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3. IDENTIDADE

3.2. CONCEPÇÕES DE IDENTIDADE: REPRESENTAÇÕES DA PESSOA

3.2.3. O sujeito descentrado

3.2.4.3. O sujeito freudiano e o sujeito lacaniano

Situa-se justamente na teria de Freud, e posteriormente de Lacan, sobre o inconsciente, o quarto avanço na teoria social que conduziu à concepção do sujeito descentrado.

Freud encontra na incompletude dos dados da consciência a prova da existência do inconsciente. Frequentemente, na comunicação da vida cotidiana, acontecem atos psíquicos que não encontram explicação na consciência. Sonhos e atos falhos parecem se originar de outra instância diferente da consciência, “ideias que assomam à nossa mente vindas não sabemos de onde, e com conclusões intelectuais que alcançamos não sabemos como”137. Para ele, essas falhas levam à conclusão da presença de um “psiquismo inconsciente”, uma “segunda consciência reunida à consciência que é reconhecida”138. O inconsciente, portanto, compreende “por um lado, atos que são meramente latentes, temporariamente inconscientes, mas que em nenhum outro aspecto diferem dos atos conscientes, e, por outro lado, abrange processos tais como os reprimidos, que caso se tornassem conscientes, estariam propensos a sobressair num contraste mais grosseiro com o restante dos processos conscientes”139. Essa segunda instância que clandestinamente invade os atos psíquicos corresponde ao sujeito freudiano.

Freud diferencia duas fases de estado no ato psíquico, entre as quais se intercala um exame, ou mesmo uma censura. A primeira fase representa o ato inconsciente, o qual, examinado pela censura, na segunda fase, pode ser negado ou acolhido. Caso rechaçado, qualifica-se, então, como “reprimido”, permanecendo no sistema do inconsciente. Caso vitorioso, passa a pertencer ao sistema da consciência. Entretanto, a sua relação com a consciência não é fixamente determinada pela sua posição no sistema da consciência, ou seja, uma vez acolhido, o ato psíquico ainda não é consciência, mas apenas “capaz de consciência”. Nesse contexto, Freud denomina preconsciência ao sistema

137 FREUD, Sygmund. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XIV (1914-1916). O inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 3126

138 Idem p. 6

139 Idem p. 3130

da consciência. O aceso do ato psíquico da preconsciência à consciência também é determinado pela censura140.

Seguindo a trilha das pesquisas de Freud, Lacan também identifica duas dimensões no discurso: um intencional e outro involuntário, manifestado na palavra truncada. O primeiro revela a fala corriqueira do consciente – a fala do “eu” (self), enquanto o segundo surge de um lugar diferente, manifesta outra fala, a fala do Outro. Entretanto, diferentemente de Freud, que considera o inconsciente um tipo de segunda consciência, cujo sistema funciona sob o mesmo modelo, mas dotado de intenções próprias, Lacan apresenta o inconsciente como um discurso separado do consciente, sem qualquer envolvimento subjetivo, ou seja, o inconsciente é o discurso do Outro141,

“estruturado como uma linguagem”142. Lacan afirma que “o inconsciente é, no fundo dele, estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem”143.

Linguagem e alteridade são constitutivas do sujeito no trabalho de Lacan. Em uma primeira fase, o psicanalista identifica o sujeito como “uma posição adotada em relação ao Outro como linguagem ou lei; em outras palavras, o sujeito é uma relação com a ordem simbólica”144. Posteriormente, Lacan procede à reconceitualização de sujeito para uma “postura adotada em relação ao desejo do Outro”.

Para o psicanalista francês, o Outro possui várias faces, a serem vistas em articulação: o Outro como linguagem, como demanda, desejo e gozo, mas referente, principalmente, à natureza do pensamento inconsciente. Assim Roudinesco e Plon definem a alteridade (o outro e o Outro) na psicanálise lacaniana:

140 Idem p. 3130-3131

141 FINK Bruce, p. 20

142 Idem p. 191

143 LACAN, Jacques. O seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956. Trad. Aluisio Menezes, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 189

144 FINK, Bruce, p. 10

Termo utilizado por Jacques Lacan para designar um lugar simbólico grande. Outro ou grande A, opondo-se então quer ao pequeno outro, quer ao pequeno, a definido como objeto (pequeno).

A partir desse raciocínio, o sujeito lacaniano é determinado por uma precede. Mesmo antes do seu nascimento, os pais já preparam um lugar para ela no universo linguístico: eles falam dela, escolhem o nome, preparam o representa para criança, concomitantemente, o invasor que nomeando,

145 Essencial para a compreensão do trabalho de Lacan os conceitos que ele elabora sobre o Real, o Simbólico e o Imaginário. O simbólico encontra-se no plano da linguagem, no “mundo das palavras que cria o mundo das coisas”, pois “o conceito, resguardando a permanência do que é passageiro, gera a coisa”; “o conceito é a própria coisa” (in Função e campo da fala e da linguagem; Escritos, p. 276-277). Representa a sujeição do ser humano ao plano cultural, pois precisa se comunicar com os demais membros da comunidade para satisfazer os seus desejos e necessidades. O Imaginário refere-se à relação dos sujeitos entre si, constituída por meio da imagem especular (estádio do espelho), enquanto o Real encontra-se no momento anterior à letra; o Real precede a palavra. Para Lacan, a palavra possui função criativa, ou seja, ele toma a existência como um produto da linguagem. Então, o real não existe, pois “o que não puder ser dito na sua linguagem não é parte da realidade desse grupo; não existe a rigor” (in Fink, Bruce, O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Trad. Maria de Lourdes Sette Câmara.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 44).

146 Idem p. 21

147 Idem p. 21

transforma os seus desejos, e o instrumento que possibilita a sua satisfação. O sujeito é barrado pela linguagem e se torna alienado dentro do Outro:

O aporte realizado por Lacan é mais radical ainda quando diz que não se pode dizer que uma criança sabe o que quer: antes da assimilação da linguagem: quando um bebê chora, o sentido desse ato é dado pelos pais ou pelas pessoas que cuidam dele que tentam nomear a dor que a criança parece estar expressando (por exemplo:

“ela deve estar com fome”). Talvez haja um tipo de desconforto geral, frio ou dor, mas seu sentido é como que imposto pela forma como é interpretado pelos pais. Se um deles responde ao choro do bebê com comida, o desconforto, o frio ou a dor, será determinado retroativamente como tendo “significado” fome, como as dores da forme. Não se pode dizer que o verdadeiro sentido por trás do choro era que a criança sentia frio, porque sentido é um produto posterior:

respondendo constantemente aos gritos do bebê com comida pode-se transformar todos os pode-seus desconfortos, o frio e a dor em fome.

Nessa situação, o sentido é determinado não pelo bebê mas por outras pessoas, e com base na linguagem que elas falam.148

A relação imaginária com o outro, por sua vez, é explicada por Lacan a partir do estádio do espelho, “uma operação psíquica, ou até ontológica pela qual o ser humano se constitui numa identificação149 com seu semelhante”150. Dos seis aos dezoito meses, a criança tem apenas imagens e sensações desorganizadas. O seu reflexo no espelho apresenta uma unidade semelhante à dos pais, que constantemente afirmam ser ela mesma a imagem que ela vê.

A internalização dessa imagem pela criança a partir da reação dos pais (o Outro parental) permite formar um sentido unificado e coerente para o “eu”, assim constituindo o seu self, ou seja, a sua autoimagem. Entretanto, além das imagens do espelho serem sempre invertidas, no processo de comunicação dos pais que conduz à internalização dessas imagens ideais, pode haver mal-entendidos. Nessa situação, Lacan compreende o “eu” como uma construção fundada em uma distorção. O “self” é um falso ser.

O pensamento reflexivo sobre o homem inaugura-se historicamente no cogito de Descartes. O sujeito cartesiano extrai a sua existência do “Eu penso”.

Nesse momento, coincidem ser e pensar. A tônica da afirmação “Cogito, ego

148 Idem p. 23

149 Lacan conceitua a identificação como “a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (in O estádio do espelho como formador da função do eu: tal qual nos é revelada na experiência psicanalítica, Escritos, trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998, p. 94) ide

150 ROUDINESCO E PLON. Dicionário de Psicanálise. P. 194

sum”, no entanto, não está no ego, mas no sum151. O ego cartesiano assinala a subjetividade, mas não configura o sujeito, pois nele Descartes identifica apenas uma substância pensante de característica universal: “não é do homem concreto que Descartes nos fala, mas de uma natureza humana, de uma essência”152.

Lacan inverte a concepção pontual do sujeito cartesiano fixo e unificado, na qual “ser” e “pensar” estão presentes em um mesmo momento, e que “acredita que é o autor de suas próprias ideias e portanto não teme em afirmar “Eu penso”.”153. Ao contrário, assim como Freud, Lacan associa o pensamento ao inconsciente e trata a consciência, ou self, como fraude, imagem falsa de si mesmo.

O sujeito lacaniano é dividido entre o pensamento e o ser. Enquanto o pensamento é associado ao inconsciente de forma divorciada da subjetividade, o ser é associado ao self. Como produto da linguagem, o sujeito se divide entre o falso ser e o inconsciente: ou não penso, ou não sou (eu sou sem-ser)154. Isso quer dizer que o sujeito ora está no self, e nesse caso ele não pensa (já que o pensamento para Lacan se associa ao inconsciente), ora está no inconsciente, e, portanto, não é. Nesse sentido, ele é o sujeito dividido, produto da clivagem do “Eu”, e alienado na linguagem:

Nossa primeira tentativa, então, para definir o sujeito lacaniano é a seguinte: O sujeito não é senão essa própria divisão. A variedade de expressões como “sujeito fendido”, “sujeito dividido” ou “sujeito barrado” cunhadas por Lacan – todas escritas com o mesmo símbolo

$ - consiste inteiramente no fato de que as duas “partes” ou avatares de um ser falante não têm nenhum traço em comum: elas estão separadas de forma radical (o eu ou falso ser exige uma negação dos pensamentos inconscientes, o pensamento inconsciente sem nenhuma preocupação que seja com a opinião positiva do eu sobre si mesmo)155.

O sujeito lacaniano, por conseguinte, emerge em uma posição de sujeito na clivagem entre as duas formas de alteridade: o “eu” como o outro e o

151 GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 2009, p. 11.

152 Idem p. 11

153 Idem p. 65

154 Idem p. 66

155 Idem p.. 67

inconsciente como o discurso do Outro. Nessa perspectiva, “o sujeito é apenas suposto”156. A partir da formulação de Lacan, não há unidade do sujeito cartesiano formulada no “Penso, logo existo”. Ao contrário, o desaparecimento dessa duplicidade do sujeito é a causa da psicopatia:

Penso, logo existo, dizemos intransitivamente. Com certeza, é essa a dificuldade para o psicótico, precisamente em razão da redução da duplicidade do Outro com maiúscula e do outro com minúscula, do Outro como sede da fala, e garantia da verdade, e do outro dual, que é aquele diante de quem o sujeito se encontra como sendo a própria imagem. O desaparecimento dessa dualidade é justamente o que causa ao psicótico tantas dificuldades de se manter num real humano, isto é, num real simbólico157.

Não obstante, Lacan entende como cartesiano o caminho percorrido por Freud até o sujeito da psicanálise, pois assim como Descartes, ele acaba por ancorar na dúvida a sua certeza acerca do inconsciente, ou seja, “parte do fundamento do sujeito da certeza”158. Se em Descartes a certeza do pensar é extraída do ato mesmo de duvidar, também Freud retira da dúvida manifestada nas fissuras da consciência por meio dos sonhos e dos atos falhos da fala a certeza de que há um pensamento ali159. A dissimetria, entretanto, situa-se no estatuto do inconsciente na fórmula manifestada por Freud: “Wo es war, sol Ich werden – Aqui, no campo do sonho, estás em casa”.

Nesse sentido, cabe o ensinamento da professora Beatriz M. Eckert-Hoff, no qual o sujeito da pós-modernidade é aquele “interpelado pela ideologia e atravessado pelo inconsciente, por ser constituído pelo(s) outros, pelo (Outro)”160, e que, por isso, mesmo não tem controle sobre os seus sentidos e discursos, deslizando entre posições de sujeito nas relações entre significantes.

156 LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma, 1975-1976. Trad. Sergio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2007, p. 49

157 LACAN, O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente.(1957-1958). Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 14-15

158 LACAN, O seminário, livro os quatro fundamentos da psicanálise p. 38

159 LACAN, idem p. 39.

160 ECKERT-HOFF, Beatriz Maria. Escritura de si e identidade: o sujeito-professor em formação. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2008, p. 49.