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2. OS SENTIDOS DA MIGRAÇÃO

2.3. MIGRAÇÃO E TRABALHO: FLAGRANTES CONTRADIÇÕES NO

Fenômenos estreitamente articulados entre si, a alteração no sistema, de produção no capitalismo globalizado acaba por impor mudanças no paradigma do trabalho44: “A ampla fragmentação do processo produtivo, a progressiva fragilização das fronteiras nacionais e a flexibilização dos transportes geraram uma alteração nos padrões de produção, nos sistemas de gestão e na forma de utilização da mão-de-obra45”.

Segundo análise de Gilberto Dupas, a partir das duas forças contraditórias de atuação da nova lógica de produção, enquanto as

41 “Since earliest times, humanity has been on the move. Some people move in search of new economic opportunities and horizons. Others move to escape armed conflict, poverty, food insecurity, persecution, terrorism, or human rights violations and abuses. Still others do so in response to the adverse effects of climate change, natural disasters (some of which may be linked to climate change), or other environmental factors. Many move, indeed, for a combination of these reasons.” The New Yor Declaration for Refugees and Migrants. Resolution adopted by the General Assembly on 19 Setember 2016.

42 We also recognize that international migration is a multidimensional reality of major relevance for the development of countries of origin, transit and destination, which requires coherent and comprehensive responses. Migrants can make positive and profound contributions to economic and social development in their host societies and to global wealth creation.

43 We will consider facilitating opportunities for safe, orderly and regular migration, including, as appropriate, employment creation, labour mobility at all skills levels, circular migration, family reunification and education-related opportunities. We will pay particular attention to the application of minimum labour standards for migrant workers regardless of their status, as well as to recruitment and other migration-related costs, remittance flows, transfers of skills and knowledge and the creation of employment opportunities for young people.

44 DUPAS, Gilberto. A lógica da economia globalizada. P. 124.

45 Idem p. 127.

transnacionais líderes e os fornecedores globais concentram-se no topo da cadeia de produção por fusões, aquisições, joint ventures e acordos tecnológicos, ocorre um processo inverso na sua base, fragmentada por franquias, terceirização, subcontratos e parcerias46. Por outro lado, altera-se também o processo de gestão de mão de obra, agora direcionado a transformar em variáveis os custos fixos da produção.”47. A internacionalização da cadeia produtiva facilita a busca por locais mais vantajosos em relação aos gastos relacionados a pessoal, à formalização dos contratos e às exigências ambientais:

Apesar de sempre existir um custo de saída, as transnacionais têm relativa facilidade de transferir o local de sua produção. A decisão de investir no país de origem ou no exterior tem implicações importantes sobre os níveis de emprego dessas economias, e muitas vezes, é utilizada como ferramenta de negociação pelas empresas. A mobilidade do capital e a possibilidade de deslocar segmentos da cadeia produtiva para outro país desestabilizam a estrutura de salários ao referenciá-la por padrões internacionais.48

Nesse contexto, devido à fragmentação e à mobilidade da cadeia produtiva, os mercados de trabalho dos diferentes países acabam competindo pelos mesmos empregos, forçando para níveis inferiores os padrões regulatórios e remuneratórios. Com o desemprego formal e a precarização das relações de trabalho, os Estados são pressionados à proteção social, muitas vezes sem condições orçamentárias suficientes para garantir os direitos sociais e o padrão civilizatório mínimo das populações carentes. Esse cenário resulta, por um lado, na perda da identidade das empresas com os seus países de origem49, e por outro, na diminuição da capacidade do Estado de compreender e regular as estruturas sociais, com o aumento da precariedade laboral e da desestabilização socioeconômica.

No cenário de inter-relação entre a internacionalização da lógica da produção no capitalismo globalizado, a fragilidade das relações laborais e a incapacidade do Estado de corresponder às expectativas próprias do welfare state, a migração apresenta-se intimamente relacionada com o trabalho.

46 Idem p. 128.

47 Idem p. 130-131

48 DUPAS, Gilberto. P. 129.

49 Idem p. 127.

Para a Organização Internacional do Trabalho, a questão da migração envolve, necessariamente, o mercado de trabalho e a busca por uma ocupação decente. Mesmo aqueles que fogem de perseguições, conflitos, violência ou desastres ambientais, assim como os membros de suas famílias, procuram inserir-se no mercado de trabalho no país receptor50.

Também para o sociólogo Abdelmalek Sayad, imigrante argelino na França, e pesquisador da imigração -, a definição de imigração está intrinsecamente vinculada ao trabalho. O trabalho condiciona a própria existência do imigrante até mesmo como ser humano. Não se trata, entretanto, de qualquer trabalho, mas aquele que o mercado lhe atribui e na posição que lhe é definida pelo mercado. Trabalho e imigrante condicionam-se de forma tal que, para ele, o imigrante desempregado constituiu-se um paradoxo:

“A estadia autorizada ao imigrante está inteiramente sujeita ao trabalho, mas também como homem – sua qualidade de homem estando subordinada a sua condição de imigrante. Foi o trabalho que fez “nascer” o imigrante, que o fez existir; é ele, quando termina, que faz “morrer” o imigrante, que decreta sua negação ou que o empurra para o não-ser. E esse trabalho que condiciona toda a existência do imigrante não é qualquer trabalho, não se encontra em qualquer lugar, ele é o trabalho que “o mercado para imigrantes” lhe atribui e no lugar em que lhe é atribuído: trabalhos para imigrantes que requerem, pois, imigrantes; imigrantes para trabalhos que se tornam, dessa forma, trabalhos para imigrantes. Como o trabalho (definido para imigrantes) é a própria justificativa do imigrante, essa justificativa, ou seja, em última instância, o próprio imigrante, desaparece no momento em que desaparece o trabalho que os cria a ambos. Entende-se, então, a dificuldade, que não é apenas técnica, que se tem em definir o desemprego no caso do imigrante (até quando? Durante quanto tempo?), a dificuldade que se tem em pensar a conjunção do imigrante e do desemprego: ser imigrante e desempregado é um paradoxo [...] a dificuldade está, aqui, em conciliar objetos inconciliáveis: desempregado e imigrante, ou, o que dá no mesmo, o não-trabalho com o que só se concebe e existe pelo trabalho”. P. 55

A discussão sobre a migração no contexto de uma agenda de desenvolvimento sustentável, portanto, deve incluir a coordenação das instituições representativas de empresas, trabalhadores e governo, alicerçadas nos quatro parâmetros do trabalho decente: 1) respeito, promoção e concretização dos princípios fundamentais do trabalho; 2) ambiente

50Internacional Labour Organization. Promoting decent work for migrant workers, New York, 2015, p. 2. Disponível em: <http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/---protrav/---migrant/documents/publication/wcms_344703.pdf>. Consultado em: 25.2.2018.

institucional e econômico sustentável a fim de garantir o emprego; 3) medidas de proteção social: 4) diálogo social e tripartite51.

As práticas sociais envolvidas no cenário da migração contemporânea, entretanto, desenvolvem-se em contexto central contraditório de clivagem entre a circulação do capital e do trabalho52. As duas forças de concentração e de fragmentação próprias do capitalismo globalizado projetam-se no fenômeno social da migração criando um paradoxo: enquanto o avanço tecnológico e a liberação comercial agem de forma aglutinadora em relação aos indivíduos, que se sentem mais “próximos”, as desigualdades socioeconômicas e políticas entre as regiões desenvolvidas e em desenvolvimento atuam de forma intensificando o processo das migrações. Em movimento contrário, os Estados

51 Decent work is a multifaceted concept that goes beyond merely having a job. The ILO’s Decent Work Agenda contains four inseparable, interrelated and mutually supportive objectives:

(i) respecting, promoting and realizing the fundamental principles and rights at work; (ii) promoting employment by creating a sustainable institutional and economic environment; (iii) developing and enhancing social protection measures; and (iv) promoting social dialogue and tripartism.7 The fourth objective recognizes that the principal world of work actors, namely representative organizations of employers and workers, together with labour ministries and other relevant parts of government, have a critical role to play in implementing and taking forward the Decent Work Agenda. Clearly, therefore, decent work should be viewed as an important means of achieving equitable, inclusive and sustainable development.

52 FARIA, Maria Rita Fontes de. Migrações Internacionais no plano multilateral: reflexões para a política externa brasileira. Brasília: FUNAG, 2015, p. 51.

53 Maria Rita Fontes de Faria, alicerçada em trabalho de Jonathon Moses, refere-se ao paradoxo da relação entre migração e globalização representado pela ação contraditória de duas forças próprias da globalização: aglutinadora e desagregadora (“Para Jonathon W.

Moses, a relação entre globalização e migrações pautar‑se‑ia por paradoxo, relacionado à oposição entre as forças aglutinadora e desagregadora suscitadas pela globalização. Embora estejam os indivíduos mais “próximos”, como resultado dos avanços tecnológicos e econômicos (liberalização comercial) deflagrados pela globalização – que atuariam como elementos aglutinadores –, acentuou‑se a distância entre as sociedades, haja vista a acentuação das diferenças nos padrões e oportunidades de vida predominantes nas regiões desenvolvidas e em desenvolvimento. Essa desigualdade teria efeito desagregador”. Idem p.

52) Para os efeitos dessa pesquisa, preferiu-se adotar os termos “concentração e fragmentação” a fim de se estabelecer o paralelo com o trabalho de Gilberto Dupas quanto às forças contraditórias e complexas imanentes à globalização já anteriormente desenvolvidas.

54 A Fair globalization: criating opportunities for all. Brief reviews of policy issues. World Comission on the Social Dimension of Globalization. ILO. P. 4.

fecham suas fronteiras à mobilidade humana revelando o paradoxo do fenômeno da migração:

[...] ao mesmo tempo em que é facilitada a mobilidade dos indivíduos, em consequência da evolução dos meios de transporte e do maior fluxo de informações na era da globalização, são os indivíduos repelidos pelo regime moderno de controle de fronteiras, cujas técnicas cada vez mais sofisticadas impossibilitam, na prática, seu deslocamento55.

Seyla Benhabib entrevê no enfraquecimento do Estado, como consequência do processo de globalização, um cenário de crise também caráter global. Na metade do século XX, a sociedade estava dividida por meio de guerras, conflitos raciais e de classe, tensões étnicas e lutas de gênero. As preocupações do pensamento social e político circunscreviam-se ao desenvolvimento da igualdade por meio do reconhecimento da diferença racial.

Na pós modernidade, por sua vez, a crise se situa na capacidade dos estados-nação de “navegar os ambientes econômicos e de segurança cada vez mais complexos, fluidos e obscuros”. Para ela, se antes o estado era considerado instrumento de opressão dos pobres e das minorias, atualmente tanto o “pobre global” (“global poor”), como o “rico global” (“global rich”) enfrentam um cenário em que o estado está desaparecendo, deixando como destroços instituições públicas ineficientes e solidariedade desgastada56.

55 FARIA, Maria Rita. Opus cit. p. 52

56 Benhabib, Seyla, in Crisis of the Republic: transformations of state sovereignty and the prospects of democratic citizenship. P. 45-46 (Whereas the social and political thought of mid-twentieth century was preoccupied with the capacity of society to accommodate equality for all while recognizing racial difference, understood prominently in terms of the “Black-White” divide, today we face another set of crises, no less challenging than days past but more global in character. If I may phrase this somewhat pointedly, I would say that whereas formerly it was society that was torn apart – and not only in the USA – through class conflict, war, race riots, ethnic tensions and gender struggles, today’s crises are generated by the diminishing capacity of nation-states to navigate an increasingly complex, fluid, and obscure security as well as economic environment. […]Today the global poor and the global rich face off in an environment where the state, which was once viewed as an instrument of oppression of the poor and racial minorities, is disappearing, leaving in its wake (as after Hurricane Katrina) collapsing public institutions and frayed solidarity.).

2.4. MODERNIDADE E REFLEXIVIDADE NO CONTEXTO DE RISCO DA