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Considerações parciais: um universo ficcional em construção

Embora o Saci seja, como aponta Camargos (2010), um símbolo de resistência ao apagamento de traços identitários, não podemos dizer que esse movimento de reação tenha logrado êxito ou absoluto fracasso. O que é possível afirmar é que o estranhamento e as polêmicas em que Lobato e suas obras envolveram-se devem-se, em grande parte, às antecipações dos debates acerca dessas questões identitárias das quais se falou ao longo deste capítulo.

Ainda que a obra O Saci dê o tom da construção do universo do Sítio do Picapau Amarelo, ela é, nesse conjunto, o segundo passo de um universo em construção. Nesse status de construção, de processo inacabado, as obras, que atravessam e são atravessadas pelos acontecimentos pontuais de seus contextos enunciativos, as representações dos traços identitários nacionais e a construção da nação idealizada não se dão nos mesmos parâmetros no decorrer de todas as obras infantis de Lobato. Além disso, o que entendemos por traços identificadores da nação, na verdade, são muito mais reflexos da região e da época da origem de Lobato — o Sudeste agrário, cafeicultor — do que na nação em si, em um processo metonímico, uma vez que se representa uma parte pensando representar o todo. Essa representação do todo, como nos cabe dizer, também seria tarefa equivocada, uma vez que esse todo não é possível de se abarcar — a menos que se assumam as implicações de uma visão reducionista.

Devemos considerar, assim, essas representações do Brasil, dos brasileiros e da nação ideal sob a ótica da transição. Afinal, como pontua Campos (1986), as obras infantis de Lobato, à medida que são publicadas, representam diversos estágios da passagem do Brasil predominantemente agrário para o Brasil mais industrializado. Cada obra representa um momento diferente desse processo, de acordo com a percepção individual do autor. Com isso, mostram os variados caminhos para os quais se dirigem as ideias de Lobato acerca da nação, que não tinha um plano firmemente traçado, mas o alicerce em ideias gerais de democracia, de liberdade, de igualdade, de justiça e de desenvolvimentismo.

Além disso, o nacionalismo da primeira obra de Lobato, O Saci-Pererê: resultado

muitas passagens das obras subsequentes —, engendra-se, de certo modo, pela fórmula da subtração, nos termos postulados por Roberto Schwarz (1987) em seu texto intitulado Nacional por subtração: excluídos os elementos estrangeiros, o que sobraria seria o estritamente nacional. Isso ocorre justamente pelos contornos de “resistência nacionalista” que a citada obra assume, na busca por, na expressão de Schwarz (1987, p. 32), “um fundo nacional genuíno”.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se buscava essa genuinidade, conforme nos mostra Lajolo, em seu artigo intitulado Anõezinhos fora do lugar, a obra O Saci-

Pererê: resultado de um inquérito, na sua primeira edição, agregava às suas páginas propagandas de máquinas fotográficas e de escrever, materiais de origem estrangeira. A incorporação de tais materiais publicitários revela, segundo a autora, que

A figura do saci, em tantos depoimentos estigmatizada pelo provincianismo que a marca, mas ainda assim proposta como alternativa brasileira à mitologia europeia , quando vende a máquina de escrever e o material fotográfico vende uma tecnologia que além de emblema de modernidade, representa uma modernidade tão importada e tão estrangeira quanto os pobres anõezinhos de jardim que deram origem a toda a história, acusados de serem anõezinhos fora do lugar ...51

Dessa forma, o caráter multifacetado e muitas vezes paradoxal das obras infantis de Monteiro Lobato vem na esteira das contradições profundas existentes na sociedade brasileira, que não se restringem à época de enunciação. Assim, concordamos com Marisa Lajolo, quando diz que não apenas os tais anõezinhos de jardim estão fora de lugar, mas também, retomando o que nos diz Derrida (1971), não há um lugar único, um centro em que se possam situar os seres e os acontecimentos. Desse modo, nem mesmo o projeto de nação ficcional e idealizada de Lobato é algo imutável, centrado, delimitado. O Sítio — e, em seu bojo, as representações do Brasil — é elástico e permeável. No entanto, devemos reconhecer que existem algumas diretrizes que, de variadas maneiras, atualizam-se de forma mais ou menos constante na obra, o que nos possibilita traçar as linhas gerais do projeto de nação, embora essas linhas, por vezes, constituam um tecido de tramas inusitadas.

51 Trecho do artigo intitulado “Anõezinhos fora do lugar”. Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/

4 O PROJETO LOBATIANO DE PAÍS IDEAL: A METAFÓRICA NAÇÃO DO PICAPAU AMARELO

Além das antecipações sobre a ideia de região e nação, exemplificadas, no capítulo anterior, a partir da obra O Saci, o universo ficcional do Sítio do Picapau Amarelo também dialoga precocemente com a ideia de globalização. Esse diálogo se dá especialmente ao determinar, em certa medida, a superioridade do Sítio enquanto local de acolhimento, marcado não só pelas ações dos personagens nesse sentido, mas também pelos autoelogios que encontramos em algumas partes da obra, como veremos mais adiante. Esse universo superior aos demais incorporaria o projeto idealizado de nação traçado ao longo das obras que o compõem. Esses traços, por sua vez, podem levar para outras veredas de interpretação, as quais transcendem os limites geográficos reais e literários, embrenhando-se no terreno dos “carrapichos” de memórias representadas — especialmente aquelas atreladas às lembranças das origens no meio rural. No entanto, na articulação dessas representações rurais que podem evocar memórias afetivas com a defesa das ideias desenvolvimentistas do autor, nem sempre são as primeiras que se destacam. Da mesma maneira, em prol dessa defesa, em muitos pontos das obras que compõem o universo ficcional do Sítio, a qualidade artística pode ser duramente questionada, de tão nitidamente comprometidas com objetivos extraliterários. Isso se dá especialmente nas obras da chamada “fase política” do autor (LANDERS, 1988), que se estendem até o final de sua vida. Escapariam, portanto, dessa fase as obras Reinações de Narizinho, O Saci, Caçadas

de Pedrinho.

Devemos também sublinhar os fatos de o Sítio apresentar-se como um painel do Brasil rural, especialmente das décadas de 1920 e 1930, e a boneca Emília, seu personagem mais notório, por seu turno, representar traços do brasileiro que povoa o imaginário coletivo. Uma análise mais elaborada, no entanto, apontará que os traços representativos apurados não dizem respeito apenas a questões inerentes ao que se entende, grosso modo, por “brasilidade”: abarcará conteúdos mais profundos, que dizem respeito a temas universais. Há que se pensar, então, que à aparente e estereotipada “brasilidade” subjaz a universalidade de desejos profundamente humanos

e utópicos, como a liberdade, a paz, a democracia e a igualdade. Tais desejos concretizam-se no ambiente muitas vezes idílico do Sítio, assegurados como direitos pela coerência entre o discurso e as práticas de Dona Benta.

Devido à presença do maravilhoso no cotidiano dos personagens, no ambiente rural — ainda típico do Brasil dos anos 1920 e 1930, época da produção desses textos — tudo pode acontecer. Até mesmo os elementos das culturas europeia e norte- americana, sob a forma de visitas de personagens ao Sítio, acabam sendo incorporados à narrativa. O mundo todo cabe nas fronteiras elásticas do Sítio. Essa elasticidade também acaba por alargar não só as fronteiras geográficas, mas também por expandir o universo de conhecimento e de possibilidades. Segundo Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2007), o Sítio assume caráter idílico e metafórico: territorializa o Brasil e o mundo como Lobato gostaria que fossem. Isso se confirma nas próprias palavras de Lobato, em A reforma da natureza (apud Lajolo e Zilberman, 2007, p. 55): “No dia em que o nosso planeta ficar inteirinho como é o Sítio, não só teremos paz eterna como a mais perfeita felicidade”. Também André Luiz Vieira de Campos (1986) aponta para a construção, no universo ficcional do Sítio, do projeto de um novo Brasil que Lobato não conseguira concretizar na prática, apresentando para o público leitor infantil a proposta desenvolvimentista do autor, cuja tônica é o progresso material e intelectual, pautado, muitas vezes, pelo modelo norte-americano.

O caráter idílico e metafórico de que nos falam Lajolo e Zilberman (2007) pode ser exemplificado também pelo seguinte excerto de Memórias de Emília, nas palavras das personagens Alice e Narizinho:

— Que coisa gostosa — murmurou Alice — chupar laranja-lima ao lado de um anjinho do céu que conta as coisas de lá! Estou mudando de opinião. Emília.

Estou achando que esse Sítio de Dona Benta é ainda mais gostoso que o nosso Kensington Garden lá de Londres...

— E é mesmo — observou Narizinho. — Não há lugar no mundo que valha o Sítio da vovó. Quem o vê pela primeira vez, com estas árvores velhas, todo espandorgado, não dá nada por ele. O Sítio da vovó é gostoso como um chinelo velho. (LOBATO, 2007, p. 38, grifos nossos)

Além disso, essa felicidade almejada pelo autor não seria restrita: o Sítio atua como elemento agregador, no qual todos têm espaço, aberto a moradores permanentes de diversas naturezas — desde a simpática e dócil proprietária, passando por uma

boneca atrevida, até representantes de nosso folclore — e a visitantes esporádicos, moradores de outras páginas. Um exemplo disso é encontrado no excerto anterior, em que Alice, personagem da obra Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, é incorporada ao texto. Nesse sentido, o texto de Lobato estabelece relações intertextuais bastante peculiares, na medida em que se apropria dos textos da cultura clássica, envolvendo-os no cotidiano do Sítio. É o que percebemos nas palavras de Lajolo e Zilberman (2007, p. 57): “[...] o caráter agregador do Sítio, aberto a todos indistintamente, mas, em especial, às experiências mais modernas: Dona Benta está sempre atenta ao que se passa no mundo, possui cultura invejável e não se escandaliza com a tecnologia [...]”.

Dessa forma, o Sítio é permeado por experiências que traduzem a modernidade à época de sua enunciação, espelhada não só pela linguagem renovadora adotada, como também pela apropriação de elementos da cultura internacional. Devido a essa característica intertextual, personagens tanto da cultura clássica quanto os provenientes do cinema e das histórias em quadrinhos da época acabam “desembarcando” no Sítio de Dona Benta. Nesse espaço, são inseridos em aventuras ao lado dos seus habitantes “nativos”. Desse modo, é o estrangeiro que se adapta ao local e, por meio dessa adaptação, reitera as características singulares do Sítio. Conforme Lajolo e Zilberman (2007, p.58), “[...] tanto mais moderno quanto mais rural, porque é este último fator que assegura a nacionalidade do espaço”. Isso porque, na época, a industrialização ainda era uma experiência incipiente no Brasil, se comparada ao que ocorria no contexto europeu e norte-americano. Segundo afirmam as citadas autoras, “[...] fosse ele mais urbano, e os atributos internacionais viriam à tona” (Idem, p.58). Já nessa época, percebemos a antecipação de Lobato: a consciência do processo de homogeneização cultural que a industrialização viria a promover.