• Nenhum resultado encontrado

As relações com os hóspedes estrangeiros: o verniz da cordialidade

4.1 As fronteiras da “nação” de Dona Benta

4.1.1 As relações com os hóspedes estrangeiros: o verniz da cordialidade

Na sequência do enredo de O Picapau Amarelo, no entanto, há um único personagem a quem é concedida a deferência de se hospedar, temporariamente, no Sítio: trata-se de Dom Quixote, que já estava acostumado a hospedarias. Era muito bem-vindo, especialmente porque Emília considerava “[...] Dom Quixote o suco dos sucos. A loucura chegou ali e parou. Adoro os loucos. São as únicas gentes interessantes que há no mundo” (LOBATO, 2010c, p. 24). O hóspede, dessa forma, serve como divertimento pelo seu caráter exótico. Na narrativa, também é útil para marcar a valorização da culinária local e da vida que se levava no Sítio, como podemos observar no excerto abaixo:

Nesse momento Tia Nastácia entrou com a bandeja de café com mistura — bolinhos, torradas, pipocas. Dom Quixote tomou três xícaras de café, comeu doze bolinhos, seis torradas e uma peneirada de pipocas. [...] Aquilo lhe fez bem, porque logo em seguida cruzou as pernas, abriu os braços e, com as mãos seguras nos punhos da rede, disse, correndo os olhos pela varanda:

— Não há dúvida, não há dúvida! A vidinha aqui é bem boa... (LOBATO, 2010c, p. 30)

O trecho não mostra apenas a hospitalidade com que Dom Quixote é recebido, mas também é uma das muitas passagens em que se exaltam os dotes culinários da personagem Tia Nastácia e, por extensão, a culinária típica. Além de ser elogiosa quanto à qualidade de vida no Sítio, há um jogo duplo de relação com o elemento estrangeiro. Isso porque, ao mesmo tempo em que Dom Quixote é visto como elemento exótico, e por isso lhe é dada hospedagem privilegiada, também se pode dizer que o

Sítio — e, por extensão, os seus habitantes — são vistos pelo ângulo do exotismo, mas no sentido do olhar do explorador, que procura o melhor modo de se acomodar naquele espaço. A metáfora do explorador é concretizada, no trecho, pelos modos como o personagem Dom Quixote procede à comilança, como se acomoda na rede, como observa o seu entorno e como resume sua experiência. Nesse resumo, o fato de repetir a expressão “não há dúvida” reitera seu caráter exploratório: se, para Dom Quixote, havia dúvidas antes quanto à qualidade de vida no lugar ao qual acaba de chegar, com a acolhida tão servil, elas se dissiparam.

Além disso, a questão da cordialidade, uma das marcas que fazem parte da estereotipia do brasileiro, também encontra representação nesse trecho. A figura do “homem cordial”, segundo Sérgio Buarque de Holanda, não está, como poderia sugerir a expressão, ligada exclusivamente a questões de civilidade e de polidez como elementos vindos de uma educação externa, como refinamento, mas a características mais profundamente enraizadas em nossa cultura, frutos das relações estabelecidas no Brasil rural. Nas palavras do autor:

Já disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade — daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade, há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir- se em mandamentos e em sentenças. (HOLANDA, 2002, p. 146 - 147, grifos do autor)

É justamente esse “fundo emotivo rico e transbordante” que parece ser representando nesta e em outras atitudes dos moradores do Sítio em relação aos habitantes estrangeiros. Justamente pela sua emotividade transbordante é que as relações são tensionadas: a polidez com que recebem Dom Quixote vem ao encontro do que descreve Sérgio Buarque de Holanda acerca da cordialidade, que se caracteriza por um comportamento de superfície, epidérmico: na verdade, tratam-no assim por interesses — é uma figura que parece interessante para Emília, é lisonjeira para Tia Nastácia, é motivo de divertimento, pelo exotismo, para os outros habitantes. Além

disso, por se tratar de uma “figura ilustre”, hospedá-lo, para Dona Benta, não deixa de ser uma forma de ostentar certo status. Tanto que, pela demora do hóspede, Dom Quixote teria “[...] caído no que Emília chamava ‘lambança’. Cafezinhos a toda hora, redinha de Dona Benta, almoço, jantar, cama — e divertimentos [...]. O caso entrou a preocupar Dona Benta” (LOBATO, 2010c, p. 75). Quando o hóspede decide ir embora, por três vezes Dona Benta faz mesuras, lamentando a partida. A terceira delas é assim expressa:

Dona Benta respondeu com terceirinha mentirinha, muito bem vestida à moda de antes:

— Pois isso grandemente me dói, Senhor Quixote. A honra de tê-lo em minha humilde choupana é das mais subidas, e o conhecimento travado só serviu para confirmar-me na alta ideia que sempre fiz do mais nobre dos cavaleiros andantes. (LOBATO, 2010 a, p. 76, grifo nosso)

Essa resposta de Dona Benta, “a terceirinha mentirinha”, mostra claramente a contradição da cordialidade e da hospitalidade. A resposta de Dona Benta que lemos no excerto destacado mostra a artificialidade dessas relações e, ao mesmo tempo, o quanto elas serviam para a manutenção de aparências.

Em relação aos rapapés e mesuras no contato com os estrangeiros, também o vemos em Memórias de Emília. Em relação a essa obra, devemos pontuar o comportamento de certo modo hipócrita tanto por parte de Dona Benta quanto do Almirante Brown, que trouxera as crianças ao Sítio. Depois de andarem pelo Sítio — imensamente elogiado pelo “estrangeiro” — o Almirante, ao ouvir de Dona Benta sobre o Burro falante, pensa “Pobre velha! Visivelmente está caduca” (LOBATO, 2007a, p. 41), desqualificando-a. Por seu turno, na despedida aos ingleses, Dona Benta, após pronunciar inflamado discurso de agradecimento e de recomendações à Rainha, pede a Tia Nastácia que trouxesse uma bacia de água e sal, pois, em suas palavras, os “[...] tais shake-hands desta inglesada escangalharam com a minha pobre mão...” (Idem, p. 71). Dessa forma, como dissemos, por detrás da postura elogiosa, percebemos que a cordialidade não passa de uma fachada de polidez que serve tanto para que não se promova o isolamento do Sítio quanto para que se preservem, por meio desse “verniz protetor”, as características individuais dos personagens, especialmente de Dona Benta, que é a personagem que melhor usa esse verniz. Esse caráter dual da cordialidade aproxima-se do que nos diz Holanda acerca da cordialidade dos brasileiros:

Ela pode iludir na aparência — e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no ‘homem cordial’: é a forma natural que se converteu em forma. Além disso, a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade (HOLANDA, 2002, p. 147).

No entanto, nem sempre esse verniz nas relações com os estrangeiros que desembarcam no Sítio é mantido. Em Reinações de Narizinho, por exemplo, Emília briga ferozmente com Gato Félix (que, na verdade, era um falsário que se fazia passar pelo aclamado personagem do cinema). Nessa briga, os dois trocam ofensas, como “Era só o que me faltava, o célebre Gato Félix ter inveja duma boneca de pano feita por uma negra velha”. (LOBATO, 2007b, p. 151) ou “Você não é americano, nem nasceu em nenhum arranha-céu, nem foi engolido por tubarão nenhum” (Ibidem). Como podemos ler nos excertos, as ofensas atacam as origens de ambos personagens, desqualificando-as.

Outros exemplos de rompimento com a ideia do senso comum acerca da cordialidade frente às visitas estrangeiras ocorrem em Memórias de Emília. Ao mesmo tempo em que se registram rapapés e mesuras, há também duelos verbais e corporais. Esse embate se dá, por exemplo, na briga de Pedrinho com Popeye para que este não roubasse o anjo Flor das Alturas que Emília trouxe do céu. Também ocorre quando Emília, Visconde, Narizinho e Pedrinho escondem o Anjinho das crianças inglesas que visitam o Sítio, especialmente para o ver, a fim de que não o furtassem. Tentam enganá-las, fantasiando Visconde de anjo, no que não obtêm sucesso, ainda que Emília tentasse contra-argumentar. Peter Pan intervém a favor das crianças inglesas, gerando o seguinte diálogo nada amistoso com Pedrinho:

— Se for assim — tornou Peter Pan — ou vocês nos mostram o anjinho verdadeiro, ou nós damos uma busca em regra neste Sítio até o descobrirmos. Pedrinho encheu-se de coragem e disse com voz firme:

— Nós estamos em nossa casa e saberemos defendê-la contra tudo e contra

todos. Quem manda aqui no Sítio sou eu — depois de vovó. Por bem a coisa vai,

Senhor Pan, mas por mal a coisa não vai, não! Nem a pau! Nem a tiro de revólver. Lembre-se que o Almirante Brown está como refém lá na sala de vovó. A vida daquele velho nos foi confiada em garantia do bom comportamento de vocês...(LOBATO, 2007a, p. 32-33, grifo nosso).

No trecho citado, a reação do personagem Pedrinho frente a uma provável invasão do elemento por meio da “busca” que fariam no Sítio é nada amistosa. O comportamento do menino evidencia as questões de propriedade, de hierarquia e de possibilidade de emprego de força bruta — paus, tiros e uso de refém — na defesa de seu território.

Mais adiante, no mesmo capítulo de Memórias, Emília briga com a personagem

Alice do País das Maravilhas. A personagem viera no mesmo navio das crianças inglesas e que dizia que o Sítio não era local digno de um anjinho, com sua “[...] casa velha, estas árvores tortas por aqui, aquele leitão lá longe nos espiando [...]” (LOBATO, 2007a, p. 34). O local correto, para Alice, seria Londres. Trava-se, assim, a partir da desqualificação do Sítio um confronto entre ambas, cada qual apresentando seus argumentos favoráveis a sua “pátria”.