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Capítulo 1: A regulação das políticas públicas e a gestão escolar

2. NOVOS MODOS DE REGULAÇÃO E A EVOLUÇÃO DA GESTÃO ESCOLAR

2.2 Colegialidade versus unipessoalidade

2.2.3 A imposição da unipessoalidade

Dez anos mais tarde, a publicação do DL 75/2008 (vigência do XVII governo constitucional) marcou o regresso de duas perspectivas apresentadas há dezassete anos atrás (DL 172/91) para a administração e gestão da escola, assumindo ambas as medidas, no entanto, contornos diferentes dos então promovidos. Por um lado, evidenciou a imposição da unipessoalidade, ou seja, o “cargo unipessoal” como única configuração para a gestão escolar e, por outro, recuperou o desenvolvimento de um “procedimento concursal” para a escolha do diretor. Os dois principais aspetos do regime experimental de 1991, com algumas alterações, ganhavam força de lei em 2008.

Em relação ao “cargo unipessoal”, o XVII governo constitucional parece ter optado por tal modalidade em virtude de, no seu entendimento, existir um défice global de liderança nas escolas, já que o diploma evidenciava a necessidade de se apostar no reforço e na qualificação das lideranças (boas, fortes e eficazes):

“procura-se reforçar as lideranças das escolas, o que constitui reconhecidamente uma das mais necessárias medidas de reorganização do regime de administração escolar. Sob o regime até agora em vigor emergiram boas lideranças e até lideranças fortes e existem alguns casos assinaláveis de dinamismo e continuidade. Contudo, esse enquadramento legal em nada favorecia a emergência e muito menos a disseminação desses casos. Impunha-se, por isso, criar condições para que se afirmem boas lideranças e lideranças eficazes, para que em cada escola exista um rosto, um primeiro responsável, dotado da autoridade necessária para desenvolver o projeto educativo da escola e executar localmente as medidas de política educativa. A esse primeiro responsável poderão assim ser assacadas as responsabilidades pela prestação do serviço público de educação e pela gestão dos recursos públicos postos à sua disposição. Este objectivo concretiza-se no presente decreto-lei pela criação do cargo de diretor, coadjuvado por um subdiretor e um pequeno número de adjuntos”. (preâmbulo)

Esta tónica na liderança e as alterações daí decorrentes podem ser inscritas “no quadro de uma ideologia de feição tecnocrática e gerencialista, ficando por demonstrar (...) por que razão haveria uma ‘liderança forte’ de coincidir com uma ‘boa liderança’ (...) garanti[da] (...) sobretudo por via jurídico-formal”, (Lima, L., 2008: 2), principalmente quando “das 100 escolas e agrupamentos avaliados em 2006/2007, 92% tiveram uma apreciação de Muito Bom e Bom no domínio da ‘organização e gestão escolar’ e 83% idêntica apreciação no domínio da ‘liderança’” (Barroso, 2008: 4) e das 273 escolas avaliadas em 2007/2008 os valores nestes domínios se mantiveram praticamente constantes (ver gráfico

n.º 1), ou seja, 89% das escolas e agrupamentos com uma apreciação de Muito Bom e Bom no domínio “organização e gestão escolar” e 84% no domínio “Liderança”.

No entanto, se a esses dois domínios acrescentarmos um outro que, dada a sua caraterística prospetiva e pró-ativa, está na nossa opinião diretamente relacionado com a atividade do diretor de escola, ou seja, a “Capacidade de autorregulação e melhoria da escola”, estes valores reduzem-se substancialmente, descendo o conjunto obtido pelo somatório dos níveis Muito Bom e Bom para valores de 59% em 2006/2007 (11% de Muito Bom e 48% de Bom) e de 43% em 2007/2008 (6% de Muito Bom e 37% de Bom).

Gráfico n.º 1 – Domínios de avaliação da gestão escolar, em percentagem (fonte: IGE19).

De facto, como podemos verificar pela análise do gráfico, é unicamente no domínio “Capacidade de autorregulação e melhoria da escola” que a mancha amarela correspondente ao nível suficiente sobressai, relativamente às dos níveis Bom e Muito Bom. De facto, fazendo a média dos resultados obtidos nos 5 anos letivos, o nível Suficiente obtém 47% (contra os 43% do nível Bom e os 6% do nível Muito Bom), curiosamente a

19 In: IGE (2012). Avaliação Externa das Escolas: avaliar para a melhoria e a confiança – 2006-2011. Inspeção-Geral da Educação, disponível em http://www.ige.min-edu.pt/upload%5CRelatorios/AEE_2006_2011_ RELATORIO.pdf , p. 25 (outubro de 2012).

mesma percentagem obtida nos anos de 2009/2010 e 2010/2011. Para além disso, reparamos que só neste domínio a soma dos níveis Bom e Muito Bom não atinge os 50%.

A análise dos resultados obtidos em cada um dos fatores que compõem este domínio e a interpretação que deles era feita davam também um conjunto de indicações interessantes de reter.

“A comparação da distribuição das avaliações do domínio com as apreciações formuladas ao nível dos fatores respetivos permite constatar que:

o fator Autoavaliação apresenta-se como o único em que mais de 50% das escolas

obtiveram uma classificação de Suficiente (51%) e em que a classificação de Insuficiente abrangeu um quantitativo considerável de escolas (6,8%).

O fator Sustentabilidade do progresso denota, relativamente ao domínio, um valor muito

semelhante de escolas com classificação de Suficiente (47,9%) e uma percentagem idêntica de escolas com nível de Muito Bom (5,4%). Este fator, de entre todos os fatores analisados, apresenta o valor mais significativo de classificações de Insuficiente, tendo sido atribuído este nível a 7,6% das escolas avaliadas.” (IGE, ver nota de rodapé 19)

Assim, a tónica colocada na liderança pelo DL 75/2008, e a necessidade sentida no seu reforço, fazendo emergir boas lideranças e lideranças fortes, estaria relacionada, não tanto com o aprofundar de uma lógica gerencialista, mas sim com a necessidade de melhorar a capacidade de autorregulação e de melhoria da escola?

O conteúdo do diploma legal não dá uma resposta direta a este questionamento. No entanto o seu articulado esclarecia que os poderes do diretor eram bastante reforçados, ao lhe ser:

“confiada a gestão administrativa, financeira e pedagógica, assumindo, para o efeito, a presidência do conselho pedagógico. (...) No sentido de reforçar a liderança da escola e de conferir maior eficácia, mas também mais responsabilidade ao diretor, é-lhe conferido o poder de designar os responsáveis pelos departamentos curriculares, principais estruturas de coordenação e supervisão pedagógica.” (id.)

Deste modo, o diretor passava a ter

“efetiva capacidade de decisão, com os recursos adequados e com a necessária autoridade institucional e autonomia de gestão para liderar com firmeza e eficácia o desenvolvimento de um projeto educativo consistente para o estabelecimento que dirige.” (Afonso, 2008: 1)

Comparando o DL 75/2008 com o DL 172/91, são retomadas expressões como “eficácia” e “responsabilidade”, consideradas como fundamentais no perfil de um diretor, e que, no entender da administração central estariam, pelos vistos, em situação de défice. De referir, ainda, que o termo liderança era usado pela primeira vez nos decretos-lei que regulamentaram a gestão escolar desde 1974, o que tem um importante significado político. O aparecimento do termo, e a ênfase que lhe é dada (referido 7 vezes no preâmbulo), traduzia a ideia de que a escola necessitava de um claro líder operacional, o dito rosto que pudesse ser o responsável pela implementação das políticas públicas de educação, mas também pela eficácia da organização que estava encarregue de dirigir e, consequentemente, pela sua melhoria.

O diretor aumentava substancialmente o seu poder, nomeadamente através da possibilidade de escolher a equipa de gestão com pessoas da sua exclusiva confiança, pertencentes ao corpo profissional da escola, mas também pelo facto de passar a nomear as lideranças intermédias e de presidir ao Conselho Pedagógico (CP), cargos que até aí resultavam de uma eleição pelos pares. Esta mudança na direção do CP, mostrava que o Estado considerava a componente pedagógica como determinante na ação do diretor mobilizando, dessa forma, a ideia de “Administrador como Educador” (Codd, 1989).

Todas estas alterações faziam com que a prestação de contas (globais e específicas) pudesse ser facilmente objetivada numa única pessoa, a quem se considerava terem sido dadas todas as condições estruturais para desenvolver “o seu projeto”, aprovado pelo Conselho Geral (órgão de direção da escola) no momento da eleição do diretor.

A legislação passava também a atribuir ao Conselho Geral um papel fundamental no definir da vida pedagógica da escola e na sua supervisão direta, um aspeto bastante importante, já que a prestação de contas seria efetuada, em primeiro lugar, ao órgão de direção da escola. Para além disso, a supervisão podia, ainda, ser realizada através de “novos processos de accountability e de avaliação externa, ou seja, segundo algumas das mais relevantes dimensões propostas pela ‘Nova Gestão Pública’ 20 e pelas ideologias

gerencialistas de tipo empresarial” (Lima, L., 2013: 66).

Além disso, não só os professores perdiam os habituais 50% de representação no órgão de direção estratégica da escola, uma realidade presente desde o DL 735-A/74, como o conjunto dos trabalhadores da escola passavam também a representar menos de

20 As linhas estratégicas orientadoras da Nova Gestão Pública têm como objetivos fundamentais para a Administração Pública (AP): otimizar o desempenho, melhorar a eficácia, evitar a corrupção, orientar a AP para as necessidades dos cidadãos, abrir a AP à sociedade, aumentar a transparência, definir e identificar competências e responsabilidades e evitar o desperdício. (Warrington, 1997, citação de Lima)

50%, o que significava que os professores perdiam um peso considerável e o conjunto dos membros ligados à comunidade assumia, potencialmente, uma importância determinante na condução dos destinos da organização educativa. Tal pode indiciar, eventualmente, a emergência de modos de regulação pós-burocrática.

Concluindo, a passagem da colegialidade à unipessoalidade da gestão escolar resulta de um processo evolutivo, que ocorreu de forma lenta mas constante, apesar dos avanços e recuos que o caraterizam, que foi desde a colegialidade ligada à chamada “gestão democrática” até à individualização do cargo de gestor escolar. A primeira conceção era fortemente marcada pelo poder dos professores e valorizava a ideia de diretor como “um colega” que integrava um órgão colegial e exercia transitoriamente uma função na gestão escolar. A conceção atual promove a individualização do cargo de gestor escolar, identificando-o com aquilo que pode ser visto como uma aproximação à profissionalização da gestão e que se expressa, não só pela tónica colocada na liderança e na unipessoalidade, como também através do modo como o acesso ao cargo se realiza, como veremos a seguir.

Esta passagem da colegialidade à unipessoalidade foi acompanhada de uma tendência para o aumento do controlo social da gestão escolar através do incremento da participação dos pais e de outros elementos da sociedade local, com a consequente diminuição do “poder” formal dos professores no órgão de direção da escola, bem como do reforço e alargamento das competências do diretor, o qual passava, potencialmente, a ser visto como uma espécie de “figura ‘redentora’ (...) instrumento de mudança da escola e garante da sua qualidade” num “paralelismo entre ‘o diretor desejado’ e a figura mítica do unicórnio21” (Barroso, 2011a: 11).