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4.2 Desenvolvimentismo, dependência e globalização

4.2.3 O Sítio como exportador de modelo humanizante: o gomo exemplar da

4.2.3.1 O modelo de líder democrata: Dona Benta

A liderança competente e democrática de Dona Benta é reforçada em vários pontos das obras que compõem o universo ficcional do Sítio. Ainda em A reforma da

natureza, a personagem é qualificada da seguinte forma: “Mas Dona Benta era a democracia em pessoa: jamais abusou da sua autoridade para oprimir alguém. Todos eram livres no Sítio, e justamente por essa razão que nadavam num verdadeiro mar de felicidade” (LOBATO, 2010b, p. 16). Dessa forma, a avó é reconhecida como detentora de autoridade, da qual usa com sabedoria, o que gera a felicidade dos habitantes de suas terras. A sabedoria, aliás, é uma das características mais marcantes da

personagem, proveniente tanto de suas leituras — representando o acesso que teve ao saber formal — quanto de sua personalidade e das suas experiências de vida, já que é uma senhora idosa. Trata-se do saber do ancião, que garantiria a felicidade de todos que a circundam. Essa ideia é reforçada em O poço do Visconde no discurso do personagem Quindim na festa em comemoração à grande vitória na produção petrolífera:

[...] Sabedoria, sim, meus amigos [...] porque Dona Benta é uma verdadeira filósofa. [...] Eu tenho um meio de conhecer a verdadeira sabedoria: é medir os resultados que ela dá. A sabedoria de Dona Benta deu como resultado final a felicidade completa que todos gozamos aqui. [...] Eu, por exemplo, só vim encontrar a verdadeira felicidade aqui.

Minha vida em Uganda era um perpétuo desassossego. [...] Afinal fugi, corri pelas matas às tontas até dar com os costados no Sítio de Dona Benta.

Emília me descobriu e tomou conta de mim. Fez-me minha aliada e minha amiga. [...] Todos se tornaram meus amigos — e minha vida sossegou. Vivo numa perfeita beatitude. Se me perguntarem onde é o céu, responderei que é aqui. E por que é assim? Por causa da sabedoria de Dona Benta, que é a aura misteriosa que tudo dirige neste abençoado pedacinho de mundo. (LOBATO, 2010c, p. 181)

No trecho, os elogios à Dona Benta giram em torno de sua sabedoria, que se mostra multifacetada. É vista como uma filósofa cujas ideias teriam aplicação prática, pois desembocam em resultados sensíveis mas relativos, uma vez que o nível de felicidade não pode ser mensurado de forma objetiva. Além dessa relatividade, a caracterização da liderança de Dona Benta nesse trecho resvala para o campo da mistificação, uma vez que a ela é creditada a obtenção de felicidade por parte do personagem que se enuncia. Além disso, o fato de encontrar paz no Sítio, além da “perfeita beatitude”, também corrobora para essa leitura, assim como a afirmação de que o Sítio é o céu por ser governado por uma pessoa que possui uma “aura misteriosa” em um “abençoado pedacinho de mundo”.

Também devemos atentar para o fato de Quindim ser estrangeiro, característica que reforça a ideia de o Sítio ser modelo para o mundo inteiro e, por extensão, a sua governante. Como se não bastasse, ainda em O poço do Visconde, outros estrangeiros reconhecem a liderança quase mística de Dona Benta. É o que vemos no discurso de Mister Kalamazoo nessa mesma festa:

Sim, Dona Benta é um poço de sabedoria. O trépano do estudo e da meditação desceu até as camadas mais profundas onde se acumula a ciência da vida. Vou confessar uma coisa: quando cheguei até cá, vim pago para sabotar todos os poços que Dona Benta quisesse abrir. Mas não tive coragem. Tudo me seduziu tanto, encontrei caracteres tão nobres, que até me envergonhei da minha primitiva intenção. E transformei-me. Passei a trabalhar como o mais leal dos homens, como o resultado dos meus serviços o demonstra. (LOBATO, 2010c, p. 182-183)

As palavras do personagem estrangeiro indicam o que se consideram as raízes da sabedoria de Dona Benta: o conhecimento formal aliado aos saberes práticos. Essa sabedoria, aliada à nobreza de caráter não só de Dona Benta mas também dos outros habitantes do Sítio, foi capaz de transformar as más intenções do estrangeiro Mister Kalamazoo e de angariar a sua lealdade. Esse poder transformador também é confirmado por outro personagem estrangeiro de O poço do Visconde, Mister Champignon, como lemos no excerto a seguir:

[...] eu igualmente fui contratado para sabotar de parceria cá com o amigo Kalamazoo. Mas também não tive coragem. Quem poderá ter coragem de prejudicar uma senhora de tão altos espíritos, como Dona Benta;[...] Quem? Até o pérfido Iago, se por cá aparecesse, não teria coragem de permanecer mau. A bondade humana tem isso consigo: seduz, arrasta, converte, catequiza. Eu fui homem como os outros, com as qualidades e defeitos do comum. Mas mudei — o Sítio de Dona Benta me mudou. Meu coração está limpo de maldade. O ambiente aqui do Sítio decantou minha alma. [...] E, portanto, nada mais tenho a fazer senão comungar com Mister Quindim e Mister Kalamazoo no hino de louvor que ergueram a Dona Benta, a boa fada que preside os destinos de todos nós. (LOBATO, 2010b, p. 183, grifo nosso)

O discurso de Mister Champignon aponta para o fato de a liderança de Dona Benta dever-se a características que escapam às explicações racionais, uma vez que o poder de converter inclusive os corações mais duros e mal intencionados viria não só da bondade emanada pela personagem, mas também por ela ser dotada de “altos espíritos”. Por extensão, o Sítio seria um lugar de transformação das almas, de purificação, livrando os estrangeiros de más intenções em relação à terra, ao povo e aos governantes. A mitificação da liderança de Dona Benta é reforçada no enunciado que finaliza a fala do personagem Mister Champignon por meio do emprego das expressões “comungar [...] no hino de louvor”, que remetem à esfera religiosa, e “a boa fada que preside os destinos de todos nós”, que reforça a alusão a entidades míticas.

Além disso, observamos o uso do verbo presidir, que alude ao sistema de governo brasileiro, o presidencialismo.

Dessa forma, devido às suas características pessoais singulares, Dona Benta constituiria uma espécie de “salvadora da pátria” vinda das elites, a grande mãe encarregada de garantir a felicidade de todos os seus “filhos”, habitantes das terras que preside. As palavras de Tia Nastácia, na mesma passagem em que Quindim, Mister Kalamazoo e Mister Champignon elogiam Dona Benta, reforçam o caráter afetivo da ligação de Dona Benta com seus liderados: “Discurso não sei fazer, porque não tenho

estudos. Dizer coisas bonitas sobre Dona Benta também não sei. Só sei beijar a mão dela. — E correu, com os olhos rasos de lágrimas, a beijar a mão de Dona Benta” (Idem, p. 184).

A expressão de afeto de Tia Nastácia, pelo ato de beijar as mãos de sua patroa, além de mostrar o modo subjetivo como Dona Benta conduz seu Sítio, também remete a símbolos de subserviência, em que o povo beija a mão dos poderosos. Tal costume se podia, à época, observar nas relações hierárquicas sociais no Brasil rural — com o beija-mão aos grandes fazendeiros e coronéis — e na reverência a autoridades eclesiásticas — com o ato de beijar-lhes os anéis.

Assim, em síntese, a liderança de Dona Benta legitima-se ao longo das obras que compõem o universo ficcional do Sítio por vários caminhos. O mais óbvio, do ponto de vista do capitalismo, é o fato de que ela é a proprietária e, portanto, teria plenos poderes sobre suas terras. No entanto, não é por esse caminho, o da alegação truculenta da posse, que ela constrói sua liderança. Também não recorre ao fato de ser a avó de Narizinho e de Pedrinho para exercer autoridade. Pelo contrário: Dona Benta se faz admirada e respeitada pela sua erudição e por seu caráter democrático. Ao ouvir as opiniões alheias sobre os mais diversos assuntos, prepara o ambiente propício para se fazer ouvir. Convidando os netos e outros habitantes do Sítio para a reflexão conjunta e necessária para a solução dos problemas que vão surgindo e mediando opiniões conflitantes, constrói o efeito de simetria entre ela e os seus interlocutores — daí o fato de ser considerada uma líder democrática carismática. Seu modelo de liderança, contudo, em certos pontos, não foge muito do perfil dos líderes políticos da

época de publicação no que se refere à mistificação de suas qualidades pessoais, como o que ocorria, por exemplo, em relação a Getúlio Vargas.67