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Capítulo 1: A regulação das políticas públicas e a gestão escolar

2. NOVOS MODOS DE REGULAÇÃO E A EVOLUÇÃO DA GESTÃO ESCOLAR

2.4 Composição e poder do órgão de representação da comunidade educativa

Para compreendermos o conteúdo deste ponto, é necessário ter presente que o órgão de representação da comunidade educativa é aquele que exerce a direção estratégica da escola, o que o torna num espaço determinante para a promoção e desenvolvimento de um novo modo de regulação na ação educativa da escola. Por isso, analisemos com um pouco mais de pormenor a génese desse órgão.

Doze anos e meio depois de abril de 1974, com a aprovação em outubro de 1986 da Lei n.º 46/86 – Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), verifica-se que é atribuído um papel importante a um conjunto de intervenientes que, até então, tinham pouco ou nenhum peso. De facto, a LBSE afirmava que um dos seus princípios educativos era

“contribuir para desenvolver o espírito e a prática democráticas, através da adoção de estruturas e processos participativos na definição da política educativa, na administração e gestão do sistema escolar e na experiência quotidiana, em que se integram todos os intervenientes no processo educativo, em especial os alunos, os docentes e as famílias”. (art. 3.º, alínea l)

Dando corpo àquele articulado, a LBSE dedicava o seu artigo 45.º à “Administração e gestão dos estabelecimentos públicos de educação e ensino”. Aí era dado o primeiro passo na construção de uma nova realidade para a gestão escolar, surgindo, pela primeira vez num enquadramento legislativo, três termos associados a dois conceitos: administração/direção e gestão. Esta divisão pressupunha a existência de dois domínios

distintos de ação: “direção (formulação ou adoção de políticas ou estratégias) e gestão (sua implementação)”. (Formosinho, 2005a: 119)

No entanto, o número 4 desse artigo, referia que:

“A direção de cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos dos ensinos básico e secundário é assegurada por órgãos próprios, para os quais são democraticamente eleitos os representantes dos professores, alunos e pessoal não docente e apoiada por órgãos consultivos e serviços especializados, num e noutro caso, segundo modalidades a regulamentar para cada nível de ensino.”

Apesar desse conteúdo trazer novidades relativamente à anterior situação, legalizando a intervenção de “corpos” que até então não eram contemplados, uma nebulosa pairava sobre ele, ou seja, não se entendia se

“o objetivo e[ra] esclarecer o modo de designar os representantes dos professores, alunos e pessoal não docente (‘democraticamente eleitos’), ou se pretend[ia] restringir a representação na direção a esses três corpos sociais, excluindo, portanto, os pais dessa estrutura de governo das escolas” (Sá, 2004: 78)

e remetendo-os para um papel exclusivamente consultivo, o que ocorreria também com os outros corpos da comunidade. A dúvida era justificada, considerando que o art. 3.º, alínea l) da LBSE afirmava, sem margem para dúvidas, que um dos “princípios organizativos” do sistema educativo era promover a

“adoção de estruturas e processos participativos na definição da política educativa, na administração e gestão do sistema escolar e na experiência pedagógica quotidiana, em que se integram todos os intervenientes no processo educativo, em especial os alunos, os docentes e as famílias.”

O grupo de trabalho28 da CRSE encarregue das propostas de reorganização da

administração e gestão das escolas (1988) considerava mesmo “a participação de todos os interessados na administração da educação escolar” como o segundo grande princípio que a LBSE continha, ao nível da administração das escolas básicas e secundárias.

28 Composto por três docentes da Universidade do Minho: João Formosinho, António Sousa Fernandes e Licínio Lima.

Neste âmbito, essa equipa dava à “participação dos pais (...) uma centralidade nunca antes consagrada”, (Sá, 2004: 79), propondo algo, relacionado com a relação entre a participação dos professores e dos outros corpos, que na altura se traduziria numa completa inversão paradigmática da relação de poderes na escola portuguesa, como explicava um dos membros desse grupo de trabalho num dos seminários promovidos nessa altura pela Comissão de Reforma:

“A participação dos professores no Conselho de Direção, sendo indispensável, não deve contudo ser de forma a sufocar a participação de outros representantes, e por isso se defende que os professores não devem possuir maioria absoluta neste órgão, quedando-se por uma participação de cerca de 20% ou 30%” (Lima, L., 1998b: 166)

Lima acrescentava, ainda, que “a descentralização do sistema educativo não poderá significar uma mera transferência de poderes da administração central para os professores, o que seria política e socialmente inaceitável.” (id.: 167), até porque

“a escola é demasiadamente importante para que possa constituir um mundo fechado a influências sociais e culturais do meio envolvente e a uma colaboração enriquecedora e diversificada que, em boa parte, pode vir a contribuir para a resolução de muitos dos seus problemas, que de outra forma terão de aguardar por soluções de tipo nacional, uniforme e burocrático.” (id.)

O grupo de trabalho da CRSE reforçava, objetivamente, a importância que a criação de um órgão de direção da escola (denominou-o Conselho de Direção) tinha num novo modelo de gestão, considerando que “a distinção entre direção e gestão” era o primeiro dos “grandes princípios da administração das escolas básicas e secundárias que a LBSE explicitamente consagra[va]” (Formosinho, Fernandes e Lima, 1988: 147), ao “distingu[ir] claramente administração de gestão” e esclarecendo, de imediato, o seu significado:

“Já na linha tradicional da escola clássica, desde os primórdios da ciência administrativa no início deste século [(XX)], aquela distinção surge clara, e é desde então consensual sob o ponto de vista teórico. Henry Fayol havia proposto uma definição operacional de administração que conheceria novos desenvolvimentos através dos seus discípulos Gulik e Urwick que em 1937 consagravam a conhecida sigla POSDCORB – Planning, Organising, Directing, Co-ordinating, Reporting, Budgeting (Planear, Organizar, Prover Pessoal, Dirigir, Coordenar, Informar e Orçamentar). Assim ficaria claro que as funções de direção e de gestão, entendida esta como a conjugação de funções de organização, recrutamento de pessoal, coordenação, informação, etc., são efetivamente distintas e representam diferentes funções administrativas abrangidas pelo conceito mais amplo de administração.

Neste quadro, a direção ocupa-se principalmente da definição de políticas, de valores e de orientações gerais, ao passo que a gestão é predominantemente a execução daquelas políticas e orientações, a organização dos elementos humanos e materiais, a coordenação e a avaliação, por forma a realizar os objetivos fixados pela direção.” (id.: 155)

Assim sendo, assumia-se “que a direção constituía o órgão político por excelência, por contraposição ao órgão de gestão predominantemente técnico” (Sá, 2004: 80). Em consonância com esta separação, o Conselho de Direção era entendido como “o órgão de decisão mais importante das escolas, no qual se situa[va] o poder de, em concordância com as políticas definidas a nível nacional e regional, decidir sobre todas as questões relevantes a nível pedagógico e administrativo.” (Formosinho, Fernandes e Lima, 1988: 158).

Três anos após a LBSE e um ano depois dos trabalhos da CRSE, é publicado o DL 43/89 que apresentou o “Regime Jurídico de Autonomia das Escolas”, o qual, curiosa e estranhamente, mantinha “integralmente a arquitetura político-organizacional instituída em 1976” (Lima, L., 2011: 68). Só em 1991, como referido anteriormente com a publicação do DL 172/91, o órgão de direção foi contemplado (experimentalmente, é importante não o esquecer) através de duas configurações: o Conselho de Escola (estabelecimentos com ensino secundário) ou o Conselho de Área Escolar (estabelecimentos sem ensino secundário).

No contexto da análise sobre a aplicação do DL 172/91, Barroso (1995c: 44-47) põe em causa a distinção entre “administração” e “gestão” referindo que esta separação continua ligada aos princípios da escola clássica e a Fayol, segundo os quais “a administração situava-se entre «a cabeça e os membros do corpo social», pelo que teria de haver alguém que assegurasse o funcionamento da administração e das restantes funções da empresa – o chefe, ou o diretor”. No entanto, Barroso chama a atenção para que a separação entre dirigir e administrar trazia uma “confusão semântica [que] subsiste no domínio da educação” relacionada, por um lado, com o facto de que “«administrar» e «gerir» tornam-se muitas vezes sinónimos, quer na linguagem dos não especialistas, quer mesmo dos especialistas” e, por outro, citando Minot (1968: 71)29, que tal divisão mantém um

princípio que está associado ao neo-taylorismo, insistindo no “caráter ‘técnico’ da gestão e a sua separação da ‘decisão política’” e mantendo uma perspetiva gestionária que constrói um discurso de “hipervalorização de uma ‘racionalidade técnica’ da gestão (garante da qualidade, eficácia e eficiência da organização)”, de cunho positivista.

29 Minot, Jacques (1968). Hommes et administrations – aspects du phénomène administratif. Paris: Gauthier- Villars

Por isso, Barroso (id.:49) entende que a separação entre o diretor e o órgão de gestão, proposta pela CRSE, nos transporta para uma imagem do gestor escolar como um “profissional” detentor da “racionalidade técnica da gestão”, o que implica que, “mesmo à rebeldia dos seus autores mais bem intencionados, a defesa da separação entre ‘direção’ e ‘gestão’ tenha vindo a ser utilizada para introduzir a exigência de ‘maior profissionalismo’ do gestor, no quadro da reforma da gestão escolar.”

Quer estes motivos de tipo gerencialista estivessem ou não presentes na “separação de poderes” avançada pelo legislador e, como tal, no papel que o gestor escolar deveria desempenhar (executar), o órgão de direção (estratégica, de decisão política) tinha uma composição abrangente. Nele estavam representados professores, alunos (só do ensino secundário), encarregados de educação, membros da autarquia e dos chamados interesses culturais e socioeconómicos, com uma correlação de forças que demonstrava o poder dos professores. De facto, o corpo docente detinha 50% do total de elementos do órgão e o conjunto formado pelos trabalhadores da escola (pessoal docente e pessoal não docente) era superior a metade do número total de elementos da então apelidada “comunidade”, remetendo estes para uma representação minoritária. Entre os membros dessa “comunidade”, no “regime experimental de 1991 os pais continuam em franca minoria (cerca de metade dos professores)” (Barroso, 2011: 32), ou seja, mais ou menos 25% do órgão, contra os 50% que os docentes detinham então.

Só em 1988, com a publicação do DL 115-A/98, a existência de um órgão de direção passa a ser uma realidade a nível nacional, que se mantém presente até à atualidade, como já referido anteriormente. A Assembleia incluía os mesmos representantes previstos no DL 172/91, podendo ainda ser integrada, opcionalmente, por “representantes das atividades de carácter cultural, artístico, científico, ambiental e económico da respectiva área, com relevo para o projeto educativo da escola.” (art. 8.º, n.º 3). A definição do número total de elementos do órgão era transferido para a escola, apesar dele não poder exceder os 20 elementos e respeitando algumas condicionantes (art. 9.º):

”2 – O número total de representantes do corpo docente não poderá ser superior a 50% da totalidade dos membros da assembleia, devendo, nas escolas em que funcione a educação pré- escolar ou o 1.º ciclo, conjuntamente com outros ciclos do ensino básico, integrar representantes dos educadores de infância e dos professores do 1.º ciclo.

3 – A representação dos pais e encarregados de educação, bem como a do pessoal não docente, não deve em qualquer destes casos ser inferior a 10% da totalidade dos membros da assembleia. 4 – A participação dos alunos circunscreve-se ao ensino secundário, sem prejuízo da possibilidade de participação dos trabalhadores-estudantes que frequentam o ensino básico recorrente.”

Como tal, o princípio anterior de correlação de forças entre o corpo docente e o conjunto dos demais corpos representados era mantido (potencialmente), ocorrendo o mesmo com o conjunto do pessoal docente e do pessoal não docente, ou seja, os “trabalhadores da escola” possuíam um poder maior do que o conjunto formado pelos outros elementos da dita comunidade educativa. Apesar de nada impedir que a representação dos professores fosse inferior a 50 % e a dos pais superior a 10%, a realidade mostrou que “a tendência maioritária que se verificou foi atribuir aos professores a percentagem máxima prevista.” (Barroso, 2011: 32), tendo os pais e encarregados de educação reduzido substancialmente o seu peso no órgão de direção.

A 22 de abril de 2008, 10 anos e 4 governos após o DL 115-A/98, o novo “regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário” (art. 1.º), o DL 75/2008, aplicado pelo XVII governo constitucional, reformulava pela primeira vez na história da educação portuguesa a correlação representativa dos corpos pertencentes ao órgão de direção da escola (Conselho Geral), assumindo como objetivo da sua composição “reforçar a participação das famílias e comunidades na direção estratégica dos estabelecimentos de ensino” (preâmbulo).

Nesse preâmbulo esclarecia-se que tal objetivo se concretizava:

“através da instituição de um órgão de direção estratégica em que têm representação o pessoal docente e não docente, os pais e encarregados de educação (e também os alunos, no caso dos adultos e do ensino secundário), as autarquias e a comunidade local, nomeadamente representantes de instituições, organizações e atividades económicas, sociais, culturais e científicas. A este órgão colegial de direção confia-se (...) a capacidade de eleger e destituir o diretor, que por conseguinte lhe tem de prestar contas.

Para garantir condições de participação a todos os interessados, nenhum dos corpos ou grupos representados tem, por si mesmo, a maioria dos lugares.”

Por outro lado, apesar de o número total de elementos do órgão ser decisão de cada escola, referia-se que ele tinha de corresponder a “um número ímpar não superior a 21.” (art. 12.º, n.º 1), um importante “pormenor” que pela primeira vez era definido. De imediato, constatava-se que a correlação de forças se modificava, passando os representantes do pessoal docente a ser em número inferior a 50%. Mas o diploma legal ia mais longe e objetivava que a expressão de “corpos ou grupos representados” abrangia exclusivamente o conjunto formado pelos docentes e não docentes (os “trabalhadores da escola”), sendo que o número destes, “no seu conjunto, não pode ser superior a 50 % da totalidade dos membros do conselho geral.” (art. 12.º, n.º 3). Desta forma, não só os professores passavam

a ter um peso mais reduzido no órgão de direção como o grupo que podemos identificar como “a comunidade local” assumia, pela primeira vez, uma representação maioritária.

Como refere Natércio Afonso (2009: 22), os objetivos explícitos do DL 75/2008 passavam, para além do reforço da autonomia e da liderança do diretor, pelo aumento da participação das famílias e das comunidades na gestão estratégica das escolas (o Conselho Geral). Esta inovação introduzida na composição do órgão de direção da escola, modificando substancialmente a correlação de forças até então existente, tornava evidente que o Estado, ao exercer a sua tradicional função reguladora, sentia-se “obrigado a partilhar esse papel com a intervenção crescente de outras entidades e atores, que se reportam a referenciais, lugares e processos de decisão distintos” (Barroso, 2006c: 11) daqueles que até então eram privilegiados, conferindo novos protagonismos através do maior peso que dava a esses elementos, em detrimento dos ditos “trabalhadores da escola”, em especial do corpo docente.

Se pensarmos ainda que, no quadro da transferência de competências para os municípios em matéria de educação, a dependência orgânica e hierárquica dos assistentes operacionais das escolas passou para as autarquias (DL 144/2008), sendo a sua ligação com a escola meramente funcional (por delegação de competências), a expressão “trabalhadores da escola” passa a ter um significado ainda mais reduzido. É desta forma que a redução do peso do corpo docente e do conjunto “trabalhadores da escola” deve ser visto.

Assim,

“o ‘novo paradigma’ da gestão escolar rompe com a ‘tradição’ herdada da Revolução de 1974, baseada no reforço do poder dos professores, no primado do ‘pedagógico sobre o administrativo’ e na ‘gestão democrática’ (entendida como a gestão exercida por órgãos colegiais eleitos).”

(Barroso, 2009: 992),

enquadrando-se tal modificação

“numa mudança paradigmática mais vasta relacionada com a territorialização das políticas educativas, com a redistribuição de poderes entre o ’centro’ e a ‘periferia’, com a recomposição do papel do Estado na regulação de educação e com novas formas de ‘governança’.” (id.: 993)

A escola passava a ser ”vista como o espaço privilegiado da coordenação e regulação do sistema de ensino e como lugar estratégico para introduzir a sua mudança (school-based management)” (id.: 992), por um lado através do aumento do controlo social da gestão escolar (incremento da participação dos pais e encarregados de educação e de

outros elementos da sociedade local), mas também pela complexificação que lhe era atribuída enquanto organização.

Estas novas realidades passavam a exigir do diretor o desenvolvimento de uma nova postura “negocial” no seio do órgão de direção, mas também promocional da intervenção da comunidade em que a escola se insere, algo que seria determinante para o desenvolvimento de um novo modo de regulação que contrariasse os princípios presentes no modelo burocrático-profissional e tornasse a escola como uma unidade de gestão (educativa) com um papel determinante no desenvolvimento da região em que se insere.