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4.1 As fronteiras da “nação” de Dona Benta

4.1.2 A questão da soberania nacional: afastando os piratas

Até aqui, vimos que a ocupação das terras novas do Sítio em O Picapau Amarelo, assim como a exploração de petróleo em O poço do Visconde ou o recebimento de visitas estrangeiras em Memórias de Emília não se dão de forma tão pacífica ou, então,. com o verniz da cordialidade. O estabelecimento de fronteiras e a manutenção da soberania da nação do Picapau Amarelo necessitam, certas vezes, de atitudes mais pontuais. Além disso, a defesa das terras do Sítio contra invasões, seja para ocupá-las, seja para explorar seus moradores ou os seus recursos naturais, é tema recorrente ao longo das obras que compõem esse universo ficcional.

Podemos ver, por exemplo, a construção de uma metáfora da invasão do elemento estrangeiro ao espaço nacional em O Picapau Amarelo, no capítulo em que Pequeno Polegar pretendeu apossar-se de um ninho de joões de barro — tomado aqui como símbolo de uma ave genuinamente nacional — que havia nas terras novas do Sítio para fazer dele sua própria morada. Houve briga entre o personagem estrangeiro e os pássaros, na qual os habitantes originais do Sítio precisaram intervir, mas não sem antes Pedrinho e Narizinho apresentarem métodos diferentes, como nos mostra o seguinte excerto:

— Como há de ser, Pedrinho, para acudirmos ao nosso amigo? — Só com o bodoque. Mato os dois joões e pronto.

— Isto nunca! — protestou Narizinho. — Eles são os donos da casa, estão com o

direito. [...] (LOBATO, 2010 a, p. 31, grifo nosso).

No diálogo, percebemos que Pedrinho fez pouco caso dos animais — eram dois “joões”, pesando-se aqui a conotação pejorativa do substantivo, como se nomeasse seres reles, comuns — frente ao elemento estrangeiro. No entanto, preponderou a opinião de Narizinho, salvaguardando-se a vida e a morada dos pássaros. Podemos associar, assim, essa preservação dos “joões” à defesa da propriedade dos habitantes originais da terra.

Também em O Picapau Amarelo, Capitão Gancho tenta, em vingança pela tomada de seu navio, roubar o Sítio. Busca, para isso, estabelecer conchavo com o Burro Falante e com Quindim, oferecendo-lhes vantagens, o que é veementemente negado pelo Burro, que se mostra incorruptível. Gancho também tenta convencer Elias Turco a ajudá-lo. No entanto, o comerciante também se nega, dizendo que “[...] não era ladrão desses que assaltam casas; só fazia o roubinho legal, ali no balcão, mas podia indicar uns tantos sujeitos capazes de aceitar a proposta” (Idem, p. 96). Nesse ponto, representa-se o conflito ético acerca da defesa de interesses pessoais em detrimento do interesse coletivo. Elias Turco não aderiu à proposta pessoalmente, mas, ao indicar outros que o fizessem — e que realmente ajudam na posterior tomada do Sítio —, não deixa de ser participante. Como os habitantes do Sítio haviam saído com o navio do Capitão, deixaram de “guardar o território”, e o Sítio é invadido por Gancho e seus comparsas, já que o guarda Quindim cochilou em serviço. Pedrinho, então, ardilosamente, sabendo do ponto fraco do inimigo54, traça um plano para expulsá-lo.

Enquanto o pirata dorme, o menino coloca no quarto um jacaré seco em cuja barriga inseriu um despertador, que seria acionado por meio de um barbante no qual Gancho tropeçaria assim que se levantasse. Foi o que aconteceu, assustando, sobremaneira, o pirata, que acaba se evadindo.

Nesse caso, a posse do território do Sítio e a sua soberania foram garantidas por meio da ação de Pedrinho, um dos herdeiros de Dona Benta. Ele precisou lançar mão

54 Como é de conhecimento geral, o personagem Capitão Gancho teme o crocodilo que teria abocanhado

de seus recursos pessoais de inteligência, astúcia, coragem, além dos seus conhecimentos prévios acerca do “estrangeiro”. Tudo isso a fim de reparar erros de outros habitantes, que agiram de forma relapsa — no caso de Quindim, que dormiu em serviço — ou ingênua — no caso do Conselheiro Burro Falante, que deixou Quindim sozinho e foi fazer a ronda.

Dessa forma, por um lado, fica implícita a crítica a comportamentos de lesa-pátria — através da corrupção de Elias Turco, da indolência, do mau cumprimento dos seus deveres ou mesmo da ingenuidade. Por outro, também se sugere o comportamento desejável dos cidadãos frente à pátria, sintetizado nas características de que Pedrinho é dotado e nas atitudes que o personagem toma, desfraldando-se, assim, a bandeira do empreendedorismo associado à criatividade, à inteligência e aos conhecimentos prévios. Se Pedrinho não fosse um leitor contumaz, não conheceria o ponto fraco do adversário estrangeiro e talvez não pudesse contornar o problema da invasão. Portanto, em última análise, o conhecimento advindo da leitura, da cultura formal, aliado às características pessoais deste cidadão-herdeiro, serviria também para a defesa do território.

4.1.2.1 Combatendo a pirataria: o caso do petróleo

O tema da defesa dos recursos naturais do Sítio contra a exploração estrangeira atrela-se às questões de soberania da nação do Picapau Amarelo, ficcionalizando, para o público infantil, ideias defendidas por Monteiro Lobato em sua vida pública, como em sua conhecidíssima campanha em prol da exploração do petróleo por companhias brasileiras. Isso se dá em O poço do Visconde, que, segundo André Luiz Vieira de Campos, constitui-se em um “Verdadeiro panfleto para crianças”, já que “[...] este livro foi escrito no calor de suas lutas pela descoberta e exploração do petróleo no Brasil, sendo logo depois proibido pelo Estado Novo” (CAMPOS, 1986, p. 125).

A respeito da citada obra e das questões relacionadas à soberania da nação do Sítio, que também passa pela defesa de seus recursos naturais, cabe-nos destacar o

capítulo intitulado Piratas55 do Petróleo. A essa altura da narrativa, o petróleo já havia jorrado nas terras de Dona Benta, no poço denominado Caraminguá56. As terras vizinhas ao Sítio já haviam mudado de dono ou estavam sob contrato de exploração do subsolo. Novas companhias trabalhavam, fazendo estudos, experimentos, depositando materiais nos terrenos vizinhos. No entanto, adverte-nos o narrador: “[...] as atividades das novas companhias se acentuavam sobretudo rente às divisas do Sítio de Dona

Benta” (LOBATO, 2010c, p. 150, grifo nosso). Percebemos, no trecho destacado, a reincidente preocupação com as fronteiras. Nesse ponto, porém, quem percebe a ameaça são os dois técnicos estrangeiros contratados por Dona Benta, a diretora da Companhia Donabentense de Petróleo que “[...] não entendia grande coisa do assunto” (Idem, p. 151) para a exploração petrolífera. Mister Kalamazoo e Mister Champignon foram espiar as divisas das terras e comunicaram à Dona Benta:

— Minha senhora — disse ele —, temos que tomar providências imediatas contra o banditismo petrolífero. No meu passeio de hoje, vi que os piratas se preparam para roubar boa parte do petróleo daqui do Sítio. Temos que organizar a defesa. (LOBATO, 2010c, p. 151, grifos nossos)

As palavras do personagem Mister Kalamazoo reiteram a posição defensiva contra os “piratas”. Com ajuda de Pedrinho, Visconde traça um plano para evitar a pirataria, explicando-o para Dona Benta, a qual manda que Mister Kalamazoo o execute. Tal plano consistia na abertura de novos “Caraminguás” nos limites do Sítio, impedindo que a Companhia Atarip57 de Petróleo efetivasse seu plano de roubo subterrâneo.

Como a Atarip era uma empresa estrangeira, tinha como desvantagem não conhecer o terreno. Tentaram obter essas afirmações com os dois técnicos norte-americanos e com os operários da Donabentense, mas todos foram fiéis e guardaram segredo. Desse modo, vemos representados, de forma maniqueísta, dois comportamentos dos

55 Percebemos que a figura do pirata é recorrente para representar os possíveis usurpadores nacionais:

aparece por meio do Capitão Gancho, um personagem tomado de empréstimo, em obras como

Memórias de Emília e O picapau Amarelo, e dos estrangeiros que visavam roubar petróleo do Sítio em O

poço do Visconde. Cumpre dizer que esta obra é imediatamente anterior a O Picapau Amarelo.

56 A palavra “caraminguá”, comumente, é empregada no sentido de dinheiro miúdo ou escasso ou de

objetos de pouco valor. Percebemos, assim, no contraste dessa definição com as mudanças que o Caraminguá proporciona no Sítio e em seus arredores, a construção de fina ironia, relacionando tal escolha aos inúmeros problemas que teve Lobato ao defender a ideia de exploração do petróleo por brasileiros.

estrangeiros: de um lado, aqueles que vêm ao Sítio para prestar seus serviços, colocando à disposição da Companhia Donabentense seus conhecimentos e sua total lealdade; do outro, aqueles que tentam burlar as fronteiras a fim de tomar o que não é seu. Tal postura maniqueísta desemboca na dualidade com que, até agora, vimos serem tratados os elementos estrangeiros na nação do Picapau Amarelo.