sociais e econômicas viriam a se desenrolar, como visto pela América Latina, na garantia das reformas da estrutura e superestrutura colonial durante os séculos seguintes.

De forma que, como veremos na história da colonização andina, criaria um cenário de rápida degradação interna e externa, onde a Espanha realiza:

[...] o mais colossal empreendimento capitalista do Renascimento, sem ter condições de leva-la a cabo. Esta contradição haveria de explodir três séculos mais tarde, com a dissolução do Império espanhol na América: “As várias maneiras de acumulação primitiva que fazem germinar a era capitalista distribuem-se primeiramente, e por ordem mais ou menos cronológica, entre Portugal, Espanha, França e Inglaterra, quando esta última as mistura todas, no último terço do século XVII, num conjunto sistemático que abrange, de uma vez, o regime colonial, o crédito público, a riqueza moderna e o sistema protecionista” (...) “A história dessa expropriação não constitui matéria utilizável para conjunturas; está escrita na história da humanidade com caracteres indeléveis de sangue e fogo” (MARX) (ARREGUI, 1971, p. 30).