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5.2 A (in)fidelidade nas adaptações de obras literárias para a televisão

5.2.5 A intertextualidade e a interdiscursividade

Além dos valores e dos conteúdos profundamente humanos representados nas versões do Sítio, outro fator de “encarrapichamento” de leitores e de telespectadores reside nas relações intertextuais e interdiscursivas estabelecidas pelas obras e pela série. Esses processos relacionais, como nos apontam Lorenzo Vilches (1984), Robert Stam (2008; 2012) e Linda Hutcheon (2011), são comuns à linguagem televisiva e se explicitam nas adaptações de obras literárias para o cinema e para a televisão, como é o caso do nosso corpus de análise. Uma vez que tanto Lobato quanto os autores da série televisiva referenciam outras obras literárias e a elementos populares à época em que se enunciam, esse procedimento também faz com que o texto se “enganche” — para usar um termo de Lobato — nas reminiscências de quem lhe assiste ou o lê. Como afirma Mikhail Bakhtin,

A atividade estética não cria uma realidade totalmente nova. Diferentemente do conhecimento e do ato, que criam a natureza e a humanidade social, a arte celebra, orna, evoca essa realidade preexistente do conhecimento e do ato — a natureza e a humanidade social — enriquece-as e completa-as, e sobretudo ela

cria a unidade concreta e intuitiva entre esses dois mundos, coloca o homem na

116 Esse saudosismo em relação ao ambiente rural é um fenômeno que se pode observar no panorama

literário brasileiro a partir da década de 1930, época em que o país começava a urbanizar-se, como já nos referimos nos primeiros capítulos deste trabalho. Assim, o rural ficou no remotismo idealizado, como lugar ideal, livre dos problemas e dos males das grandes cidades.

natureza, compreendida como seu ambiente estético, humaniza a natureza e

naturaliza o homem (BAKHTIN, 1998, grifos do autor).

Percebemos que os procedimentos de Lobato e da série televisiva ilustram o que o teórico afirma sobre a atividade estética. Ambos não criam realidades totalmente novas, uma vez que aludem a textos literários e a conteúdos culturais que lhes são não só contemporâneos como também anteriores. Tanto os originais literários quanto a série televisiva não só evocam esses conteúdos, engatando os leitores e telespectadores nas suas sugestivas “pinceladas carrapicho”, como também os ornam e os enriquecem, na medida em que dão voz a personagens interessantes, envolvendo- os em situações inusitadas. A criação dos personagens e do enredo, localizados em um espaço idílico, faz com que se estabeleça, na ficção, a própria e singular realidade, admitindo e transformando a realidade anterior. Dessa forma, os procedimentos em questão vão, mais uma vez, ao encontro das palavras de Bakhtin sobre o fazer artístico (1998, p. 34):

A arte cria uma nova forma como uma nova relação axiológica para o conhecimento e para o ato: na arte nos já sabemos tudo, lembramos tudo [...]; mas é justamente por isso que na arte o elemento da novidade, da originalidade, do imprevisto, da liberdade tem tal significado, pois nela há um fundo sobre o qual pode ser percebida a novidade, a originalidade, a liberdade — o mundo a ser conhecido e provado, do conhecimento e do ato, e é ele que na arte se apresenta como novo, é pela relação com ele que se percebe a atividade do artista como sendo livre.

As palavras de Bakhtin mostram o fazer artístico como resultado da relação tensionada entre a realidade pré-existente e a realidade singular criada pela arte. Essa tensão entre criação e realidade aponta para o caráter incorporador e transformador da arte, que intuitivamente representa conteúdos sociais, conferindo-lhes status de novidade ao revesti-los com a roupagem da ficção. Esse revestimento também agrega sentidos, uma vez que as escolhas feitas nesse processo sublinham determinados traços culturais e podem apagar outros. Além disso, como salienta Iser, sempre se busca relacionar o não-idêntico ao familiar e compreensível, ou seja, leitores e espectadores, de modo intuitivo, buscam a ancoragem da ficção nas suas experiências prévias — daí a importância das pinceladas-carrapicho aludidas por Lobato. Esses “carrapichos” mudam conforme o contexto em que se insere a produção e a

contemplação da obra de arte, pois, conforme Bakhtin (2006, p. 22), “[...] a contemplação estética e o ato ético não podem abstrair a singularidade concreta do lugar que o sujeito desse ato e da contemplação artística ocupa na existência”. Isso explica o esforço de atualização da série televisiva dos anos 2000 em relação aos originais literários datados do início do século XX.

Notamos, portanto, que as palavras de Iser, de Lobato e de Bakhtin apontam para uma só direção: o caráter original, de liberdade de criação, anda de mãos dadas com a realidade que pré-existe ao fazer e ao perceber literário. Há um permanente processo de apropriação dos conteúdos circundantes, dando-lhes diferentes roupagens. Na adaptação das obras literárias para a televisão, não poderia ser diferente, uma vez que se trabalha com diferentes planos de expressão, cruzando-se várias vozes na construção desse discurso. A série televisiva, além do roteiro, das falas dos personagens, envolve um complexo universo sígnico, multiautoral, no qual se entrelaçam as vozes — e as representações, as visões particularizadas - de músicos, artistas plásticos, figurinistas, iluminadores, cenógrafos, maquiadores, entre outros profissionais da área. Essa forma de realização, por isso, ilustra o que teorizou Bakhtin (1998, p. 86):

Orientando para seu objeto, o discurso penetra nesse meio dialogicamente perturbado e tenso, de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando- se com outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico.

Assim, quando da enunciação desse discurso, em um determinado momento histórico e social, “[...] não se pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação” (Ibidem). Esses fios dialógicos, já que são tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto, modificam-se conforme sua contextualização histórica. Isso não só explicaria a necessidade de modificações na estrutura e no

conteúdo da obra literária na sua transposição televisiva como também as diferentes versões televisivas da mesma obra literária, quando feitas em momentos diferentes117.

Bakhtin (1998) também afirma que a orientação dialógica é inerente a todo discurso. Exemplifica dizendo que apenas Adão, que, na mitologia bíblica seria o primeiro ser humano, não teria discursos alheios como objeto. Porém essa relação dialógica não se esgota nos procedimentos de apropriação. Há que se considerar as influências do que o autor chama de “resposta antecipada”. Trata-se do fato de o discurso prever a resposta do outro a seu próprio discurso, criando “o terreno favorável à compreensão de maneira dinâmica e interessada” (Idem, p.90). Por isso:

[...] sua orientação para o ouvinte é uma orientação particular, para o mundo particular do ouvinte [...] O falante tende a orientar seu discurso, com seu círculo determinante, para o círculo alheio de quem o compreende, entrando em relação dialógica com os aspectos desse âmbito. O locutor penetra no horizonte alheio de seu ouvinte, constrói sua enunciação no território de outrem, sobre o fundo aperceptivo de seu ouvinte (Idem, p. 91).

As palavras de Bakhtin fazem referência a uma conhecida máxima: quem fala (escreve, encena) o faz para alguém especificamente. Trata-se de se colocar no lugar do outro, estabelecendo uma relação de empatia e de reciprocidade. Por isso, mais uma vez, encontram-se justificativas para as modificações dos textos literários originais quando da adaptação televisiva que vão além das questões de suporte midiático: envolvem-se os imperativos do contexto de enunciação. Isso porque entendemos que “[...] a atitude humana é um texto em potencial e pode ser compreendida (como atitude humana e não ação física) unicamente no contexto dialógico da própria época (como réplica, como posição semântica, como sistema de motivos” (BAKHTIN, 2006, p. 312). Se, parafraseando Camões, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, como uma obra literária do início do século XX poderia ser transposta para a televisão, nos anos 2000, sem transformações radicais? Por outro lado, também cabe questionar quais “vontades” tão perenes encontram-se em tal obra literária fazendo com que ela ainda desperte interesse.

117 É o que observamos nas diferentes versões televisivas de Memórias de Emília, de 1978 e dos anos

2000. Saltam aos olhos profundas diferenças de, por exemplo, enredo, cenografia, figurinos, interpretações dos atores e suporte técnico. Encontramos ambas as versões em DVDs lançados pela Som Livre.

Considerando que a adaptação da obra literária para a televisão resulta em um texto de caráter sincrético118, as reflexões acerca das relações entre o texto literário e o

televisivo feitas até aqui encontram eco no que afirma José Luiz Fiorin acerca da intertextualidade :

A intertextualidade é o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido, seja para transformá-lo. Há de haver três processos de intertextualidade: a citação, a alusão e a estilização (FIORIN, 1994, p.30)

A incorporação mencionada por Fiorin, Tratando-se da relação entre literatura e televisão, não se restringe à reprodução de sentido. Longe disso: a transformação é inevitável quando se trata de passar do plano exclusivamente verbal, obra de um único autor, para o universo plural de representações produzidas por uma coletividade. Essa pluralidade se deve ao fato de que, à semelhança do que afirma Paulo Emílio Gomes acerca do cinema, as produções televisivas também são tributárias “[...] de todas as linguagens, artísticas ou não” (GOMES, 2005, p. 105). Desse modo, para que se possa dar conta dessas linguagens todas, há que se envolver, nesse processo, profissionais de várias especialidades, como figurinistas, cenógrafos, iluminadores, sonoplastas, diretores de cena, atores, roteiristas. Enfim, há todo um universo de signos a ser contemplado, uma vez que tal sinestésico veículo quer de seus espectadores plena atenção, enredando-os, enovelando-os, imergindo-os em seus produtos finais. Isso tudo é feito sem lhes exigir grandes esforços, uma vez que os rostos, os gestos, os cenários são dados prontos, ao passo que, na leitura de uma obra literária, ainda que venha acompanhada de ilustrações, é necessário mobilizar uma rede maior de conhecimentos anteriores, de estruturas mentais.

Em relação aos processos de citação e alusão referidos por Fiorin, podem ocorrer nas falas utilizadas pelos personagens no texto televisivo. Um exemplo disso encontra-se na adaptação de Memórias de Emília. Na versão dos anos 2000, há o entrelaçamento de três núcleos temáticos: um central, que procura aproximar-se da

118 Entende-se como texto sincrético aquele que, no plano de expressão, conta com mais de uma forma

narrativa literária, efetivamente adaptando as Memórias de Emília, e outros dois secundários, que empregam os personagens do Sítio em enredos criados pelos roteiristas da série.119 No caso do núcleo central, procurou-se, por vezes, manter os

diálogos originais das obras. Assim, em alguns momentos, ocorre o processo de citação. Mas, nesse mesmo núcleo, observamos a substituição de personagens, como Shirley Temple e o Marinheiro Popeye, figuras no auge do sucesso à época da enunciação do texto literário, por outros com características mais modernas e relacionadas aos anos 2000. Nesse sentido, observa-se o processo de alusão.

Já em relação aos outros dois núcleos, o texto de Lobato apenas serve como inspiração, já que seus personagens são empregados em enredos que não são seus. Nesse caso, ocorre o que Fiorin denomina de interdiscursividade, assim por ele conceituada:

A interdiscursividade é o processo em que se incorporam percursos temáticos e/ou percursos figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro. Há dois processos interdiscursivos: a citação e a alusão (FIORIN, 1994, p. 32)

São incorporadas, dessa forma, figuras do universo literário lobatiano à produção televisiva, mas em situações novas e atreladas ao entorno do momento da enunciação, apenas “inspiradas” no universo do Sítio. É nesses núcleos que podemos perceber com maior clareza o esforço de atualização que os idealizadores da série televisiva empreendem, no sentido de agregar conteúdos que criem efeito de veridicção e de verossimilhança a fim de que os espectadores possam identificar-se com o que lhes é exibido. Entendemos que, neste caso, não ocorre uma relação intertextual, mas interdiscursiva, pois não se alude a elementos da manifestação concreta do texto literário, mas a categorias de espacialização, actorialização e espacialização, utilizando revestimentos similares aos que foram empregados na década de 1930, porém realocando-os conforme os imperativos do meio televisivo e do contexto enunciativo. Devido a essa realocação, o uso das categorias citadas não se dá de forma pacífica, isto é, não são simplesmente repetidos os procedimentos do meio literário no televisivo.

119 Esse procedimento assemelha-se ao que é empregado nas telenovelas, em que são criados vários

núcleos temáticos, com cortes intencionais em momentos de tensão da trama, a fim de criar suspense e, por conseguinte, garantir a audiência.

A partir das palavras de Fiorin, é possível afirmar que a adaptação televisiva de um texto literário incorpora seus elementos, mas, por se tratar de outro sistema semiótico, a simples reprodução não é possível. Mesmo que se mantenham os diálogos originais — como acontece, em parte, no caso de Memórias de Emília — eles passarão não só pelo filtro da interpretação do ator e do diretor de cena, como também estarão condicionados à ambientação em um cenário, à vestimenta de um figurino e as ações serão sublinhadas por fundo musical e por recursos de iluminação, além dos recursos computacionais. Assim, enquanto o texto literário é uma obra constituída na solidão, o televisivo é produto de uma coletividade.

Dessa forma, o entrecruzar das coletividades que constroem a narrativa televisiva, seja na produção, seja na recepção, deve ser considerado na sua perspectiva plural. Assim, várias interpretações, várias visões de mundo resultam em uma coletânea de individualidades que, fundidas no produto final, apontam para algo que transcende o particular: as questões identitárias.

Por isso, tendo em vista o cabedal teórico desenvolvido neste capítulo, partiremos para a análise pormenorizada do conteúdo dos DVDs baseados no seriado de 2011, com episódios intitulados No Reino das águas claras, Festa no céu, O saci,

Caçadas de Pedrinho, O Poço do Visconde e Memórias de Emília, além do site Mundo

do Sítio e dos episódios iniciais do desenho animado Sítio do Picapau Amarelo lançados em 2012. Essa análise levará em conta o projeto inicial de nação idealizada formulado por Lobato, conforme expusemos no capítulo 3, em comparação com as representações de nacionalidade que encontraremos nesse corpus, considerando também para isso a exemplificação do processo de “encarrapichamento” de leitores, de usuários e de telespetadores, a representatividade da personagem Emília e o esforço de atualização dos conteúdos representados nas obras literárias do início do século XX empreendidos por esses objetos de análise.

6 O SÍTIO NOS ANOS 2000: ADAPTAÇÕES, PARATEXTOS, DESLOCAMENTOS E

(RE)CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS

Até aqui, situamos a obra infantil de Monteiro Lobato quanto ao contexto de produção e ao possível projeto de nação ideal espelhado no Sítio e nos seus habitantes. Também pontuamos a penetração e a permanência desse universo ficcional no imaginário popular brasileiro, promovidas pelas sucessivas adaptações televisivas. Feito isso, neste capítulo temos como objetivo analisar as formas de permanência desse universo após o término da exibição diária da versão dos anos 2000 do seriado. Essa permanência é garantida por meio de estratégias que dialogam com as adaptações anteriores ao mesmo tempo em que se colocam no compasso das tendências do mercado global de produções culturais direcionadas a crianças. Trata-se da comercialização de DVDs baseados em episódios da temporada dos anos 2000, da criação do website Mundo do Sítio e do desenho animado Sítio do Picapau Amarelo lançado em 2012, exibido pela TV Globo e pelo canal pago Cartoon Network.

Para analisar os conteúdos dos DVDs, do website e dos episódios do desenho animado, procedemos à comparação desses três objetos com as obras literárias que serviram de referência às adaptações, especialmente no que se refere aos recortes que fizemos nos três primeiros capítulos deste trabalho. Além disso, as considerações teóricasdo capítulo, acerca das adaptações e das relações da arte literária com outros suportes além do livro, também servirão de base para essa análise.

6.1 Sobre (in)fidelidades, carrapichos, apagamentos e ilusões identitárias: análise