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5.3 DECADÊNCIA DE CHARCAS E A INDEPENDÊNCIAS

5.3.8 De Bolívar à Bolívia

Apesar das investidas portenhas, o embate com o Peru ainda seria longo. Com o Peru retomando aos poucos a região do Alto Peru, os conflitos ainda seriam latentes e constantes, com indígenas de ambos os lados pegando em armas para promover os interesses locais. O conflito entre liberais, rebeldes e realistas viria a ser descrito como um massacre para todos os lados da batalha. Diversas cidades seriam pegas no meio do combate e/ou saqueadas, os campos seriam esvaziados e a economia da região despencaria (KLEIN, 2016, p. 131).

Durante um período, as forças indígenas acabaram por lutar contra o controle criollo em suas ações. No entanto, com a tensão no meio urbano, a região do Charcas não apresentou grandes mudanças quanto a isso. Já em Buenos Aires, em 1816, os argentinos declaravam sua independência formal, formando a assim chamada Províncias Unidas do Rio da Prata, não

incorporando o Charcas, onde se abolia os tributos indígenas, a mita e a encomenda (RAMOS, 2014, p. 248).

Além do mais, ainda em 1816, ao norte do continente, outras figuras viriam a proclamar as ideias de independência, com o maior exemplo, como discorremos no primeiro capítulo deste trabalho, sendo Simón Bolívar, o Libertador, que na época já havia começado suas campanhas pelo ideal de união do continente. No entanto, as investidas de Bolívar não foram as únicas. No Peru, José de San Martín cruzaria os Andes, em direção ao Chile, com o objetivo de liberar suas tropas de independência, em 1818, em nome dos realistas. Enquanto, na Argentina, em 1817, o exército da Prata entraria em confronto, sem muito êxito, com o sul do Alto Peru. Essa invasão não traria grandes lucros aos portenhos, porém resultaria na captura de um jovem realista de La Paz, Andrés Santa Cruz, que mais tarde fugiria do cárcere e se juntaria às forças peruanas (KLEIN, 2016, p. 132).

Andrés Santa Cruz, contudo, logo deserdaria contra as tropas peruanas e se tornaria um dos principais militares a se juntar a Bolívar. Unindo-se ao general Antonio José de Sucre, braço direito do “Libertador” e principal comandante da invasão ao Alto Peru, Santa Cruz possibilitaria o recrutamento de forças rebeldes aliadas e ajudaria na investida que iniciaria o processo de independência formal de toda a região de Charcas (KLEIN, 2004, p. 67).

Para mais, a falta de interesse dos liberais de Buenos Aires quanto à defesa de suas províncias do interior e da região do Alto Peru contribuíam para que o sentimento de separatismo crescesse em relação às elites locais do Charcas. Para tanto, seria Casimiro Olañeta o principal a representar os interesses mineradores e dos hacendados quanto à defesa de um Alto Peru independente, tanto de Buenos Aires quanto das forças de Bolívar. Isso levou a um confronto contra Sucre, o qual tinha aval de Bolívar sobre as decisões tomadas na região (RAMOS, 2014, pp. 242-243).

Dessa maneira, foi na decisiva batalha de Ayacucho que Sucre venceria de vez as forças peruanas e entraria na região do Alto Peru (KLEIN, 2016, p. 134). Apesar da vitória de Sucre e da região estar “libertada”, esta se encontrava entre escombros. Após quase duas décadas de conflito, a estrutura interna era complexa para ser administrada e exigia muita atenção. O que fez com que Sucre tomasse a decisão de impor um regime provisório na região, com a possibilidade de separá-la do resto do Peru.

Bolívar, ao contrário de Sucre, tinha inicialmente outros planos para a integração da região. Para o Libertador a separação do Alto Peru do resto de seu poder colocaria não só os interesses na mão das elites locais, como iria enfraquecer seus ideais de fazer do continente uma única república unida. No entanto, com a própria Grande Colômbia, a maior conquista de

Bolívar até então quanto a sua integração, requerindo atenção militar e administrativa para se manter existente, Simón autoriza o general da batalha de Ayacucho de decidir o destino da região (KLEIN, 2016, p. 135).

Com a oligarquia do Rio da Prata renunciando espontaneamente seus interesses sobre o Alto Peru, autodestruindo a soberania da Argentina, as elites locais do Charcas iriam, então, ratificar uma posição separatista ante Sucre (RAMOS, 2014, p. 245). Além disso, o desinteresse formal também incluía o Peru, justificando que as terras altas do sul do Peru, juntas ao Alto Peru, formavam uma região de familiaridade natural – quanto aos povos e o meio ambiente – do altiplano ao sul do Titicaca, compartilhando assim a experiência quéchua e aimará na região. (KLEIN, 2016, p. 136). Os peruanos enxergavam que a independência na região possibilitaria a criação de um “Estado tampão” contra uma possível ofensiva vinda do Rio da Prata.

Para tanto, em fevereiro de 1825, Sucre declararia a formação de uma assembleia constituinte das províncias do Alto Peru, desagradando inicialmente Bolívar, que considerava que separar a região do Peru não contribuiria no seu projeto integracionista. Porém, após convocada a assembleia de deputados do Alto Peru, os interesses de Bolívar mudariam (RAMOS, 2014, p. 244).

Na assembleia, o sentimento separatista era latente, e, para garantir o apoio de Bolívar, ocorre então a sua “deificação”. Assim, o Libertador seria clamado como símbolo desse novo Estado, o qual receberia o nome oficial de República de Bolívar, enquanto declaravam Bolívar seu presidente e pediam a ele a formação de um projeto de constituição – a qual o Libertador, com muito orgulho, escreveu (RAMOS, 2014, p. 247).

No entanto, a constituinte boliviana seria uma das primeiras derrotas de Bolívar e marcaria o começo do fim da sua influência. Primeiramente, o Libertador realizaria uma mudança quanto ao papel indígena na região. Com isso é declarado extinto no país o cargo de kurakas, os indígenas passam a ser considerados cidadãos e o serviço pessoal indígena seria abolido, buscando inclusive realizar uma revolução agrária no país – que não deu frutos. Além do mais, evocando o ideal de Simón Rodríguez, seu mestre, Bolívar também incluiriam em seus planos educar a todos os cidadãos bolivianos, sem distinção de etnia ou origem, com criação de escolas e de oficinas técnicas. Isso desagradaria imensamente às elites, logo que, buscando que seus filhos seguissem cargos de importância administrativa, advocacia, medicina, literatura, entre outras profissões, viam no ensino prático, como da marcenaria, a nivelação da educação no patamar esperado para mulheres, mestizos, indígenas e pretos (RAMOS, 2014, pp. 249-250).

Contudo a queda de Bolívar não viria de seus planos e ambições iniciais, mas da constituição que ele mesmo havia redigido. Na constituição, Bolívar atribui a si a totalidade do Poder Executivo, declarando vitalícia a sua permanência como presidente, enquanto tem-se a existência do cargo de vice-presidente e secretários de Estado. Além do mais, o texto dizia que o presidente seria determinado pela maioria absoluta do corpo legislativo e seria responsável por propor o vice-presidente, as câmaras de governo e de afastar cargos do governo (RAMOS, 2014, p. 251).

A constituição de Bolívar encontraria uma ferrenha negatória vinda das elites locais. Acusando-o de possuir um caráter autoritário e paternal, em que trocaria o despotismo espanhol pelo próprio, as elites viam seus interesses e decisões eclipsados pelo texto. Com os deputados decidindo por outorgar uma segunda constituição enquanto Sucre assumiria o lugar de presidência da Bolívia.

O sonho do general começou a se desfazer no mesmo dia em que culminou. Nem bem havia fundado a Bolívia e concluído a reorganização do Peru, teve de voltar às carreiras de Santa Fé, forçado pelas primeiras tentativas separatistas do general Páez na Venezuela e pelas intrigas de Santander em Nova Granada (MÁRQUEZ, 2017, p. 158).

Por fim, com uma população estimada em 100 mil mestizos, 200 mil brancos e 800 mil indígenas – este último em sua esmagadora maioria vivendo no campo – (KLEIN, 2004, p. 73), é formado o Estado da Bolívia no início do século XIX, mas não seria formada a nação boliviana de maneira concreta; um destes fatos que mostram inclusive como a própria região, não só seu povo se transformaria, são as áreas em cinza na Figura 9 – que demonstra a Bolívia no ano de sua constituição -, elas representam áreas bolivianas que seriam perdidas ou cedidas pelo país em meio a guerras durante o século XIX e XX, perdendo mais da metade de sua área e transformando-se em um diminuto território no meio do continente, sem saída para o mar e sem encontrar uma saída para a sobrevivência de muitos de seus povos.

A noção de espaço geográfico soberano aparece quando se geram as condições de produção requeridas para esse espaço, quando o interesse dinástico antecipa as condições políticas dessa soberania ou quando um punhado de patriotas afirma os direitos da nação.

O regionalismo exportador na América Latina demonstraria que só estava apto para formar estados, mas não para formar nações (RAMOS, 2015, p. 246).

Figura 9 – A Bolívia em 1825.

CAP. VI: PONDERAÇÕES SOBRE O “SER” E O “OUTRO”

„[...] Mas, resta tempo para despertar da letargia, e para abandonar os erros e preocupações, filhas do orgulho e da vaidade, Sacuda V.M. rapidamente as envelhecidas e odiosas rotinas e, bem consciente de que as nossas presentes calamidades são o resultado de tão longa época de delitos e prostituições, não

arranque de seu peito a tocha luminosa da sabedoria nem se prive de exercício das virtudes. Um povo que oprime outro não pode ser livre‟ (Dionísio Inca

Yupanqui IN: RAMOS, 2014, p. 157, grifo nosso).

A partir do que pontuamos até agora, temos, então, o quadro histórico, social, econômico e político na Bolívia até meados de 1800. Com a região adquirindo o papel de um Estado recém-formado, a República de Bolívar, ou a República da Bolívia – como seria denominada oficialmente até a Constituição de 2009 –, surge como parte dos interesses e de divisões internas das elites portenhas, estrangeiras, peruanas e regionais.

Desconsiderando os interesses da população, em uma região dos Andes composta por territórios com diversos biomas e pisos geográficos, onde grande parte de sua população é majoritariamente não branca, com um esmagador número de indígenas e mestizos, enquanto pretos e outros grupos étnicos continuam minoria, a Bolívia não veria o fim do trauma gerado pela colonização com o fim do período colonial. Apesar de terem em suas mãos a primeira oportunidade de unificação desde o Tawantinsuyu, a formação do Estado estaria longe de responder com clareza às demandas de sua população ou, mesmo, qual o significado de nação para os bolivianos.

Como informamos na introdução do trabalho, deixamos o tema da nação e da composição boliviana para o final. Discutiremos a posição do “outro” na sociedade latino- americana e andina. Destacamos, antes de qualquer coisa, a resposta dada por Arregui (1971, pp. 10-11) sobre certas questões relacionadas à nação que trataremos a seguir:

A pátria, junto com outras determinadas específicas, é uma categoria histórico- temporal experimentada como a „posse em comum de uma herança de recordações‟. [...] De modo que a pátria é, ao mesmo tempo, um fato psicológico, vivido como experiência individual, e um fato social, enquanto consciência coletiva de um destino. [...] O “ser nacional” é ao mesmo tempo um povo cultural ou uma comunidade nacional de cultura. Mas explorando o conceito de “comunidade nacional”, menos rico, mais próximo a nossas atividades práticas, comprovamos que esse conceito engloba elementos constitutivos múltiplos e contrapostos, não definíveis à primeira abordagem. Portanto, devemos retirar textura dêsses elementos formativos do “ser nacional”, da pátria, da comunidade nacional. O conceito de comunidade nacional tende a desdobrar-se no conceito mais compreensivo de “nação”. A nação, realidade jurídica circunscrita no espaço e no tempo, com uma estrutura política própria, não é um ser fora da experiência histórica. A nação é um fato verificável, pois sem território não existe nação; é um fato institucional, pois sem normas sociais aceitas pelo grupo não há vida social; é um fato histórico, com sua gênesis e desenvolvimento, pois expressa a origem e permanência no tempo do grupo institucionalizado, e a continuidade das gerações cujos frutos são mantidos na

recordação dos vivos pelo legado dos mortos, representado, em primeiro lugar, pela língua, „existência e sangue do espírito‟, e, depois, pela aprovação supra-individual de valôres semelhantes, passados e presentes, com os quais a comunidade nacional reconhece a si mesma como unidade de cultura.

Nestas sucessivas reduções do conceito, vemos que o “ser nacional” é o processo de interação humana, surgido de um solo e de um futuro histórico, com suas criações espirituais próprias - lingüísticas, técnicas, jurídicas, religiosas, artísticas - ou seja, o “ser nacional” significa cultura nacional (sic).