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Jeca no olho do furacão: o nacionalismo lobatiano no vórtice da denúncia

2.2 O nacionalismo de Monteiro Lobato: o modernismo antimodernista

2.2.1 Jeca no olho do furacão: o nacionalismo lobatiano no vórtice da denúncia

O primeiro texto do autor que alcança grande repercussão data de 1914, época em que ainda vivia na fazenda que herdara de seu avô. Trata-se do conhecido texto intitulado Uma velha Praga, enviado para a seção Queixas e Reclamações do jornal O

Estado de S. Paulo e deslocado para o corpo principal da publicação. Tal carta versava sobre a indignação de Lobato frente ao hábito das queimadas. Exortando o país a olhar para seu interior e já dando mostras do nacionalismo que lhe seria peculiar, o texto inicia-se com o seguinte alerta:

Andam todos em nossa terra por tal forma estonteados com as proezas infernais dos belacíssimos ‘vons’ alemães, que não sobram olhos para enxergar males caseiros. Venha, pois, uma voz do sertão dizer às gentes da cidade que se há lá fora o fogo da guerra lavra implacável, fogo não menos destruidor devasta nossas matas, com furor não menos germânico (LOBATO, 2009, p. 159).

A alusão à preocupação com a I Guerra, iniciada naquele ano de 1914, acrescida do lugar de enunciação do artigo — a “voz do sertão” mencionada no excerto é a própria voz de Lobato — ancora o texto espacial e temporalmente. Já a necessidade de deslocamento dos olhares da cidade para o campo, deixando de ter os olhos fixos na Europa, de onde todos os modelos eram importados ou, na acepção de Lobato, macaqueados, aponta para um dos traços do nacionalismo do autor: a interiorização do Brasil em detrimento da europeização. Essa característica também se vê ressaltada na seguinte afirmação de Uma velha praga21: “Preocupa à nossa gente

civilizada o conhecer em quanto fica na Europa por dia, em francos e cêntimos, um soldado em guerra; mas ninguém cuida de calcular os prejuízos de toda sorte advindos de uma assombrosa queima destas” (LOBATO, 2009, p. 160). Para o iconoclasta signatário do artigo, incomoda o fato de a opinião pública no Brasil devotar sua atenção para os acontecimentos no continente europeu, voltando-se para o Atlântico e dando as costas para o interior, cuja situação, em decorrência das queimadas, igualmente ao contexto da guerra, “[...] daria algarismos de apavorar [...]”. E, no mesmo período, alfineta: “[...] infelizmente no Brasil subtrai-se; somar ninguém soma” (Ibidem).

Na continuação do artigo, já encontramos as raízes de sua primeira grande polêmica — a criação do personagem Jeca Tatu — uma vez que culpa o caboclo e sua indolência pelo esgotamento das terras devido a essa prática. Essa relação entre os dois textos é exposta por Azevedo, Camargos e Sacchetta da seguinte forma:

‘Uma velha praga’ foi a faísca que faria alastrar o fogo da revolta lobatiana. Pouco mais de um mês depois ele publica outro artigo, ‘Urupês’, de 23 de dezembro, fixando o personagem-símbolo não só de sua obra, mas de toda uma fase da literatura brasileira: Jeca Tatu. (AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1997, p. 58).

O trecho citado reitera, mais uma vez, a importância de Lobato no contexto literário da época ao afirmar que Jeca Tatu constitui-se em um personagem-símbolo da fase da literatura brasileira em que se insere. Além disso, destacamos que, ao se deter mais demoradamente na imagem do caboclo (ou caipira) no segundo texto, Lobato não só amplia a caracterização do personagem22, mas principalmente insurge-se contra a

visão idealizada, idílica que alguns literatos urbanos faziam do ambiente rural e de seus habitantes. Esse personagem-símbolo — que viria destronar, ato não instantâneo nem isento de polêmicas, o caboclo heroicizado sob as mesmas lentes desfocadas dos ideais românticos23— foi pintado em fortes cores: rudimentar, preguiçoso, desprovido

de criatividade, resignado, incapaz de engajar-se ao processo (e ao progresso) civilizatório. Enfim, tratava-se, nas palavras do autor, de um ser que contrastava com o modo como o Brasil era representado à época, metonimicamente reduzido à fauna e à flora:

No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos derramam feitiços no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro, abre a dança dos tangarás; onde há abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em ascachoo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar

silencioso no silêncio das grotas (LOBATO, 2009, p. 177, grifo nosso).

Percebemos, no excerto, a alusão ao ambiente natural brasileiro, descrito à moda romântica, a contrastar com a figura do caboclo. Enquanto à primeira são relacionadas ideias de luminosidade, fecundidade, amplidão e ação, ao segundo

22 Essa ampliação se dá na medida em que “Lobato acentua a ignorância e a preguiça do habitante do

interior, caracterizando-o como ‘sacerdote da lei do menor esforço’, aquele que vive do que a natureza dá, sem gastar energia para alcançar qualquer objetivo na vida” (AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1997, p. 58).

23 Essa representação do caboclo, evidentemente, não foi aceita de forma pacífica. Pelo contrário,

instaurou-se grande polêmica acerca de “Urupês” e de Jeca Tatu. Várias personalidades da época manifestaram-se estupefatas, ultrajadas e, portanto, profundamente contrárias à tal representação do caipira empreendida por Lobato. Porém, tais reações, inclusive as travadas no campo literário, não foram bem sucedidas. Isso porque, segundo Azevedo, Camargos e Sacchetta (2007, p. 61), como reação à criação de Lobato, “[...] pipocaram versões redentoras, como o Mané Chique-Chique, de Ildefonso Albano, ou o Juca Leão, de Rocha Pombo. Imagens robustas e virtuosas de um caboclo anti-Jeca, que não encontrariam eco e pereceriam na memória popular”. Enquanto isso, a figura de Jeca Tatu ainda permeia o imaginário nacional, transformando-se até mesmo em adjetivo, popularização ocorrida especialmente após o lançamento de filmes, nas décadas de 1950 a 1980, por Mazzaropi, que incorporava o típico caipira, também denominado Jeca, com títulos como “Jeca Tatu” , “A tristeza de Jeca”, “O Jeca e a freira”, “O Jeca Macumbeiro”, “Jeca contra o capeta” e “Jeca e seu filho preto”. Embora as obras cinematográficas citadas não sejam baseadas na obra de Lobato, não se pode negar a inspiração inicial no personagem de Urupês. Assim, ainda que sua autoria possa estar, em determinados segmentos da sociedade, apagada, de certa forma, pela incorporação à cultura popular, sublinha a sua importância.

relacionam-se ideias de escuridão, reclusão e finitude. Esse modo de representar o caboclo exemplifica, assim como também o fazem a famosa crítica a Anita Malfati (1917) e, mais tarde, os diversos e incisivos artigos que defendiam a exploração do petróleo no Brasil por brasileiros, o seu “[...] estilo iconoclasta e desmistificador com que expunha todos os problemas brasileiros”. (LANDERS, 1988, p. 25). Esse estilo conclamava os leitores a abandonar a ideia anterior que tinham acerca do caboclo, que era, nas palavras de Lobato em carta de 1916 a Godofredo Rangel,

[...] o menino Jesus étnico que todos acham engraçadíssimo, mas ninguém estuda com realidade. O caipira estilizado das palhaçadas teatrais fez com que o Brasil nunca pusesse tento nos milhões de pobres criaturas humanas residuais e sub-raciais que abarrotam o Interior. Todos as têm como enfeites de paisagem — como os anões de barro de certos jardins da pauliceia. (LOBATO, 1959, v. II, p. 68)

As palavras de Lobato a Rangel, transcritas no excerto anterior, denotam a necessidade de derrubar mitos arraigados como o que se expõe acerca do caboclo. Além dessa necessidade de destronar mitos, a criação de Jeca Tatu estava intimamente relacionada a motivações pessoais de Lobato, como uma espécie de “vingança de fazendeiro fracassado”, uma vez que o autor acreditava que os “[...] contos ajudam a nos vingar de pequenos e miseráveis desafetos” (SANTIAGO, 2006, p. 272). Silviano Santiago também cita a explicação de Sérgio Milliet para o caso, a qual é contundente: “o Jeca Tatu é quase uma vingança pessoal; é o caboclo visto com o olhar azedo do fazendeiro malogrado” (Ibidem).

Mais tarde, em 1918, com a publicação da obra Urupês e com a citação de Jeca Tatu nos discursos da campanha eleitoral de Rui Barbosa, as discussões em torno do personagem são retomadas e, ato contínuo, reaproveitadas como mote inicial de campanhas de saneamento, que logo são apoiadas por Lobato24. Nesse contexto, o autor torna-se amigo do sanitarista Artur Neiva, com quem passa a trocar correspondência.

Devido a todas as polêmicas a partir da criação de Jeca Tatu, ao mesmo tempo que Lobato passa a ser reconhecido nacionalmente, também angaria diversos

24 Acerca das necessidades de saneamento, Lobato, segundo Nunes (2000, p. 12), “[...] apoia logo a

Campanha Pró-Saneamento, de Belisário Pena, numa série de artigos veementes, logo reunidos em um volume que ganhou o título de O problema vital.”

adversários ideológicos.25 No entanto, o fato que mesmo seus adversários não

poderiam negar é que as denúncias do status quo promovidas pelo autor foram o estopim de uma mudança de foco e de mentalidade em relação aos problemas nacionais, antecipando as tendências que os chamados modernistas da geração de 1930 seguirão mais tarde, com tendências neorregionalistas e neorrealistas.

De acordo com Silviano Santiago, foi justamente essa polêmica em torno da figura de Jeca Tatu, juntamente com o objetivo de “[...] querer proporcionar condições para que o parasita Jeca Tatu prestasse” (SANTIAGO, 2006, p. 276), que rendeu a Lobato a fama precoce. Na opinião de Santiago, embora Lobato posasse de libertador do povo, era injusto e impiedoso para com esse mesmo povo. Isso porque, segundo as palavras do crítico:

Lobato se esqueceu de que ele — e demais latifundiários amigos — eram os verdadeiros parasitas dos antepassados dos demais agregados, como o tinham sido dos velhos escravos. É na condição de também parasita que competia a ele diagnosticar os males do caboclo-parasita. Os defeitos do explorador do trabalho alheio (do latifundiário) se escondem para que mais salientem a indolência do explorado (do caboclo). (Idem, p. 277).

As afirmações de Santiago pontuam as tensões entre as classes sociais e recupera as arraigadas relações de exploração do trabalhador do campo, invertendo a lógica de parasita e parasitado que Lobato estabeleceu em suas obras. Na visão do crítico, com a qual concordamos, o parasita, na verdade, seria a classe dominante, que depende do trabalho dos parasitados — “o escravo, o trabalhador, o proletário” e, por extensão, “a nação” (Idem, p. 279). A inversão desse entendimento quanto a quem explora e a quem é explorado, como o faz Lobato, envolto na ideologia de seu lugar e de seu tempo, configura-se como um empecilho para o real desenvolvimento do país, entendendo-se que isso só pode ser conseguido com êxito quando se chegar ao equilíbrio social. A visão de Lobato, portanto, por mais que se autoapregoe como

25 Em 1947, um ano antes de falecer, Monteiro Lobato escreve Zé Brasil, obra que “[...] representa uma

autocrítica” (LAJOLO, 2000, p. 81) em relação ao texto de 1914, que “[...] não tinha sabido entender a dimensão econômica do problema agrário brasileiro” (Ibidem). Além disso, Lajolo ainda afirma: “Zé Brasil corrige também o outro Monteiro Lobato que, nos anos 20, no meio de campanhas pela saúde pública, avança a questão, mas não chega a atinar que o problema das péssimas condições de saúde do Jeca era decorrente da infraestrutura brasileira. Nesta última versão, de 1947, o Jeca se metaforiza em Zé Brasil, camponês sem terra e cuja única esperança reside no Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos Prestes”.

desenvolvimentista e trace estratégias para tanto, seria incapaz de promover o bem- estar social a que tanto almeja, uma vez que as estruturas sociais injustas se repetiriam continuamente. No máximo, o que aconteceria seria a substituição de uma classe de exploradores por outra mais competente em dominar, mantendo-se o sistema de oligarquias dominantes. É o que nos aponta Antonio Candido quanto ao continuísmo, como forma de manter as mesmas estruturas: mesmo que haja a mudança de agentes, “[...] nunca se criam as condições para o trabalho realmente livre, que permite o bem- estar e o equilíbrio social” (CANDIDO, 1993, p. 138).

No entanto, não se trata de culpabilizar Lobato. Tal postura crítica do autor taubateano — e até mesmo excessivamente impiedosa e impregnada do olhar do proprietário rural que se considerava atingido por tais comportamentos arraigados dos caboclos — pode ser entendida à luz do contexto social brasileiro após 1910 e da iminência da I Guerra Mundial (1914-1918). Trata-se de uma época profundamente contraditória, em que, segundo Ettore Finazzi-Agrò, a sociedade brasileira exaltava o progresso e as ciências e dispunha de múltiplos espaços em que se poderia estabelecer o diálogo ou o intercâmbio social, constituindo o clima propício e o momento crucial para se iniciar a democratização — em sentido pleno — do país. No entanto, a sociedade ficou “[...] presa dentro de um vórtice de intenções falhadas, de desejos irrealizados, que provocaram uma espécie de implosão ideológica e social até hoje não resolvida” (FINAZZI-AGRÒ, 2000, p. 18, grifo nosso). Essas “intenções falhadas” de que fala o referido crítico também atingem os escritores e demais intelectuais da época, a exemplo de Monteiro Lobato, que, ainda de acordo com Finazzi-Agrò, frequentemente assumiam o papel de defensores convictos do progresso, anunciando novos tempos. No entanto, tal papel, quando não modificado, tem sua importância relativizada frente aos posteriores desdobramentos na vida prática, que mostram os caminhos contrários à igualdade que o desenvolvimentismo em uma sociedade calcada em modelos oligárquicos e capitalistas acaba por tomar.

Em relação ao papel que os escritores e demais intelectuais exerciam nessa época de afirmação do sistema republicano, de acordo com o que nos explica Yunes (1982, p. 21), era-lhes justamente apropriado “[...] para o debate dos temas críticos, tais como a criação da nacionalidade e o estudo científico da realidade brasileira”. Ou seja,

nesse momento crucial e contraditório, aflorava a discussão sobre a questão nacional, cabendo a uma parcela dessa geração de intelectuais a criação e a fixação da nacionalidade brasileira. O ambiente seria propício para o desdobramento de tais tarefas, uma vez que o campo estava preparado por seus antecessores, que também orquestraram ações politicamente complexas: a Indepedência, a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República. No entanto, segundo Santiago, “[...] tocou a Lobato começar a vida profissional numa época de ‘bestializados’” (2006, p. 275, grifo do autor), referindo-se à expressão cunhada por Aristides Lobo, como já explicitamos anteriormente.

É dupla, pois, a tarefa em que Lobato mostra-se engajado quando é apontado como nacionalista: de um lado, elaborar e defender estratégias práticas para tirar o país do atraso; de outro, participar da criação do substrato cultural para que o povo brasileiro se reconheça como tal, caminho que, para ele, passava, necessariamente, pela educação, mediante sua literatura infantil, que promoveria senão o resgate de tradições do Brasil pelo menos as do Sudeste agrário.26 Em ambas as missões, seu fazer literário

está entrelaçado, porém se observa que sua literatura destinada ao público adulto articula-se mais à primeira tarefa, ao passo que suas obras infantis parecem mais inclinadas à segunda, embora não sejam empreendimentos desassociados e excludentes. Pelo contrário: na tarefa lobatiana de alavancar o processo desenvolvimentista no Brasil, eram necessários tantos os elementos práticos e objetivos quanto os subjetivos, da constituição do sentimento de brasilidade.

Essa postura levou o autor a antecipar várias temáticas que serão exploradas pelos modernistas e que caracterizam seu nacionalismo. Certamente, a que mais salta aos olhos, tanto em suas obras quanto em seus atos na vida prática, é o fato de querer reverter a situação de atraso brasileiro nas mais diversas áreas a partir das potencialidades culturais, sociais e econômicas que Lobato entrevia no país sem, contudo, sacralizá-las. Landers, em capítulo sobre o nacionalismo lobatiano, faz o seguinte alerta inicial aos seus leitores, o qual ratificamos:

26 Muitos dos culturais que são retratados nas obras infantis lobatianas — como elementos do folclore, da

culinária — são originários do Sudeste do Brasil, mas acabam, metonimicamente, sendo tomados como se fossem recorrentes em todo o país.

É preciso desde já compreender a composição peculiar de seu nacionalismo que foi de superficial entusiasmo sobre o Brasil, de intenso pessimismo e de absoluta iconoclastia se quisermos compará-lo, por exemplo, ao nacionalismo otimista de um Olavo Bilac naquele mesmo ano de 1916 (LANDERS, 1988, p. 176).

A peculiaridade do nacionalismo de Lobato aludida no excerto diz respeito à postura contrastante do autor em relação aos seus contemporâneos. Esse contraste ideológico evidencia-se especialmente em relação às propostas de Bilac, que expressam uma visão totalmente idealizada do país, apartada da realidade circundante, como bem representam, por exemplo, seu conhecido poema intitulado A Pátria ou a letra do Hino à Bandeira, também de sua autoria. Ambos os textos retratam, em seus versos, uma imagem do país muito semelhante à que se queria propagar já no Romantismo, como um Éden perdido na América Latina, o locus amenus que deveria ser imitado em sua grandeza pelas crianças nascidas em suas terras. Lobato, ao contrário, no lugar de cantar a idealização da República implantada em 15 de novembro de 1889, como o faziam Bilac e seus seguidores, constrói ficcionalmente, a partir de 1920 e ao longo de sua obra infantil, o seu projeto de nação ideal, livre e democrática. Dessa forma, o nacionalismo lobatiano, como vimos, assume uma postura radicalmente oposta às tendências nacionalistas das duas primeiras décadas do século XX, representando a realidade nacional sob ângulos realistas, com vistas a, a partir desse choque, buscar alternativas de solução para os problemas nacionais.