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A incorporação dos tratados internacionais de proteção dos direitos

4. REGULAÇÃO

4.2. A PROTEÇÃO DO TRABALHADOR MIGRANTE NO TERRITÓRIO

4.2.1. A incorporação dos tratados internacionais de proteção dos direitos

Na esteira da crítica de Philip Alston à necessidade de construção de uma cultura judicial consciente da complexidade dos direitos sociais, bem como

328 Opus cit. p. 195

329 Idem p. 194

330 Idem p. 194

331 DELGADO, Maurício Godinho. Princípios constitucionais do trabalho e princípios de direito individual e coletivo do trabalho. 5ª ed. São Paulo: LTr, 2017, p. 46.

332 Idem, p. 47

333 Idem, p. 47.

de uma doutrina jurídica a respeito da sua natureza de direitos humanos, pondera o professor Antônio Augusto Cançado Trindade:

O ensino ministrado em nossas Faculdades de Direito, centros com raras e honrosas exceções — do conservadorismo jurídico e de instrução (nem sequer educação) para o establishment legal em meio a um positivismo jurídico degenerado, tem sido em grande parte responsável pela perpetuação, de uma geração a outra, de certos dogmas do passado, que o Direito dos direitos Humanos vem agora questionar e desafiar334.

Nesse sentido, para exemplificar os dogmas do passado desafiados pela doutrina dos direitos humanos, Cançado Trindade destaca quatro pontos:

1. Abrandamento da rígida distinção entre Direito Público e Direito Privado, diante das várias causas de violação dos direitos humanos, principalmente nas relações intersubjetivas; 2. Justiciabilidade dos direitos econômicos e sociais, assim como dos direitos civis e políticos, em que se afirma a relação de indivisibilidade entre essas categorias de direitos; 3. Relação de complementaridade entre o direito internacional e o direito interno na proteção da pessoa humana, ante o princípio da norma mais favorável aos direitos humanos; 4. Fenômeno da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos em contraposição à teoria das chamadas “gerações de direitos”, “a qual corresponde a uma visão atomizada ou fragmentada destes últimos no tempo”335.

Consoante o ensinamento de Flávia Piovesan, a Constituição Federal de 1988 “constitui o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos de no Brasil”336, fundado no valor da dignidade humana como princípio fundamental (art. 1º, III, CF) e critério de interpretação e compreensão do ordenamento jurídico brasileiro337. Inaugura, portanto, o movimento de internalização dos direitos humanos, surgido do pós-guerra, construído em direção ao reconhecimento da condição da pessoa humana como sujeito de direitos, por meio da:

334 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Apresentação. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.48

335 Idem, p. 49.

336 PIOVESAN, Flavia. A Constituição brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. EOS Revista Jurídica da Faculdade de Direito, v. 2, nº 1, Curitiba: Dom Bosco, 2008, pp. 20-33, p.

337 Idem, p. 25.

[...] interação e conjugação do Direito Internacional e do Direito interno, que fortalecem a sistemática de proteção dos direitos fundamentais, com uma principiologia e lógica próprias, fundadas no princípio da primazia dos direitos humanos.

A recepção dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos foi disciplinada no Brasil pela Emenda Constitucional nº 45/2004, que acrescentou o § 3º ao art. 5º da Constituição Federal, inserido no Título dos direitos e garantias fundamentais e no Capítulo dos direitos e deveres individuais coletivos. Assim dispõe:

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

A despeito da exigência formal da norma constitucional de observância do quórum qualificado, prevista no art. 60, § 2º, da Constituição Federal para a internalização do tratado internacional de direitos humanos como emenda constitucional, a doutrina pátria admite a sua hierarquia constitucional material com base na interpretação do art. 5º, § 2º, da Carta de 1988338:

Reitere-se que, por força do art. 5º, § 2º, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O quorum qualificado está tão somente a reforçar tal natureza, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a “constitucionalização formal” dos tratados de direitos humanos no âmbito jurídico interno. Como já defendido por este trabalho, na hermenêutica emancipatória dos direitos há que imperar uma lógica material e não formal, orientada por valores, a celebrar o valor fundante da prevalência da dignidade humana. À hierarquia de valores deve corresponder uma hierarquia de normas, e não o oposto. Vale dizer, a preponderância material de um bem jurídico, como é o caso de um direito fundamental, deve condicionar a forma no plano jurídico-normativo, e não ser condicionado por ela.

Nesse sentido, Flávia Piovesan aponta quatro correntes doutrinárias sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos: a) supraconstitucional; b)

338 § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

constitucional; c) infraconstitucional, mas supralegal; d) paridade hierárquica entre tratado e lei federal339.

Anteriormente à vigência da Constituição Federal, no julgamento do RE nº 80.004/SE (Relator Ministro Xavier de Albuquerque, publicado no DJ de 29.12.1977), o Supremo Tribunal Federal adotou a corrente de equiparação jurídica entre o tratado internacional e a lei federal, aplicando o princípio da revogação da lei anterior pela lei posterior340. Posteriormente, no julgamento de habeas corpus relativo à prisão de depositário infiel, examinando a controvertida a aplicação do art. 7.7 do Pacto de São José da Costa Rica, que veda a prisão civil por dívidas, nos autos do HC 72.131/RJ (Relator Ministro Marco Aurélio, publicado no DJ de 01.08.2003), o STF se pronunciou pela corrente do status supralegal dos tratados de direitos humanos. Nesse sentido se revela emblemático o voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes no Tribunal Pleno do STF, no julgamento do RE 466343, de relatoria do Ministro César Peluso:

Se não existem maiores controvérsias sobre a legitimidade constitucional da prisão civil do devedor de alimentos, assim não ocorre em relação à prisão do depositário infiel. As legislações mais avançadas em matérias de direitos humanos proíbem expressamente qualquer tipo de prisão civil decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, excepcionando apenas o caso do alimentante inadimplente. O art. 7º (n.º 7) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos 'Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, dispõe desta forma: 'Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.' Com a adesão do Brasil a essa convenção, assim como ao Pacto Internacional dos legislação infraconstitucional que nele possui fundamento direto ou indireto. (...) Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.

Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (...) deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação

339 Idem, p. 27

340 PIOVESAN, Flávia, Direitos Humanos e o direito. p. 101.

à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (...). Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. (...) Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos 'Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal par aplicação da parte final do art.5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel. (RE 466343, Voto do Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 3.12.2008, DJe de 5.6.2009)341.

Mesmo que esse entendimento alcance resultado na Súmula Vinculante nº 25 do STF – “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito. ” –, Flávia Piovesan insiste na corrente doutrinária, na qual afirma a hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos, bem como a aplicação do princípio da prevalência da norma mais favorável, tendo em vista a natureza especial desses tratados em relação aos demais, pois “objetivam a salvaguarda dos direitos do ser humano, e não das prerrogativas dos Estados”342.

4.2.2. A nova Lei de Migração: Lei nº 13.445 de 24 de maio de 2017

O novo marco jurídico regulatório da migração no Brasil, Lei nº 13.445/2017, originou-se da Portaria nº 2.162/2013 do Ministério da Justiça, que nomeou uma Comissão de Especialistas para apresentar uma proposta de Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná e da UniBrasil); Deisy de Freitas Lima Ventura (Professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo);

João Guilherme Lima Granja Xavier da Silva (Diretor do Departamento de Estrangeiros do Política e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo); Tarciso Dal Maso Jardim (Consultor Legislativo do Senado Federal); Vanessa Oliveira Batista Berner (Professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal

6.815/1980 – Lei do Estrangeiro. Inserida no sistema jurídico brasileiro sob a égide da Constituição de 1967/69, expressava o espírito cultural pautado pelo Regime Militar, então centrado nos interesses do Estado na manutenção da segurança nacional, conforme dispunham seus artigos 1º e 2º:

Art. 1° Em tempo de paz, qualquer estrangeiro poderá, satisfeitas as condições desta Lei, entrar e permanecer no Brasil e dele sair, resguardados os interesses nacionais.

Art. 2º Na aplicação desta Lei atender-se-á precipuamente à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, socioeconômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, inaugura-se no país uma nova ordem jurídica, organizada em torno do Estado Democrático de Direito, fundado nos princípios da constitucionalidade como instrumento de proteção jurídica; organização democrática da sociedade; sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos; justiça social como mecanismo de correção de desigualdades344. Desse modo, nesse novo paradigma jurídico-social, sobressai o antagonismo da Lei do Estrangeiro na regulação das questões migratórias, de forma a privilegiar a segurança nacional em menoscabo dos direitos humanos fundamentais dos sujeitos migrantes, já amplamente assegurado nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

Bem exemplifica a situação disjuntiva da Lei do Estrangeiro no novo marco jurídico-social, a entrevista concedida a Ludmila Andrzejewski Culpi, pelo Professor João Guilherme Granja, um dos especialistas nomeados pelo Ministério da Justiça:

do Rio de Janeiro). Comissão de Especialistas para elaboração de Anteprojeto de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil. Relatório final. Ministério da Justiça.

http://reporterbrasil.org.br/documentos/anteprojeto.pdf

344 STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luiz Bolzan, opus cit. local do Kindle, 1667-1668

Granja (2016, s.p.) argumenta que havia um problema sério no Estatuto do Estrangeiro no Brasil, que é: “[...] um problema jurídico, com consequências práticas imediatas” referente à ausência de “[...]

uma definição de quem é o residente, de quem é o permanente no país. A rigor, a construção é feita para não se estar seguro no país, o que correspondia ao contexto da época” (2016, s.p.). Segundo Granja, “Essa falta de clareza intencional da lei passa pelo design da lei inteira”. A estratégia deste documento, que está refletido na lei é

“[...] a característica inescapável de impelir a subdocumentalização, que ativa a legitimação da violência estatal”, ao privar o imigrante da liberdade, podendo retirá-lo do país. Ademais, não havia acomodação da Lei 6815 com a Constituição. De acordo com Granja “A única acomodação foi o parecer do Ministério da Justiça sobre expulsão”. O contexto político de criação do Estatuto do Estrangeiro referia-se a um problema ocorrido no período da ditadura, quando houve o sequestro de militantes uruguaios, o que representou um inconveniente para a ditatura. Conforme Granja (2016), a Lei do Estrangeiro nasceu disso, reafirmando uma legislação repressiva para que nenhum militar passasse por esse constrangimento345.

Após a realização de reuniões presenciais, audiências públicas com a participação de entidades sociais, e apreciação de contribuições de migrantes e de entidades públicas e sociais, a Comissão de Especialistas elaborou Relatório em que definiu cinco características da proposta: 1. Imperativo de compatibilidade entre o novo marco regulatório e a Constituição Federal e de respeito ao princípio da convencionalidade; 2. Mudança de paradigma da legislação migratória, da vinculação às regras de segurança nacional à perspectiva dos direitos humanos, superando a conotação pejorativa da expressão “estrangeiro”346; 3. Enfrentamento da fragmentação da regulação migratória “com o objetivo de dotar a ordem jurídica pátria de coerência sistêmica”347; 4. Acolhimento de demandas de entidades sociais que atuam em defesa dos direitos dos migrantes348; 5. Preparação do Brasil para ciclo de migrações internacionais decorrente do processo de globalização, pois

345 Opus cit. p. 6

346A Comissão esclarece que a expressão “estrangeiro” possui uma conotação pejorativa na cultura da sociedade brasileira, evocando a ideia de estranho ou impróprio, bem como na cultura jurídica, em que considerado “sujeito de segunda classe, vulnerável à discricionariedade, senão à arbitrariedade do Estado, e privado, sem justificação plausível num regime democrático, de parcela significativa dos direitos atribuídos aos nacionais”. (in Relatório Final, pp. 4-5).

347 Idem p. 6

348 Nesse sentido, o Relatório destaca duas demandas de entidades sociais: criação de um órgão estatal especializado para o atendimento dos migrantes, ainda sob a responsabilidade da Polícia Federal, e, portanto, vinculado a questões de segurança nacional; inclusão social plena dos migrantes à cidadania pela garantia de direitos políticos.

“burocratizar e restringir a regularização migratória não evita o deslocamento, mas degrada as condições de vida do migrante, que passa, com razão, a temer as autoridades”349.

O projeto de lei foi apresentado pelo senador Aloysio Nunes do PSDB (PLS nº 288) e aprovado em julho de 2015. Seguiu para a Câmara dos Deputados (PL nº 2516/2015), a qual propôs alterações (SCD nº 7/2016), retornando para posterior aprovação unânime no Senado Federal.

Na forma como proposto pelo Senado Federal, o PLS nº 288350 abandona o termo “estrangeiro”, para adotar o conceito abrangente de

“migrante”, mais consentâneo com os princípios e normas internacionais de direitos humanos: “pessoa que se desloca de país ou região geográfica ao território de outro país ou região geográfica, incluindo o imigrante, o emigrante, o residente fronteiriço e o apátrida”. Seu art. 3º estabelece expressivos princípios a serem observados pela política migratória brasileira, incluindo a universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; não criminalização da imigração, independente do procedimento pelo qual a pessoa foi admitida no território nacional; igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e seus familiares; inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas; repúdio a práticas de expulsão ou deportação coletivas.

O art. 4º, por sua vez, trata das garantias a serem concedidas ao imigrante em condições de igualdade com os nacionais, notadamente, no inciso XI, o “cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador”. Por outro lado, embora seu

§ 2º assegure ao imigrante, inclusive o exercício de cargo, emprego e função pública, excetuados os reservados a brasileiro nato, o § 5º impõe restrições ao exercício do direito de igualdade pelo imigrante não registrado, limitando-o às liberdades civis, sociais, culturais e econômicas, liberdade de circulação em território nacional, proteção a vítimas e testemunhas de crimes e de violações de direitos, reunião para fins pacíficos, acesso a serviços públicos de saúde e

349 Idem p. 9

350 https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4000745&disposition=inline

de assistência social e à previdência social, educação pública e acesso à informação.

A proposição, portanto, revela-se ainda tímida em relação à concretização do princípio de não discriminação. A matéria afastava do imigrante não registrado o reconhecimento de direitos essenciais à constituição da sua dignidade de pessoa humana, mantendo-o em situação de exclusão de direitos relativos à sua manutenção e liberdade financeiras, especialmente a garantia de cumprimento de obrigações trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador (inciso XI), o direito à abertura de conta bancária (inciso XIV), e o direito de transferir recursos de sua renda e economia pessoais outro país (inciso V). Essa situação, entretanto, foi modificada pelo Substitutivo da Câmara dos Deputados enviado ao Senado Federal, que na sua redação final, excluiu o § 5º do art. 4º351. Outra importante alteração pelo Substitutivo da Câmara Federal envolve a criação do Conselho Nacional de Migração, vinculado ao Ministério do Trabalho, uma das demandas das organizações internacionais que atuam em defesa dos migrantes. Essa proposta, entretanto, foi retirada no Senado Federal, conforme explicitado no Parecer da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, de relatoria do Senador Tasso Jereissati:

Até este ponto, que já se insere no último capítulo (Disposições Finais e Transitórias), a estrutura do SCD nº 7, de 2016, é igual à do texto proveniente do Senado. Contudo, dentre as inovações já nominadas, o art. 117 cria o Conselho Nacional de Migração, que seria vinculado ao Ministério do Trabalho e sucederia o Conselho Nacional de Imigração, previsto no Estatuto do Estrangeiro. Ocorre que este dispositivo inserido na Câmara padece de vício de iniciativa. Trata-se de um projeto de origem do Senado Federal, que não pode criar um órgão dessa natureza, já que encerra conteúdo sobre organização e funcionamento da administração federal e, por via de consequência, invade competência privativa da Presidência da República (art. 84, VI, da Constituição Federal). Nada impede que, ao regulamentar a futura lei, o Poder Executivo defina funções similares a certa autoridade migratória. Assim, deve ser suprimido o artigo referido352.

A nova Lei de Migrações, embora massivamente rejeitada na consulta pública da Câmara Federal, com índice de 82%, foi aprovada pelo Senado

351

352 https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=5215389&disposition=inline

Federal, tendo recibo, porém, diversos vetos do Presidente da República353, a exemplo do inciso I do § 1º do art. 1º, que dispunha sobre o conceito de migrante. Entendeu o Presidente da República que o conceito formulado de forma abrangente ofende o art. 5º, da Constituição Federal, ao incluir o migrante fronteiriço, que não reside no território nacional:

O dispositivo estabelece conceito demasiadamente amplo de migrante, abrangendo inclusive o estrangeiro com residência em país fronteiriço, o que estende a todo e qualquer estrangeiro, qualquer que seja sua condição migratória, a igualdade com os nacionais, violando a Constituição em seu artigo 5o, que estabelece que aquela igualdade é limitada e tem como critério para sua efetividade a residência do estrangeiro no território nacional.

Também foi vetado o art. 118, o qual concedia a anistia aos imigrantes que entraram no país até 6 de julho de 2016, sob o fundamento de que concedida de forma indiscriminada a todos os imigrantes, essa situação esvaziaria “a discricionariedade do Estado para o acolhimento de estrangeiros”, bem como ante a dificuldade de se precisar a data de efetiva entrada dos imigrantes no território nacional, “permitindo que um imigrante que entre durante a vacatio legis possa requerer regularização com base no dispositivo”.

Foi rejeitado ainda pelo Presidente da República os §§ 2º e 3º do art. 4º e alínea “d” do inciso II do art. 30, que garantia ao imigrante o exercício de cargo, emprego e função pública, excetuados os reservados a brasileiro nato, bem como a possibilidade de prestar concurso público. O argumento foi o de que os dispositivos ofendem a Constituição Federal e o interesse nacional, além de tratar de matéria reservada à regulação de provimento de cargo público, de iniciativa privativa do Presidente da República (art. 61, § 1º, II, “c”, da Constituição Federal).

Alicerçada no marco dos direitos humanos, a nova Lei de Migrações investe o migrante trabalhador na sua condição plena de sujeito de direitos trabalhistas, ao reconhecer no inciso XI do art. 4º a “garantia de cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem discriminação em razão da nacionalidade e da

353Mensagem nº 163, de 24 de maio de 2017. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/Msg/VEP-163.htm

condição migratória”. Assegura não apenas um importante espaço de participação na sociedade, ao garantir o direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos (inciso VII), mas “o amplo acesso à justiça e à assistência jurídica integral gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (inciso IX).

Nesse contexto, inaugura-se no sistema jurídico brasileiro um paradigma de relacionamento inclusivo entre o Estado, a sociedade e o sujeito migrante. Não mais fundado no temor do “outro”, que alimenta o sofrimento e a injustiça, mas ancorado na riqueza da diferença, que fomenta o crescimento.

Na clivagem entre o “eu” e o “outro”, entre o “nós” e o “eles” é paulatinamente

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