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Capítulo 1: A regulação das políticas públicas e a gestão escolar

2. NOVOS MODOS DE REGULAÇÃO E A EVOLUÇÃO DA GESTÃO ESCOLAR

2.5 A escola como unidade orgânica de gestão intermédia

2.5.3 A autonomia da escola

O discurso em torno da autonomia da escola parecia ser mais retórico do que tendo aplicação real, apesar desse ter sido um processo iniciado em 1980 com a LBSE e aprofundado com os trabalhos da CRSE, já que é aí (Projeto Global de Atividades) que a palavra autonomia é aplicada para o ensino não superior, no ponto relacionado, exatamente, com a modernização da gestão do sistema: “Estudo das condições que justifiquem a atribuição de maior autonomia aos estabelecimentos de ensino não superior” (CRSE, 1986: 44). Os documentos apresentados por esse grupo de trabalho colocaram uma tónica muito forte exatamente na sua promoção, defendendo “uma ampla autonomia das escolas, dos pontos de vista administrativo e financeiro e da organização e funcionamento pedagógico” (CRSE, 1986: 49), tendo em consideração que “a dinâmica da reforma” ia estar centrada na “organização e funcionamento da escola” (id: 48).

33Apesar de já estar fora do período temporal corresponde à presente investigação, é importante referir que o XIX governo constitucional avançou com a extinção das DRE’s (DL 125/2011, alterado pelo DL 266-G/2012), tendo passado estas estruturas a designar-se como Direções de Serviços das regiões respetivas (idênticas às das antigas DRE’s) e cujas atribuições passaram a integrar a Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares.

Em 1989, durante a vigência do XI governo constitucional (o primeiro governo liderado por Cavaco Silva, tendo Roberto Carneiro como ministro da educação), é aprovado o DL 43/89, que “estabelece o regime jurídico da autonomia da escola que aplica-se às escolas oficiais dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e secundário” (art. 1.º). Analisando o preâmbulo desse decreto-lei verificamos que ele apresenta um conjunto de princípios de ação que é importante destacar:

• Esclarecia-se, logo no primeiro parágrafo, que “a reforma educativa não se pode realizar sem a reorganização da administração educacional, visando inverter a tradição de uma gestão demasiado centralizada e transferindo poderes de decisão para os planos regional e local”, para três parágrafos mais adiante se afirmar que, nesse âmbito, “inclui-se, como fator preponderante, o reforço da autonomia da escola, a qual decorre da Lei de Bases do Sistema Educativo, do Programa do Governo34 e das propostas e anseios dos próprios estabelecimentos de ensino.”

• A autonomia concretizava-se:

“na elaboração de um projeto educativo próprio, constituído e executado de forma participada, dentro de responsabilização dos vários intervenientes na vida escolar e de adequação a caraterísticas e recursos da escola e às solicitações e apoios da comunidade em que se insere” (preâmbulo).

• A autonomia exercia-se

“através de competências próprias em vários domínios, como a gestão de currículos e programas e atividades de complemento curricular, na orientação e acompanhamento de alunos, na gestão de tempos e espaços de atividades educativas, na gestão e formação do pessoal docente e não docente, na gestão de apoios educativos, de instalações e equipamentos e, bem assim, na gestão administrativa e financeira.” (id.)

O documento esclarecia, por outro lado, que a autonomia exigia “condições, recursos e apoios de vária ordem”, bem como a inerente “transferência de competências e poderes

34No capítulo IV: “Preparar o futuro. Apostar nos portugueses”, a Educação era enquadrada como tendo sido alvo de “intensa transformação e aceleração histórica” nos últimos vinte anos, prevendo-se para “os próximos

vinte anos, horizonte necessário de enquadramento da reforma educativa” um período marcado pela “mudança a um ritmo ainda mais vertiginoso” (p. 64). Na interpretação desse governo, a realidade educativa do país “revela[va] uma nítida atrofia quando comparada com os países congéneres da Europa Ocidental (...) depara[va]-se com estrangulamentos (...) [e] problemas estruturais acumulados (...) [que] conduziram a esse atraso estratégico”. Tal situação exigia “caminhar para uma situação mais sólida, mais completa e mais produtiva”, elegendo-se “como elevada prioridade (...) a renovação do sistema educativo e o arranque para uma profunda reforma do setor (...), como resulta dos princípios que informam a Lei de Bases do Sistema Educativo e orientarão a sua subsequente regulamentação.” (id.)

para a escola” e que esse processo se faria de forma “progressiva” de modo a não haver “risco de ruturas” (id.). Considerando todo o seu conteúdo, tratava-se de um diploma legal bastante inovador para a época, passando cada escola a poder:

• Ensaiar (tímidas) formas de gestão flexível do currículo;

• definir algumas políticas de alocação de professores e gestão dos tempos letivos e de ocupação de espaços;

• organizar e oferecer atividades de complemento curricular, de animação socioeducativa, de ocupação dos tempos livres ou do desporto escolar:

• gerir o crédito horário disponível para o exercício de cargos de gestão intermédia e de desenvolvimento de projetos pedagógicos;

• proceder ao recrutamento de pessoal auxiliar de ação educativa em regime de contrato ou de tarefa a tempo certo.

Essa legislação enquadrava a autonomia da escola no âmbito do “impulso de modernização da educação portuguesa”, escolhido como um dos “vetores fundamentais” do governo (Programa do XI Governo Constitucional, 1989: 66):

“A reforma da administração educacional, com ênfase claro no reforço da autonomia da escola, como local privilegiado onde se efetiva o processo educativo, nomeadamente no desenvolvimento de projetos pedagógicos próprios e na promoção de uma ampla descentralização e desconcentração de funções e de poderes (...), aumentando, por essa via, os índices de eficiência e de eficácia dos meios colocados à disposição do sector educativo; assim será enriquecido o papel da escola (...) em ordem à rápida superação do modelo funcionalizado e tecno-burocrático da educação em Portugal”. (id.: 67)

Apesar de todo esse enquadramento, claramente inovador e ambicioso, mas que “se ‘esquecia’ de abranger na ‘autonomia consagrada’ o 1.º ciclo do ensino básico e a educação pré-escolar” (Formosinho e Machado, 2005: 115), nos anos seguintes nada de muito significativo, de expressão de uma verdadeira autonomia, se modificou nas escolas, mantendo-se o paradigma centralista da administração educativa.

O discurso oficial, referido por M. Conceição Lopes (1999: 212), segundo o qual “os estabelecimentos de ensino não podem ser meros terminais do Ministério”, devendo o “Estado ser potenciador de autonomia de pessoas e instituições públicas e privadas da sociedade e não um árbitro” e de que o desenvolvimento da autonomia das escolas “não

pode ser usado como meio para a sua própria anulação, por falta de condições ou meios para a pôr em prática”, não tinha repercussão real.

“Face à forte centralização das estruturas administrativas e modelo de gestão de reduzida autonomia e frágil representatividade, [era] imprescindível um novo modelo que ‘dimu[ísse] a dependência em relação ao Ministério’ [e] contribu[ísse] ‘para a edificação de uma escola de sucesso em Portugal’”. (id.: 216)

Por detrás dessa ausência estava, possivelmente, também uma determinada forma de entender a autonomia, como referia o Conselho de Acompanhamento e Avaliação do DL 172/91:

“Não parece possível consagrar e regulamentar a autonomia das escolas (...) através, exatamente dos mesmos processos, regras e linguagens que sempre serviram, no passado, objetivos políticos antagónicos; ou seja, definir primeiro todas as regras, sem exceção, e esperar depois por um exercício de autonomia, quando este envolve, desde logo, a possibilidade de intervenção na própria produção de regras.” (Conselho de Acompanhamento e Avaliação – CAA, 1997: 18)

A escola necessitava, não de uma “autonomia decretada”, mas sim, e pelo contrário, de uma “autonomia construída”, entendida como “o jogo de dependências e de interdependências que [a escola] estabelece entre si e com o meio envolvente e que permitem estruturar a sua ação organizada em função de objetivos coletivos próprios.” (Barroso, 1996a) Por isso mesmo, a autonomia da escola “não pode ser transferida, outorgada ou devolvida, mas sim reconhecida como a capacidade para a organização e para a responsabilização social” (Formosinho, 2010: 91), pois esse processo já costuma ser desenvolvido, em maior ou menor grau, pelas escolas. Só através do desenvolvimento e aprofundamento da autonomia da escola, a territorialização das políticas educativas poderia avançar, como refere Barroso (1996a) no âmbito do estudo prévio ao lançamento do DL 115-A/98, onde é retomada a celebração de contratos de autonomia com as escolas. Este decreto-lei definia-os como:

“o acordo celebrado entre a escola, o Ministério da Educação, a administração municipal e, eventualmente, outros parceiros interessados, através do qual se definem objetivos e se fixam as condições que viabilizam o desenvolvimento do projeto educativo apresentado pelos órgãos de administração e gestão de uma escola ou agrupamento de escolas.” (art. 48.º. n.º 1)

Apesar de todas as intenções, o primeiro contrato de autonomia só foi estabelecido em fevereiro de 2005 (XVI governo constitucional), com a EB1 da Vila das Aves/S. Tomé de Negrelos (conhecida como Escola da Ponte), “porque reconhecida como sui generis” (Carvalho e Machado, 2011: 6) e, curiosamente, na sequência de uma encomenda de avaliação externa formulada no ano de 2003 pelo Ministério da Educação (David Justino era o ministro – XV governo constitucional) por forma a analisar o projeto educativo alternativo dessa escola em relação ao modelo de desenvolvimento curricular estipulado centralmente. Esse processo de avaliação foi desenvolvido por uma equipa da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, a qual como corolário desse trabalho propôs, nesse mesmo ano, face aos bons resultados patentes no relatório de avaliação, a assinatura de um contrato de autonomia com essa escola (AAVV, 2003: 4735).

Só em 2007 (vigência do XVII governo constitucional) os contratos de autonomia têm um maior impulso, algo que, aliás, constava do programa desse governo: “O Governo estimulará a celebração de contratos de autonomia entre as escolas e a administração educativa” (Programa do XVII governo constitucional, 2005: 44 – original em negrito), manifestando simultaneamente a intenção de desenvolver um programa de avaliação externa das escolas que permitisse premiar aquelas que se destacassem e apoiar as que tivessem piores resultados:

“Ao mesmo tempo lançará um programa nacional de avaliação das escolas básicas e secundárias, que considere as dimensões fundamentais do seu trabalho e não se reduza a uma ordenação sumária e acrítica baseada unicamente em notas de alguns exames, potenciando um modelo que tenha em conta os padrões adoptados no âmbito da União Europeia. A avaliação terá consequências, quer para premiar as boas escolas, quer para torná-las referências para toda a rede, quer para apoiar, nos seus planos de melhoria, as escolas com mais dificuldades. Nestes últimos casos, será promovida a celebração de contratos-programa com escolas, associações de pais, autarquias e organizações da sociedade civil de modo a estabelecer metas e dinâmicas de transformação para as escolas com resultados menos positivos.” (Programa do XVII governo

constitucional, 2005: 44)

Assim sendo, o estabelecimento da contratualização ficava diretamente associado à referida avaliação externa. Na realidade, como referia a Direção-Geral de Educação e Cultura (DGEC):

“a autonomia das escolas assume duas vertentes: por um lado, uma maior liberdade das escolas, decorrente da transferência de responsabilidades; por outro, um controlo a uma escala cada vez

mais nacional, através da monitorização dos resultados e não através de normas nacionais. À imagem do que sucede noutros sectores, as escolas passaram de um sistema de controlo a priori por meio de procedimentos para um sistema de controlo a posteriori através da análise dos seus resultados.” (DGEC, 2007: 43)

De modo a substituir o dito “controlo a priori” pelo novo “controlo a posteriori”, em janeiro de 2006, através de um ofício remetido pelo gabinete da ministra da educação, as escolas foram convidadas a participar num projeto-piloto de avaliação externa que permitiria, a futura celebração de contratos de autonomia (Lopes, 2012: 157).

Até ao fim de 2010 tinham sido celebrados e renovados 168 contratos de autonomia com escolas/agrupamentos36, com um desenvolvimento que o quadro seguinte expressa.

Quadro n.º 1 – Escolas com contratos de autonomia celebrados (fonte: DGAE)

2005 2006 2007 2008 2008 2010

1 0 22 99 23 23

Ao longo de todo este processo de promoção da autonomia da escola, tem-se assistido a uma relação entre o discurso político e a prática que varia entre a “retórica” (sem meios para poder expressar a autonomia), o “controlo remoto” (promovida por decreto, com um espaço de autonomia muito limitado), e a “autonomia de facto” (com a transferência de determinado tipo de meios e o delegar efetivo de poderes e responsabilidades). Neste processo evolutivo, não linear, assume particular relevância a celebração de contratos de autonomia com as escolas, inseridos “no processo de recomposição dos modos de regulação da ação pública, no quadro da emergência do que vem sendo designado como (...) «governo desagregado» (...) [e] «Estado Contratual»” (Lopes, 2001: 87-88).

Na base desta nova perspetiva desenvolvida pelo XVII governo constitucional estava uma outra forma de entender a ação política que parecia querer fomentar a autonomia da escola. No entanto, a iniciativa chocava com a manutenção de uma “doutrina” de tipo gerencialista, ou legal-racional, através da manutenção da lógica própria da desconcentração pois, ao mesmo tempo que parecia pretender promover um Estado mais

36 Além destas, e embora se encontrem fora do período sujeito a investigação, é de assinalar que no ano de 2011 foram assinados 23 contratos, em 2012 se estabeleceram 20 e em 2013 assinaram-se mais 45.

leve que desenvolve uma ação pública baseada no “ajustamento mútuo” e transferindo boa parte das suas competências para um “Estado avaliador” (Lascoumes e Le Galés, 2007), não abdicava do poder das Direções Regionais de Educação.

Mesmo que as estruturas regionais do Ministério da Educação passassem a assumir outro papel, mais de apoio às escolas, o processo de contratualização da autonomia estava intimamente ligado, como já vimos, ao da auto-avaliação, através do qual o Estado-avaliador desenvolvia um “instrumento de regulação baseado no conhecimento”, o que lhe permitia, posteriormente, obter “formas de conhecimento que legitimem e validem a sua atividade”, ao mesmo tempo “que se ‘prendem’ os atores, persuadindo-os, num processo que pode ser designado como de autorregulação” (Afonso e Costa, 2011: 166), mas que, pelo contrário, parece ter como finalidade o cumprimento dos objetivos emanados pelo Estado, resultantes da análise que os seus representantes fazem durante esse processo.

Na realidade, segundo Bouvier (2012: 280-281), refletindo sobre a realidade francesa, o termo “contrato”, no âmbito da “contratualização da educação (...) é uma forma particular de contratualização das políticas públicas” que assume “a forma de um ‘contrato de objetivos’” que “valoriza a negociação e a regulação extensiva”.

O contrato, por outro lado, pode também desenvolver uma dinâmica que coloca “em jogo a resolução dos problemas e a produção de resultados, num contexto de multiplicidade e variedade de atores e espaços, em crescente interdependência, que exige (...) mais ajustamento do que imposição.” Neste contexto, a relação entre o Estado e a escola faz-se pela redução da ação do Estado ao mínimo indispensável, já que ele pode “ser o obstáculo principal à soberania do consumidor” (Pacheco, 2000: 9), isto é, ao ator educativo local, ‘consumidor das políticas’, passando este a ser “o centro de tudo o que é bom” (id., citando Apple, 1999).

Analisando o arranque da política de contratualização da autonomia das escolas (2007) e os passos por que ela foi composta: avaliação externa; apresentação (pelas escolas) da proposta de contrato de autonomia; negociação do contrato e, finalmente, celebração do contrato; identifica-se um processo em que o Estado, apesar de desenvolver um importante papel, assenta a sua ação na “negociação explícita”, cuja

“dinâmica (...) revela a intenção de passar de um modo burocrático da ação pública (...) para um modo (...) ‘pós-burocrático´(Maroy, 2005) que, pela negociação, procura mobilizar para a ação, valorizando os interesses e os contextos dos ‘parceiros’ e, desta forma, construir uma legitimidade de tipo participativo.” (Lopes, 2001: 116)

Na realidade, o desenvolvimento de um processo de autonomia da escola faz com que esta assuma uma dimensão completamente nova dentro do sistema educativo português, deixando de ser vista como um mero “locus de passagem”, aplicador disciplinado (ou indisciplinado) de diretrizes superiormente definidas, mas, pelo contrário, o espaço onde confluem “várias lógicas e interesses (políticos, gestionários, profissionais e pedagógicos) que é preciso gerir, integrar e negociar. A autonomia da escola não é a autonomia dos professores, ou a autonomia dos pais, ou a autonomia dos gestores” (Barroso, 2005a: 109) e, muito menos, “a salvaguarda do tradicional poder da administração central e da sua ordem própria, ou seja, (...) a autonomia do centro [que] remete as escolas para uma condição politicamente e administrativamente periférica e subordinada” (Lima, L., et alt., 2006: 8). Pelo contrário, a autonomia é uma ação coletiva e dinâmica, responsável, própria e específica, de construir um ato educativo inovador e personalizado. Assim sendo, este processo tem um impacto grande no trabalho do diretor da escola, já que é fundamental ter presente que:

“A autonomia é um campo de forças, onde se confrontam e equilibram diferentes detentores de influência (externa e interna) dos quais se destacam: o governo, a administração, os professores, os alunos, os pais e outros membros da sociedade local. A autonomia afirma-se como expressão da unidade social que é a escola e não pré-existe à ação dos indivíduos. Ela é um conceito construído social e politicamente, pela interação dos diferentes atores organizacionais, numa determinada escola. (...)

O que está em causa (...) é (...) reconhecer a autonomia da escola como um valor intrínseco à sua organização e utilizar essa autonomia em benefício das aprendizagens dos alunos.” (Barroso,

2005a:109)

Neste sentido, tornar-se necessário que o próprio Estado promova e desenvolva uma “cultura de autonomia” (Barroso, 1996a: 29) sustentada pelo expressar de uma “pedagogia da autonomia”, (Formosinho e Machado, 2004: 12, referindo-se aos princípios orientadores para o reforço da autonomia propostos por Barroso, 1996a: 29-34), processo esse que, para ser ambicioso e sustentável, necessita de uma ação continuada por parte do Estado e exige do órgão de direção estratégica da escola e do diretor um papel complexo, exigente e difícil, mas absolutamente determinante para o redimensionamento da escola pública.