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2. OS SENTIDOS DA MIGRAÇÃO

2.4. MODERNIDADE E REFLEXIVIDADE NO CONTEXTO DE RISCO DA

A representação simbólico-cultural da imigração desenvolve-se engendrada nas contradições próprias do capitalismo globalizado: lógica contraditória de concentração e fragmentação das cadeias produtivas e clivagem na circulação do capital e do trabalho. Como consequência, distanciam-se as empresas dos seus países de origem, debilita-se a capacidade dos Estados e de suas instituições de compreender e de regular as estruturas sociais, agrava-se a precariedade do trabalho e a desestabilização da economia e amplia-se o fluxo migratório. Rompe-se a ligação característica das sociedades modernas entre produção e território. Trata-se do fenômeno da desterritorialização como mais uma das consequências das contradições do capitalismo pós-moderno.

No momento histórico pré-moderno, a representação simbólico-cultural do homem e das estruturas sociais vinculava-se essencialmente à comunidade local. Bolzan de Morais e Streck evidenciam três elementos presentes na forma estatal da sociedade medieval: cristianismo como base da pretensão ao Estado universal cristão; invasões bárbaras como fomentadoras da unificação política das regiões territoriais invadidas; feudalismo como sistema administrativo e organização militar vinculados à situação patrimonial. Trata-se de sistema político de obrigações mútuas de proteção militar mediada pela distribuição de terras e alicerçada na fidelidade. Nas relações feudais de produção o servo possui uma vinculação pessoal com o senhor feudal, em que vigora a dominação do tipo carismática, ex parte principe57 fundada na relação patrimonial.

O início da centralização do poder por meio do Estado moderno confunde-se com o início do capitalismo no próprio interior dos feudos por meio do aumento da produção para além do autoconsumo e da tributação feudal em

57 Max Weber, in STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luiz Bolzan. Ciência Política e Teoria do Estado. 8ª ed. Livraria do Advogado Editora, 2014. Edição do Kindle. Local do Kindle 387.

direção ao intercâmbio mercantil58. O novo sistema de trocas configura-se pela produção para comunidades cada vez mais distantes por meio de relações sociais e vínculos contratuais cada vez mais impessoais e abstratos destinados à circulação da riqueza: compra e venda, sistema monetário, mercado de trabalho, salário59. Agora, impessoais as relações sociais, os indivíduos, regidos por relação de igualdade abstrata, confundem-se, misturam-se no aglomerado de súditos.

O Estado moderno nasce com a separação entre os respectivos espaços público e privado (Estado e sociedade), considerado aquele como restrição do âmbito desta. O exercício do poder, até então nas mãos privadas do senhor feudal fundado no patrimônio, passa para uma esfera central pública responsável pela organização administrativa e militar dentro de um espaço sociogeográfico delimitado (povo e território) com a finalidade de viabilizar e fornecer garantias ao desenvolvimento do novo modo de reprodução da sociedade:

A organização burocrática vem a ser o elemento fundamental que viabiliza os quatro outros elementos essenciais de cuja confluência resulta a realidade material do Estado: o monopólio do sistema monetário, o monopólio do sistema fiscal, o monopólio da realização da justiça – a que se chega substituindo as jurisdições autônomas e a título próprio, que dominavam o localismo do medievo, pela moderna instituição de “instâncias” de uma grande unidade jurisdicional cujo vértice é o Estado e que age através de agentes do Poder Soberano – e finalmente o exército nacional60.

Sob o signo da modernidade, desenvolve-se o Estado no processo histórico do triunfo do capitalismo alicerçado na racionalidade formal-instrumental e antropocêntrica do contratualismo. A racionalidade formal-instrumental opera como lógica de legitimação e de explicação para a organização da atividade humana com a finalidade de alcançar fins previamente definidos e determinados61. Resulta do giro ontológico iluminista que colocou o homem no centro da natureza e da sociedade, e consequentemente pelo seu controle. O

58 Idem posição 374.

59 Idem posição 717

60 Idem posição 724-725

61DURÁN, Francisco Entrena. Modernidad y cambio social. Colección Estrucuturas y Processos. Serie Ciências Sociales. Madrid: Editorial Trota S.A., 2001, p. 227.

contratualismo como fundamento jurídico do Estado liberal gira em torno dos princípios individualistas da vontade e do consentimento, que substitui a tradição na legitimidade do poder.

A intensificação dos processos de globalização do sistema capitalista de reprodução da sociedade, caracterizados principalmente pela rapidez das inovações tecnológicas e pelo avanço dos instrumentos de comunicação, introduz importantes mudanças nas práticas sociais. Como consequência do processo de aceleração, a alta modernidade62 caracteriza-se principalmente pela dificuldade de análise e compreensão dos fluxos econômicos, sociais e culturais, e consequentemente de regulação das práticas sociais. A sociedade e os indivíduos são tomados por sentimentos de risco e de incerteza social, ao mesmo tempo em que o incremento do conhecimento científico introduz a principal tônica da alta modernidade ou modernidade tardia: a capacidade reflexiva sobre os riscos e as incertezas63. Para o sociólogo Anthony Giddens,

“modernidade é uma cultura do risco”64, cujo conceito torna-se essencial à organização da sociedade:

O mundo moderno tardio – o mundo do que chamo de alta modernidade – é apocalíptico não porque se dirija inevitavelmente à calamidade, mas porque introduz riscos que gerações anteriores não tiveram que enfrentar65.

Quanto maior o grau de incerteza e de risco nas práticas sociais, maior o sentimento de ansiedade, como “correlato natural dos perigos”66. Se para algumas pessoas a ansiedade acarreta a apatia diante dos problemas, para outras, somada à coragem e à resolução, ela fomenta a busca por novas respostas aos modelos preestabelecidos num processo de reflexividade. No contexto da alta modernidade, sujeito e sociedade articulam-se de forma indissociada e reflexiva – “ao enfrentar problemas pessoais, os indivíduos

62 Por não vislumbrar o rompimento com as relações socioeconômicas e simbólico-culturais, mas ao contrário, um processo de continuidade e de desenvolvimento do próprio modo de produção capitalista, a doutrina prefere denominar os momentos históricos anteriores e posteriores ao marco da globalização em baixa e alta modernidade (Entrena Durán) ou modernidade tardia (Giddens).

63 Durán. P. 243-244

64 GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Traduzido por Plínio Dentzien, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor Ltda., 2002, Edição Kindle. Posição 67

65 Idem posição 80

66 Idem posição 240

ajudam a construir o universo da atividade social à sua volta”67. Em relação dialética, sujeito e sociedade, sofrem os influxos das três características estruturantes da modernidade evidenciada por Giddens: processos de reorganização do tempo e do espaço associado aos mecanismos de descolamento das relações sociais de seus lugares específicos (desterritorialização); reflexividade institucional e institucionalização do princípio da dúvida radical.

As sociedades tradicionais caracterizam-se por processos de socialização dominados pelas categorias de tempo e espaço que se vinculam ao lugar como marcos simbólico-culturais essenciais às práticas sociais, enquanto a modernidade se desapega dessas limitações espaço-temporais.

Uma das suas principais características consiste no constante desenvolvimento das técnicas associadas aos meios de comunicação, que, até o momento culminaram na interconexão global dos computadores e das mídias eletrônicas, configurando o denominado ciberespaço68. O sociólogo Pierre Lévy, renomado estudioso do fenômeno, afirma tratar-se de “espaço de comunicação aberto pela intercomunicação mundial dos computadores e das memórias dos computadores”69. Para além da infraestrutura, o conceito engloba também todo o conjunto de informações disponíveis, bem como os sujeitos que fazem parte desse universo70.

Agora mediados pelo ciberespaço, o acesso à informação e a interconexão entre as pessoas desvinculam-se do local e do tempo em que se encontra a ferramenta utilizada. Como efeito das transformações tecnológicas, ocorre, então, a separação entre espaço e tempo, suscitando profundas consequências na organização das práticas sociais, principalmente no que diz respeito à padronização de elementos culturais, essencial ao dinamismo e ao efeito universalizante do capitalismo globalizado:

Um mundo com um sistema de tempo universal e zonas de tempo globalmente padronizadas, como o nosso hoje, é social e experiencialmente diferente de todas as eras pré-modernas. O mapa

67 Giddens, idem, posição 221.

69 LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo:Ed. 34, 1999, p.

92.

70 Ibidem p. 17.

global, onde não há privilégio de lugar (uma projeção universal), é o símbolo correlato do relógio no “esvaziamento” do espaço. Não é apenas um modo de retratar “o que sempre esteve lá” - a geografia da Terra —, mas também constitutivo de transformações básicas nas relações sociais71.

Não obstante a intensa interconexão mediada pelo ciberespaço, o cotidiano das pessoas transcorre no espaço sociogeográfico territorialmente limitado. Se por um lado é no ambiente local que as pessoas desempenham as suas atividades diárias, por outro, essas práticas sociais locais são cada vez mais entrelaçadas por eventos distantes, sobre os quais não possuem qualquer controle72. Giddens evidencia nesse fenômeno o “desencaixe das instituições sociais”, também denominado pela doutrina de “desterritorialização”, ou seja, o distanciamento entre as relações sociais e os seus contextos locais de interação. A influência global das decisões políticas e econômicas associada à alta mobilidade da população devido às frequentes viagens, às massivas migrações e às redes de comunicação e de relações sociais de alcance mundial são manifestações sociais que, segundo Durán, evidenciam um verdadeiro paradigma da desterritorialização73.

Como consequência desse processo de descolamento das práticas sociais dos seus contextos simbólico-culturais locais, o sentimento, seja individual ou coletivo, é de “perda do próprio destino”, pois “tanto a dinâmica socioprodutiva como a gestão e a organização dos âmbitos espaciais se desenvolvem de acordo com interesses e decisões de alcance mundial tomados a nível extralocal”74. Além da perda do controle sobre o seu projeto de vida, as pessoas passam a transitar por diversos espaços sociais, econômicos e culturais, nos quais assumem diferentes – até mesmo divergentes – interesses e padrões normativos, o que gera efetiva fragmentação da identidade:

[...] la vida de la gente suele transcurrir de manera fragmentada entre diversos territorios: entre el lugar en el que vive y en el que pasa las

71 Giddens, Anthony. Modernidade e Identidade Zahar. Edição do Kindle. (Locais do Kindle 309-313).

72 DURÁN, Francisco Entrena. Modernidad y cambio social Colección Estrucuturas y Processos. Serie Ciências Sociales. Madrid: Editorial Trota S.A., 2001, p. 246.

73 Ibidem p. 249

74 Ibidem p. 247

vacaciones estivales o los fines de semana, o, también, entre el lugar de residencia y donde trabaja, ya sea porque los medios de locomoción disponibles propician desplazamientos diarios al trabajo a una considerable distancia de donde se reside, ya se trate de las, cada vez más habituales, migraciones temporales entre países y/o entre regiones diferentes llevadas a cabo por determinados grupos de trabajadores”. 75

Nesse contexto de perda das referências simbólicas, torna-se cada vez mais difícil a compreensão e a organização das expectativas individuais e coletivas, ocasionando um verdadeiro processo de anomia nas práticas sociais.

Quanto maiores a desorganização e o sentimento de fragmentação, maior a necessidade de reflexividade para a orientação e o planejamento dos projetos individuais e institucionais. É nesse sentido que Giddens destaca a terceira característica estruturante da modernidade: a reflexividade institucional e o princípio da dúvida radical, como processo contínuo de revisão das práticas sociais a cada conquista de novos conhecimentos ou informações76.

Diferentemente das sociedades tradicionais, assentadas nas certezas da tradição, a sociedade moderna caracteriza-se pelo princípio da dúvida radical, ou seja, pela revisão constante do conhecimento, o que acaba por acarretar uma pluralidade de possibilidades de estilos de vida77. A diversificação de opções no planejamento racional exige cada vez mais dos sujeitos e das instituições a investigação contínua da memória no processo de adaptação à transformação constante das técnicas voltadas à superação das crescentes inseguranças da sociedade do risco. Verifica-se, portanto, uma relação de reciprocidade das esferas individuais e institucionais no projeto reflexivo.

Para a compreensão da situação do sujeito migrante a partir da articulação entre identidade e regulação na perspectiva do circuito da cultura, fez-se necessário inicialmente perquirir as representações simbólicas próprias

75 Ibidem p. 254

76 Opus cit. localização 367

77 Giddens conceitua a expressão “estilos de vida” como “práticas rotinizadas, [...] rotinas incorporadas em hábitos de vestir, comer, modos de agir e lugares preferidos de encontrar os outros”. Essas rotinas, embora revelem uma certa unidade necessária à narrativa da autoidentidade, não são fechadas, mas abertas a mudanças, pois estão vinculadas a escolhas e a decisões sobre como agir e sobre “quem ser” diante da pluralidade de opções possíveis que a modernidade oferece (in Modernidade e Identidade Zahar. Edição do Kindle. (Locais do Kindle 1465-1472).

do meio de produção do capitalismo globalizado. O enfrentamento das relações de poder engendradas na articulação entre migração e globalização pressupõe o desvelamento dos mapas conceituais que determinam e regulam as formas de falar sobre o assunto, já que os conceitos são construídos a partir da demarcação da diferença. A delimitação dos contornos conceituais, ou seja, estabelecer o que entra e o que sai do conceito, envolve necessariamente uma relação de poder que se revela na materialidade discursiva.

Nesse sentido, a identidade do sujeito migrante e a regulação das práticas migratórias articulam-se no cenário de representação simbólico-cultural, sendo construídas a partir das contradições da lógica do capitalismo globalizado: concentração e fragmentação das cadeias produtivas; clivagem entre a circulação do capital e do trabalho; aglutinação dos sujeitos pelo avanço tecnológico e sua desagregação pelas desigualdades econômicas e políticas; vidas experenciadas no entremeio de eventos locais e distantes. A complexidade do cenário impõe a constante revisão e reavaliação dos projetos de vida e das organizações institucionais, entrelaçadas na volatilidade dos mecanismos da globalização.

No fenômeno da migração, o migrante é sempre percebido como o intruso, aquele que está fora, alijado do pertencimento à sociedade ainda associada à representação simbólica do Estado-nação. É precisamente aqui, na precariedade do sujeito migrante, que se faz sentir de forma mais sensível as relações de poder envolvidas na afirmação das fronteiras da identidade –

“nós” e “os outros” – e da regulação – “quem está dentro” e “quem está fora”.