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Considerações parciais: o Sítio como medida para o Brasil e para

Assim, desenvolvidos os modelos ideais de líder, de cidadão, de desenvolvimento, de democracia, de educação, de assistencialismo, de relações entre os pares, o Sítio se configuraria como parâmetro de bem viver. Os habitantes parecem saber disso, uma vez que o discurso apologético que procura caracterizar o Sítio como paraíso terrestre é encontrado em vários pontos das obras.

Embora percebamos que o modelo de nação que o Sítio acaba por constituir não deixa de ser excludente e segregador, uma vez que se apoia em ideias capitalistas e liberais, especialmente em O poço do Visconde, o Sítio é apresentado como o “salvador do Brasil”. Isso é exemplificado na passagem a seguir:

[...] O Brasil tem o mesmo tamanho dos Estados Unidos. Se ainda está dormindo, um dia há de acordar — e então...

Emília bateu palmas.

— Viva! Viva! Vamos acordar o Brasil! Rompemos aqui o primeiro poço e pronto — está acordado o Brasil. Viva! Viva!...

— O Brasil poderá suceder aos Estados Unidos na produção de petróleo — disse o Visconde [...] (LOBATO, 2010c, p. 57, grifo nosso).

Apesar do raciocínio simplista, o excerto mostra, especialmente pela expressão que grifamos, a intenção de que o Sítio seja o modelo para não só colocar o Brasil no compasso do desenvolvimento internacional, mas para que se possa suplantá-lo. Os

acontecimentos do Sítio, então, serviriam como modelo desenvolvimentista para a nação a partir da exploração do petróleo, da abertura de estradas e da reorganização da sociedade por meio da escolarização, focada no ensino técnico para dar “utilidade à caboclada bronca”, e de medidas sanitárias.

Devido ao fato de se achar medida de desenvolvimento, tanto os habitantes do Picapau Amarelo quanto alguns de seus convidados, com certa frequência, lançam mão do recurso do elogio ao paraíso que seria o Sítio, reduto mágico de felicidade, criatividade e aventuras. Esse recurso constrói, dentro das obras, uma espécie de leitura prévia, que controla as formações de sentido acerca do Sítio, encaminhando-as para a senda da ideia de paraíso perdido, modelar e redentor da humanidade.

Por outro lado, por conter dados que ancoram o ambiente do Sítio na região Sudeste do país, mais especificamente na região cafeicultora paulista, esse modelo para a nação coloca São Paulo no lugar de matriz desenvolvimentista para o país, deslocando o eixo do poder político e intelectual que se encontrava no Rio de Janeiro, capital do país à época.

Essa ideia do Sítio como lugar mágico, onde tudo é possível, juntamente com a força de seus personagens, além de permear o universo ficcional criado por Monteiro Lobato, sobrevive até os dias de hoje. De formas diversas e com sérias implicações ideológicas, o Sítio do Picapau Amarelo e seus habitantes fazem parte do imaginário de gerações de brasileiros graças também e principalmente às sucessivas adaptações televisivas e, mais recentemente, às adaptações para sites temáticos como “O mundo do Sítio”72. No entanto, percebemos que, na esteira das adaptações, vários dos

conteúdos que aqui expusemos em relação às questões identitárias sofrem um processo de apagamento, assim como as características de alguns personagens são simplificadas ao extremo. A contextualização, as implicações e o esclarecimento dessas modificações — algumas delas bastante radicais — serão o assunto dos próximos dois capítulos.

72 www.mundodositio.com.br

5 OS MODOS DE PRESENÇA DO UNIVERSO FICCIONAL DO SÍTIO DO PICAPAU AMARELO NO IMAGINÁRIO NACIONAL

Passadas mais de nove décadas desde a publicação da primeira versão de A

menina do nariz arrebitado (1920), primeira obra dirigida ao público infantil de Monteiro Lobato, é perceptível a durabilidade do universo ficcional do Sítio do Picapau Amarelo. Essa durabilidade é constatada a partir da presença de certos elementos desse universo no imaginário brasileiro. Isso ocorre especialmente no que diz respeito à notoriedade de alguns personagens e à do próprio autor. Em face dessas permanências e dessa visibilidade, surge-nos a seguinte pergunta: em tempos de globalização, quando falar de nacionalismo soa extremamente anacrônico, como explicar que a obra infantil de Monteiro Lobato, com fortes marcas do projeto de nação ideal, da ambientação rural e do folclore regional, conforme pontuamos no capítulo anterior, esteja presente hoje, embora de outros modos, no cotidiano e no imaginário de brasileiros? Essa é a pergunta à qual o presente capítulo procurará responder, relacionando as obras que compõem o universo ficcional do Sítio do Picapau Amarelo a motivações e a realizações extraliterárias.

Apesar de as obras literárias em questão, como vimos nos capítulos anteriores, apresentarem traços temporais e espaciais bem marcados, ainda hoje são adaptadas. Por isso, a sua visibilidade e a do autor, atualmente, dão-se muito mais pela exposição na mídia do que pela leitura propriamente dita dos originais literários — tarefa que é dificultada, hoje, não apenas pela concorrência com o grande número de obras infantis e juvenis que são publicadas anualmente, mas também pela linguagem e pelo vocabulário empregado. Desse modo, devido às sucessivas adaptações, percebe-se que há, em certa medida, por parte de boa parcela dos brasileiros, o conhecimento de alguns aspectos desse universo ficcional que se deram a conhecer por meio dos seriados televisivos, embora substancialmente modificados em relação aos originais literários. Trata-se, portanto, de um contato com o universo ficcional lobatiano que não se dá pela interação entre livros e leitores, mas mediado pelas várias (re)leituras que uma adaptação televisiva pressupõe, incluindo-se, nesse contexto, também questões estético-ideológicas. Esse conhecimento parcial e as modificações substanciais que as

obras-fonte sofreram estão interligados e fazem com que seja necessário analisar a questão por dois ângulos, igualmente relacionados. Um deles, de ordem técnico- estética, diz respeito à complexidade das adaptações de obras literárias para outros suportes midiáticos. Outro, de ordem político-social, refere-se à reflexão sobre os motivos da escolha, por parte das redes televisivas, do universo do Sítio para ser adaptado e readaptado em seriados destinados ao público infantil desde a década de 1950 até os dias de hoje.