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3. IDENTIDADE

3.2. CONCEPÇÕES DE IDENTIDADE: REPRESENTAÇÕES DA PESSOA

3.2.1. O sujeito cartesiano

Marco histórico do nascimento da modernidade, o Iluminismo caracteriza-se pelo rompimento com as concepções teocêntricas da sociedade tradicional, substituídas pela centralidade do sujeito dotado de razão e consciência e, portanto, de vontade racional destinada à organização e ao domínio da natureza. O pensamento de René Descartes, em seu Discurso do Método (1637), inaugura a filosofia moderna ao colocar no centro do conhecimento a pessoa humana e a capacidade da consciência de refletir sobre si mesmo.

88 HALL, Stuart. Opus cit. p. 10

89 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015, 12ª edição.

90 HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Organização Tomaz Tadeu da Silva. Identidade e diferença. Editora Vozes, 12ª edição, p.

91 Opus cit. p. 10-28.

Na busca do conhecimento da verdade, Descartes começou por rejeitar como falso tudo o que pudesse suscitar dúvidas. Ao reflexionar sobre si mesmo e aplicar em suas próprias crenças e opiniões o princípio da dúvida – ou seja, fazer de conta que todas seriam ilusões -, percebeu que restava como verdadeiro o pensamento associado a esses questionamentos, chegando, então, ao seu célebre cogito ergo sum (penso, logo existo):

Ao considerar que os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis resumir que não existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, por existirem homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se refere às mais simples noções de geometria, e cometem paralogismos, rejeitei como falsas, achando que estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações.

E, enfim, considerando que quaisquer pensamentos que nos ocorrem quando estamos acordados nos podem também ocorrer enquanto dormimos, sem que exista nenhum, nesse caso, que seja correto, decidi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais corretas do que as ilusões de meus sonhos. Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu procurava.

Mais tarde, ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia presumir que não possuía corpo algum e que não havia mundo algum, ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que, se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse existido; compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material92.

Inicia-se o pensamento moderno pela concepção da pessoa humana como indivíduo unificado, centrado em uma essência interior, que permanece com ele durante a sua existência. Nessa concepção, a identidade é configurada a partir dessa essência interior93, presente no sujeito racional, cuja

92 DESCARTES, René. Discurso do Método. Ed. Acrópolis,p. 19

93 HALL, opus cit. pp 10-11

capacidade reflexiva assume a centralidade do conhecimento. A doutrina denomina essa concepção de sujeito cartesiano ou sujeito do cogito94.

Stuart Hall também identifica em John Locke essa concepção unificada e centralizada do sujeito racional. Para Locke, a consciência produz a identidade pessoal (‘consciousness makes personal identity’). A pessoa consiste no ser dotado de inteligência, com as capacidades de razão, reflexão e de pensar em si mesma como aquela que pensa, independentemente da diferença de tempo e de lugar. O pressuposto de que a consciência é inseparável do pensamento, resulta na identidade pessoal: a uniformidade do ser racional na extensão em que pode retroagir a consciência aos pensamentos e ações passadas95.

Em John Locke iniciam-se os fundamentos do individualismo em que estão alicerçadas as bases da teoria do Estado Liberal, cuja racionalidade está assentada no indivíduo. A passagem da sociedade tradicional para a sociedade moderna encontra na liberdade do indivíduo a sua racionalidade e no Estado a expressão da organização social, mediadas pelo contrato social, por meio do qual os indivíduos consentem em abdicar da liberdade em favor da segurança contra os que são excluídos do território demarcado.

Diante da complexidade da sociedade que emerge com a sua organização no Estado moderno, a pessoa humana passa a ser compreendida a partir da sua relação com a sociedade. O desenvolvimento das ciências sociais, e principalmente da sociologia, permitiu a crítica do individualismo racional do sujeito cartesiano96 e o surgimento da concepção sociológica do sujeito. O processo de formação do indivíduo acontece de forma articulada com a sua participação na sociedade:

[...] os indivíduos são formados subjetivamente através da sua participação em relações sociais mais amplas; e, inversamente, do modo como os processos e as estruturas são sustentados pelos papéis que os indivíduos neles desempenham. Essa “internalização”

94 Para a melhor compreensão do sujeito cartesiano ver: SALES, Alencar Benes. A polissemia do sujeito cartesiano. Princípios: Revista de Filosofia, Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, v. 14, n 22, 2007. Disponível em <

https://periodicos.ufrn.br/principios/article/view/472/406> consultado em 19/11/2017.

95 LOCKE, John. An Essay on Human Understanding. The Pennsylvania State University, Electronic Classics Series, Jim Manis, Faculty Editor, Hazleton/PA, 1999. pp 318-319

96 HALL, opus cit. p. 21

do exterior no sujeito, e essa “externalização” do interior, através da ação no mundo social [...], constituem a descrição sociológica primária do sujeito moderno e estão compreendidas na teoria da socialização97.

Nesse sentido, a organização e o desenvolvimento do Estado Moderno contribuiu flagrantemente para a formação do chamado sujeito sociológico, conforme analisado na seção seguinte.