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3. IDENTIDADE

3.4. MIGRANTES NO CARRO DE JAGRENÁ: A CENTRALIDADE DO

Na língua portuguesa, a palavra crise deriva do vocábulo grego krisis, guardando os seguintes significados: separação, julgamento, decisão, momento decisivo196. No campo de estudos da economia, o conceito de crise se alinha ao estado de desequilíbrio conjuntural entre produção e consumo, com aumento de preços, desemprego e falência de empresas, bem como à fase de transição entre um surto de prosperidade e outro de depressão. No campo da Medicina, a crise se refere aos momentos de evolução de uma doença, de maior intensidade de uma dor causada por distúrbio funcional de algum órgão, ou ao estado de desequilíbrio ou desajuste emocional. O termo, portanto, evidencia um episódio de distúrbio ou de tensão, experimentado como uma situação de falta ou de carência, associada a um sentimento de dor.

Para Nicolau Sevecenko, a palavra grega krisis é uma derivação do verbo grego krínein – decidir -, cujo equivalente em latim é cernere - decidir e discernir. Também provêm de krisis as palavras krités, juiz; kritikós (derivação de krités), pessoa capaz de elaborar juízos e decidir e kritérion, valores mais elevados de uma sociedade em que são fundamentados os juízos, as críticas, os julgamentos as decisões. Conclui-se, assim, que o termo “crise” equivale “ao vácuo desorientador que se estabelece quando os critérios que orientam os juízos, por alguma calamidade histórica, política ou natural, se vêem suspensos, abolidos ou anulados”197.

Não é outro o momento histórico-cultural da pós-modernidade no qual as práticas sociais se desenvolvem sob o discurso cultural do capitalismo globalizado nas três dimensões formatadas por Beck: modo de produção

196 NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro,

197 SEVECENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 18-19

abrangente e totalizador (globalidade); núcleo ideológico reducionista ao campo econômico, em que o agir econômico substitui a ação política (globalidade); interdependência dos Estados nacionais soberanos e dos atores transnacionais resultando em um capitalismo mundial desorganizado (globalização). Os mapas conceituais derivados do sistema de representação do modo de produção globalizado se operam por processos de mudanças aceleradas, constantes e profundas, que não se adaptam à expectativa e ao controle198 essenciais à estabilidade, não somente da identidade, mas também das instituições.

Nessa perspectiva, Giddens enumera três sistemas de representação que delimitam o espaço de atuação das práticas sociais na pós-modernidade:

separação do tempo e do espaço, mecanismos de desencaixe das relações sociais e apropriação reflexiva do conhecimento. Essas três características da pós-modernidade desenham o cenário de risco conjuntural da modernidade.

Ansiedade e segurança se articulam de forma ambivalente199 sem que se possa encontrar um responsável individual ou coletivo para a condução da sociedade. Desse modo, Giddens afirma que “viver no “mundo” produzido pela alta modernidade dá a sensação de conduzir um juggernaut”200 - traduzido para o português como o “carro de Jagrená”.

Sociólogo britânico, Anthony Giddens recorre à imagem de juggernaut em disparada201 como representação simbólico-cultural da pós-modernidade.

Em inglês, para a palavra juggernaut aporta dois significados: caminhão muito grande e pesado; força poderosa (enorme força ou organização que não poder ser detida)202. Conforme ele próprio explica, trata-se de uma máquina desenfreada (runaway machine) extremamente potente, que os seres humanos podem conduzir coletivamente até certo ponto, mas que sempre ameaça escapar do controle e se despedaçar203.

198 GIDDENS, opus cit p. 509

199 GIDDENS, Anthony. The consequences of modernity.

200 Idem p. 509

201 Idem p. 874

202 Online Cambridge Dictionary. https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/juggernaut

203 “For these images I suggest we should substitute that of the juggernaut"-a runaway engine of enormous power which, collectively as human beings, we can drive to some extent but which

Tal metáfora se originou no festival anual Puri Rath Yatra que ocorre entre os meses de junho e julho na cidade de Puri, Orissa, na Índia. Esse festival é dedicado à jornada percorrida pelo deus hindu Lorde Jagannatha, considerado um dos avatares do deus Vishnu, em um carro de enormes proporções (16 rodas, aproximadamente 13,5m de altura, e 10,5 de cumprimento e profundidade)204, entre os Templos de Jagannatha e Gundicha.

Durante os percursos de ida e volta, o carro de Lorde Jagannatha (Nandighosha) é empurrado por uma enorme procissão de devotos do mundo todo. Na religião hindu, crê-se que a pessoa que vê o deus Jagannatha em seu carro durante o festival Ratha Yatra alcança a libertação do ciclo de nascimento e morte. Ao longo do ano todo, apenas os hindus dispõem da prerrogativa de entrar no Templo de Jagganatha, mas, durante o festival, também os estrangeiros podem vê-lo. Por isso são muitos os que acorrem à cidade de Puri para esse festival205. A referência à cultura indiana permite simetrizar a metáfora do carro de Jagrená ao contexto específico da globalização da migração.

Desde o Tratado de Westfalia de 1648, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, a sociedade internacional moderna passou a se organizar por meio do Estado nacional regido pelos princípios da soberania (autodeterminação nacional) e da igualdade entre os Estados. A ficção jurídica do Estado-nação teve como corolário o surgimento de outra ficção, o pertencimento do indivíduo à nação, como técnica de legitimação da subordinação deste àquele206. Entra em cena o Estado-nação como detentor do controle da nacionalidade - atribuída ao indivíduo independente de sua vontade - e da identidade, com o monopólio sobre a mobilidade. Para Stuart Hall, “uma cultura nacional é um discurso”207, um modo de elaborar sentidos, que influencia ações e constrói identidades a partir das histórias contadas sobre a nação (narrativa da nação), also threatens to rush out of our control and which could rend itself asunder”. (in opus cit. p.

139)

204 http://www.odiaweb.com/three-chariots-ratha-yatra-puri/

205A explicação dessa tradição hindu foi extraída do site “About Puri Ratha Yatra: Jagannath Ratha Yatra”. Disponível em < http://rathyatralive.com/puri-rath-yatra-jagannath-rath-yatra-chariot-festival/16/>

206 Bauman, Identidade: entrevista a Benedeto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros, Rio de Janeiro: Zahar, Kindle Edition, location 315.

207 Idem, location 31

bem como das memórias que conectam passado e presente e das imagens construídas. Alicerçada no princípio da soberania e no pertencimento pelo nascimento, o conceito da identidade nacional envolve necessariamente uma relação de poder, qual seja, o de estabelecer a fronteira entre “nós” e “eles”, de forma tal que, segundo Bauman: “uma identidade não-certificada era uma fraude. Seu portador, um impostor – um vigarista.”208

No contexto do Estado-nação como organização política, o reconhecimento do indivíduo como sujeito de direitos, notadamente trabalhistas, vincula-se ao preenchimento do requisito da cidadania, que por sua vez, vincula-se à representação simbólica da

“identidade nacional” pela regra cujos regius, eius natio (quem governa decide a nacionalidade). Mesmo após o surgimento do regime internacional de direitos humanos, com o crescente reconhecimento dos sujeitos como portadores de direitos independentemente de sua nacionalidade - transferência de direitos do cidadão para o indivíduo – a implementação desses direitos continua atrelada aos Estados-nação. Como Lorde Jagannatha, reservado em seu Templo apenas aos hindus, o Estado-nação é o “locus de identidade e pertencimento político”209.

Zygmunt Bauman leciona que as transformações sociais e políticas, além das lutas por poder no contexto da pós-modernidade produzem “danos colaterais”, ou seja, categorias que “são excluídas do planejamento dos custos de um empreendimento e dos riscos de sua execução”. Essas baixas são colaterais210 quando rejeitadas porque inesperadas, “indignas de serem incluídas entre os objetos das ações de reconhecimento preparatório”, ou porque insignificantes, não justificam os custos de sua prevenção. Dessa forma, o sociólogo polonês aponta a “afinidade seletiva” entre a posição do sujeito “vítima colateral” e a posição na “escala da desigualdade” como resultado de um duplo estigma: desimportância e falta de mérito

208 Idem. location 344

209209 VELASCO, p. 2174

210 Bauman explica que a expressão “baixa colateral” origina-se das atividades militares e refere-se aos efeitos inesperados, ou porque não levados em conta no planejamento da operação, ou porque, considerada a possibilidade como risco válido apreciado no contexto do objetivo da atividade militar. (in Danos coleterais: desigualdades sociais numa era global.

(locais do Kindle, 89).

O vínculo entre a probabilidade maior de se ter um destino de “baixa colateral” e o fato de se ocupar uma posição degradada na escala da desigualdade é resultado da convergência entre a “invisibilidade”

endêmica ou planejada das vítimas colaterais, por um lado, e a

“invisibilidade” imposta aos “estranhos de dentro” – os empobrecidos e os miseráveis –, por outro. As duas categorias, por variadas razões, são excluídas das considerações sempre que se avaliam e se calculam os custos de um empreendimento planejado e os riscos associados à sua execução. As baixas são “colaterais” quando rejeitadas como não importantes o suficiente para justificar os custos de sua prevenção, ou simplesmente “inesperadas”, porque os planejadores não as consideraram dignas de serem incluídas entre os objetos das ações de reconhecimento preparatório211.

Com a desintegração do Estado-nação como lócus de proteção social das populações carentes, a migração em massa acompanha a produção dessas “vítimas colaterais”: “pessoas redundantes”, “localmente inúteis, excessivas ou não empregáveis em razão do progresso econômico, ou localmente intoleráveis, rejeitadas por agitações, conflitos e dissensões causados por transformações sociais e lutas por poder”212.

Nesse cenário, faz-se possível a seguinte analogia: a exemplo dos estrangeiros que buscam a salvação do clico de nascimento e morte no carro de Jagrená, os migrantes acorrem ao acesso a outro Estado-nação em busca de melhores condições de vida:

O fluxo de refugiados impulsionados pelo regime de violência arbitrária a abandonar suas casas e propriedades consideradas preciosas, de pessoas buscando abrigo dos campos de matança, acrescentou-se ao fluxo constante dos chamados “migrantes econômicos”, estimulados pelo desejo demasiadamente humano de sair do solo estéril para um lugar onde a grama é verde: de terras empobrecidas, sem perspectiva alguma, para lugares de sonho, ricos em oportunidades.213

Esse deslocamento territorial em massa, para além da segurança das narrativas de nacionalidade originais, produz outro deslocamento, no nível da subjetividade. A dispersão das pessoas com identidades moldadas em diferentes locais produz identidades “desestabilizadas, mas também

211 BAUMAN, Zygmunt. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global (Locais do Kindle 148-151). Zahar-Brasil. Edição do Kindle.

212 Idem localização 32.

213 Bauman, Zygmunt. Estranhos à nossa porta (Locais do Kindle 65-68). Zahar. Edição do Kindle.

desestabilizadoras”214, construídas no espaço de fronteira com o Outro lacaniano, grafado em letra maiúscula, e também com o outro, com letra minúscula. É nessa clivagem entre o eu e o outro/Outro que se revela o desconhecido. Nesse espaço do acontecimento da crise, suspensos os critérios norteadores dos juízos, são formuladas as estratégias de representação, contestadas as identidades, negociados os valores culturais no processo reflexivo de autoconstrução individual e institucional.

No esforço de empurrar a “máquina desenfreada” do carro de Jagrená, no percurso entre os dois templos, fundem-se as esperanças e o desejo de hindus e estrangeiros. A partir dessa perspectiva, Homi Bhabha afirma que no espaço “entre-lugares” se articulam estratégias de subjetivação, seja singular ou coletiva, “que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade215:

É na emergência dos interstícios – a sobreposição e o deslocamento de domínios da diferença – que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação [nationness], o interesse comunitário ou o valor cultural são negociados216.

Instância privilegiada de construção e de articulação entre as narrativas de identidade e a construção da sociedade (Dejours), o trabalho materializa a ponte nessa jornada para o reconhecimento do sujeito migrante. Afirma o sociólogo Abdelmalek Sayad que a definição de imigrante e imigração envolve uma dupla contradição enredada nos fios que ligam a regulamentação da situação do imigrante e a sua situação de fato, provocando, assim, uma “ilusão coletiva (...) de um estado que só é admitido como provisório (de direito), com a condição de que esse ‘provisório’ possa durar indefinidamente, ora como definitivo (de fato), com a condição de que esse ‘definitivo’ jamais seja enunciado como tal” 217. Trabalho e provisoriedade são elementos constitutivos

214 WOODWARD. Opus. Cit. p. 24

215 BHABHA, Homi. O local da cultura. p.20

216 BHABHA, idem p. 20

217SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. Tradução de Cristina Muracho. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998, p. 46.

da condição de imigrante - “um imigrante é essencialmente uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito”:

Se a função de tudo isso, dos fatos como dos discursos, aparece como uma lembrança para os imigrantes de sua condição de trabalhadores apenas tolerados e tolerados a título provisório, o objetivo visado é o de poder agir sobre a realidade social (ou seja, a imigração), até submetê-la à definição que dela se dá: como impor a definição mais próxima do modelo ideal típico do imigrante e da imigração? ”

Porque relacionada ao trabalho e à sua condição de provisoriedade – revogável a qualquer momento, Sayad explica que a imigração envolve ainda um terceiro aspecto econômico: a técnica de “custos e benefícios comparados da imigração”, ou seja, “quais as ‘vantagens’ de se recorrer à mão-de-obra imigrante e quais os ‘custos’ que se pagam pela utilização dessa mão-de-obra”.

À regulamentação cabe a técnica utilitária de extrair a máxima vantagem (principalmente econômica) com o menor custo (principalmente social e cultura). Ao escolher e atribuir quais os direitos reconhecidos aos imigrantes, a regulamentação constitui o significado - o sentido - da imigração, possibilitando ao mesmo tempo a sua flutuação ao sabor do saldo positivo ou negativo desse balanço e a conformação do imigrante com o que dele se espera:

Esta é uma formulação que condensa em si toda a história do fenômeno da imigração, revela a função objetiva (ou seja, secreta) da regulamentação aplicada aos imigrantes: mudando segundo as circunstâncias, segundo as populações relativas, essa regulamentação visa impor a todos a definição constituída em função das necessidades do momento”.

A regulamentação do trabalho, portanto, revela-se como significativo instrumento de tradução na formação das identidades do sujeito migrante. Na oposição entre o fechamento da tradição e as possibilidades da tradução, Hall evidencia que as identidades dos migrantes configuram identidades traduzidas:

“eles devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas”218. São pessoas que pertencem a “culturas híbridas” e por isso nunca serão unificadas. A abertura

218HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015, 12ª edição, p. 52.

das significações suscita o cuidado necessário à constante re-construção das definições articuladas entre regulação identidade. Exemplo desse cuidado é revelado na própria incorporação do termo juggernaut na tradução da cultura hindu para a língua inglesa.

No começo do século XIV, o missionário franciscano Friar Odoric levou para a Europa a estória de uma enorme carruagem que carregava a imagem do deus hindu Vishnu (também denominado Jagannatha, “deus do mundo”) em procissão religiosa pelas ruas da Índia. Na narrativa, descreveu como alguns devotos se jogavam deliberadamente embaixo da carruagem para serem esmagados pelas rodas como um sacrifício ao deus hindu. É possível que esse relato esteja carregado de exageros, pois o percurso envolve grande quantidade de pessoas a empurrar o carro de Jagrená, o que poderia ocasionar atropelamentos acidentais. Não obstante, foi incorporada ao imaginário inglês como associação do termo juggernaut a qualquer veículo de grandes proporções com enorme capacidade de esmagamento219.

Nesse contexto, o direito fundamental do trabalho, como espaço privilegiado de materialização do desejo de reconhecimento do sujeito migrante, impõe-se como ponte entre a permanente re-construção da identidade e as representações simbólico-culturais da migração. Como espaço de intervenção instrumental, “emerge nos interstícios culturais que introduz a invenção criativa dentro da existência”220.

219 Dicionário online Merriam-Webster, verbete juggernaut, the History of Juggernaut.

Disponível em < https://www.merriam-webster.com/dictionary/juggernaut>

220 BHABHA. Opus cit. p. 29