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Acerca dessas intenções regionalistas das primeiras décadas do século XX, Antonio Candido afirma:

Baseado na descrição de áreas rurais pouco desenvolvidas, o regionalismo teve aspectos positivos, como destacar as culturas locais, com seus costumes e linguagem. Mas teve aspectos negativos, quando viu no homem do campo um modelo meio caricatural que o homem da cidade se felicitava por haver superado, e lhe aparecia agora como algo exótico, servindo para provar a sua própria superioridade e lhe dar um bem-estar feito de complacência (CANDIDO, 1999, p.66-67).

Na obra de Monteiro Lobato, podemos encontrar o primeiro tipo de regionalismo aludido no excerto de Candido: o destaque às culturas locais, com seus costumes e com sua mitologia própria41. Já quanto à linguagem, apesar de Lobato não aderir ao

rigor parnasiano ainda muito influente na época, não se pode dizer que o escritor retratou os falares da região que focalizou, o interior de São Paulo. Embora não tivesse o rigor formal dos parnasianos, são raras as passagens em que “se permite” algum desvio dos cânones gramaticais que efetivasse esse retrato. Nas passagens em que esse desvio ocorre, de modo geral, é quando se trata de falas de personagens que representam as camadas sociais menos favorecidas, que não tiveram acesso à, na época, elitizada e excludente educação formal.

Em algumas falas de Tia Nastácia e de Tio Barnabé, em O Saci42, observamos

esse desvio da linguagem padrão, aproximando da linguagem coloquial e regional da época e situando-os socialmente. No entanto, esses desvios não ocorrem em todas as

41 Quanto à “mitologia brasílica”, observamos que, no conjunto de obras infantis lobatianas, não é apenas

em O Saci que ela está presente, embora seja nesta obra retratada de forma mais específica. Como exemplo disso, podemos citar o trecho de O Picapau Amarelo em que o personagem Visconde, ao se deparar com a Quimera, que veio habitar as Terras Novas do Sítio, pergunta-se sobre a origem mitológica de tal ser. Em meio as suas reflexões, o personagem enuncia: “Há a mitologia grega, a mais rica de todas; há a mitologia da Índia, há a mitologia dos povos nórdicos; há até a mitologia do Brasil, na qual vemos o Saci, o Caipora, a Mula sem Cabeça, a Iara” (LOBATO, 2010b, p. 33-34, grifo nosso). O uso do operador argumentativo “até” situa, no discurso de Visconde, a existência da mitologia brasileira no patamar do inusitado, mas sem deixar de pontuá-la junto a outras mitologias mais estudadas e reconhecidas até então, passando a citar algumas das entidades que a compõem.

42 Devemos salientar que o espaço ocupado pelo personagem Tio Barnabé no universo ficcional do Sítio

falas desses personagens, além de suas participações não serem as mais frequentes, devido ao espaço que ocupam nas narrativas.

Um exemplo disso temos na seguinte fala de Tia Nastácia em Reinações de

Narizinho: “Impossível sinhá! Isso é coisa que nunca se viu. Narizinho está mangando com mecê”. (LOBATO, 2007b, v.1, p. 35, grifos nossos). O emprego do verbo “mangando” é típico das regiões Sudeste e Nordeste do país. Já “sinhá” e “mecê” são usados como pronomes de tratamento, escolhas lexicais que não só ancoram temporalmente a fala de Tia Nastácia como também a localizam socialmente, apontando para um estrato social de menor (ou nenhuma) escolarização. “Sinhá” também localiza a fala quanto ao contexto da escravidão no Sudeste e no Nordeste brasileiro. Já “mecê”, variante de “Vossa Mercê”, além de localizar temporal e geograficamente, deixa implícita falta de acesso à cultura erudita e formal.

Quanto ao modo de falar de Tio Barnabé, que é personagem muito menos frequente que Tia Nastácia nas obras lobatianas, podemos exemplificar esses desvios por meio das seguintes falas em O Saci: “Pois Seu Pedrinho, saci é uma coisa que eu juro que ‘exéste’. [...] Quem muito ‘veve’, muito sabe”. (LOBATO, 1994, p. 13-14, grifos do autor). O próprio texto traz os verbos que se desviam da língua padrão entre aspas, destacando o que, para época de enunciação da obra, era considerado “erro”. O trecho, assim como o que citamos em relação à Tia Nastácia, situa o personagem cultural e socialmente. Essa localização do personagem se dá logo no início da obra, em que o leitor toma o primeiro contato com o personagem, já formando sua leitura sobre ele. Ainda destacamos o uso do “Seu” como pronome de tratamento antes de “Pedrinho”, que, além de popular, evidencia a assimetria de condições sociais entre os personagens.Tendo em vista a idade de Pedrinho, não seria usual tal tratamento, que denuncia certa cerimônia por parte de alguém mais velho. Esse tratamento cerimonioso é devido certamente aos fatos de o menino ser neto de Dona Benta, a proprietária do Sítio, e de ser procedente da “cidade grande”, onde mora e estuda.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que se marca o descompasso social e geográfico entre os personagens, o fato de Pedrinho recorrer a Barnabé para saber sobre o Saci e o de dirigir-se a ele como “Tio” Barnabé, assim como o faz com “Tia Nastácia, mostram uma aproximação possível entre as classes, os saberes de ordens

diferentes, as faixas etárias e o campo e a cidade. Também cabe destacar, em relação ao contexto de produção da obra lobatiana, que, sendo as obras voltadas às crianças e ao uso escolar, caso a narrativa se apropriasse de falares regionais e populares em maior número, contrariando os cânones gramaticais, as obras poderiam ser consideradas inadequadas para tal uso (e comercialização), tendo em vista os preceitos pedagógicos e o desenvolvimento dos estudos linguísticos da época. Em outras palavras, caso houvesse o registro de mais desvios do cânone, poder-se-ia dizer, à época, que as obras seriam “más influências” para as crianças, pois as estariam ensinando a escrever “errado”.

Além disso, observamos o registro da fala da personagem Tia Nastácia carregada de expressões regionais, de vocábulos temporalmente marcados e de desvios da norma padrão como modo de representar o contraste entre realidades sociais diferentes. É o que ocorre, por exemplo, em Viagem ao céu. Quando Tia Nastácia se apresenta a São Jorge, santo do qual é devota, ela assim se descreve:

— São Jorge, me perdoe — disse ela com voz atrapalhada. — Sou uma pobre negra que nunca fez outra coisa na vida senão trabalhar na cozinha para Dona Benta e estes seus netos, que são as crianças mais reinadeiras do mundo. Eles me enganaram com uma história de rapé do Coronel Teodorico, o compadre lá de Sinhá Benta, e me fizeram cheirar um pó que mais parece arte do canhoto. Agora a pobre de mim está aqui nesta Lua tão perigosa, sem saber o que fazer nem o que pensar. Minha cabeça está que nem roda de moinho, virando, virando. Por isso rogo a São Jorge que me perdoe se minhas humildes respostas não forem da competência e da fisolustria de um santo da corte celeste de tamanha

prepotência. (LOBATO, 2010c, p. 47, grifos nossos).

As palavras de Tia Nastácia mostram a assimetria em relação ao seu interlocutor, colocando-se claramente em posição de inferioridade. Na mesma fala, por duas vezes autointitula-se como “pobre”: “pobre negra” e “a pobre de mim”. Já as expressões grifadas “reinadeiras”, Sinhá”, “arte do canhoto”, “que nem”, “fisolustria”, a comparação com a “roda de moinho” e as inadequações nos empregos dos vocábulos “competência” e “prepotência”, além de caracterizarem social e culturalmente a personagem, também ancoram o texto do ponto de vista espacial e temporal. Em relação à ancoragem social, o comentário que segue o excerto em análise é revelador:

Todos riram-se [sic]. A pobre preta achava que diante dos poderosos era de bom- tom ‘falar difícil’, e sempre que queria falar difícil vinha com aquelas três palavras, ‘competência’, ‘prepotência’ e ‘fisolustria’. Ela ignorava o significado dessas coisas, mas considerava-as uns enfeites obrigatórios na ‘linguagem difícil’, como a cartola e as luvas de pelica que os homens importantes usam em certas solenidades. (LOBATO, 2010c, p. 47, grifos originais.)

O “falar difícil”, marcado pelos três vocábulos grifados originalmente no texto e os modos de vestir, representados pela cartola e pelas luvas de pelica, mostram as tensões entre estratos sociais e o desejo das pessoas de classes menos favorecidas de, pelo menos, ao se dirigirem aos poderosos, tentarem adequar-se. O fato de todos os presentes — inclusive os netos de Dona Benta — rirem do modo como a empregada expressou-se também demonstra não só o descompasso entre os trabalhadores mais humildes, provenientes do meio rural, e aqueles que tiveram acesso à instrução formal mas também o desrespeito e o preconceito linguístico.

Essas tensões apontam para o fato de que a expressão de regionalismos não se configura de forma tão simples. Como afirma Lígia Chiappini (1997), o que se considera regionalismo envolve, em uma primeira análise, peculiaridades, costumes, crendices, superstições e modismos vinculados a uma região, especialmente no que tange ao espaço rural, em constante tensão com o espaço urbano. Além desse par tensionado, outros pares constituintes do regionalismo seriam os conceitos de nação e região, oralidade e escrita, visão nostálgica do passado e a denúncia das misérias do presente retratado. Mas não se trata apenas disso. Devemos considerar, conforme afirma a autora, que as representações dessas características evoluem, atravessam e são atravessadas pela história. Hoje, essas questões regionais vinculam-se à reação à homogeneidade cultural promovida pelos processos de globalização e desterritorialização, às questões ecológicas pungentes e às dificuldades de vida e de trabalho no contexto econômico neoliberal. Dessas inquietações, resultam discussões acerca da identidade, da ecologia, do conceito de nação.

Para que esse projeto seja levado a contento, ainda de acordo com Chiappini, não poderia existir a visão ingênua de se empreender a mera cópia ou registro fotográfico da região, uma vez que, tratando-se de ficção, as obras são portadoras de uma representação simbólica de uma região geográfica existente. Portanto, deveria privilegiar os espaços vividos, sentidos, internalizando a região à ficção por meio da

subjetividade. Segundo a autora, desse modo, aproximando o leitor urbano das temáticas rurais e regionais de forma a suprimir as assimetrias existentes entre eles, poder-se-ia caminhar para um processo de humanização dos leitores, tornando “[...] verossímil a fala do outro de classe e de cultura diferentes para o público citadino e preconceituoso, que, somente por meio da arte, poderá entender o diferente como eminentemente outro e, ao mesmo tempo, respeitá-lo como um mesmo: ‘homem humano’” (CHIAPPINI, 1997, p. 135).

Além desse processo humanizante aludido por Chiappini, o regionalismo também teria outras funções. Segundo Tânia Carvalhal, as múltiplas expressões de regionalismos brasileiros revelam “[...] a permanência de um processo de busca de identidade nacional que aflora, de maneira recorrente, em momentos substantivos do percurso literário” (CARVALHAL, 1997, p.35). Essa busca de identidade torna-se mais complexa na medida em que o país mostra-se extremamente poroso às influências externas, levando ao conflito entre o que é próprio e o que é alheio na cultura brasileira. Acerca desse conflito, a autora vai além, afirmando que ele “[...] reside ainda na forma como a identidade, quando definida, se legitima e se institucionaliza como própria” (Idem, p. 37). Essa legitimação passa, necessariamente, pela forma como é representada, nas suas peculiaridades, a fim de que os demais a reconheçam como distinta. Como assevera a autora:

[...] pode-se dizer que a noção de região, considerada em seu processo de constituição e de acentuação das peculiaridades locais, aproxima-se à de nação, pois que adota idênticos procedimentos de construção e de afirmação. O regionalismo aparece na ficção, sublinhando as particularidades locais e

mostrando as várias maneiras possíveis de ser brasileiro. (CARVALHAL, 1997, p.

42, grifo nosso).

Essas “maneiras possíveis de ser brasileiro”, nas palavras de Carvalhal, mostram que a expressão de regionalismos formaria um amplo mosaico que refletiria a diversidade promovida pelo processo de colonização do Brasil, que se deu em núcleos separados, “[...] em ilhas de cultura mais ou menos autônomas e diferenciadas, caracterizadas cada uma pelo seu genius loci particular” (CANDIDO, 1980, p. 295). Dessa forma, a região, além de ser representada, na literatura, como um quadro geográfico e natural, também representaria os aspectos históricos e sociais próprios

daquele local. Por isso, supera o regionalismo pitoresco por meio do componente humano, aos moldes do que, segundo Candido, fizeram os romancistas de 30, que objetivavam, por intermédio de seus protagonistas de “humanidade singular”, “[...] construir uma literatura universalmente válida [...] por meio de uma intransigente fidelidade ao local’” (Idem, p. 126). Assim, pela força das personagens, pelos dramas profundamente humanos vividos, as obras conquistam uma dimensão universal. No Modernismo, o cenário, a linguagem, os costumes e demais aspectos culturais que antes eram mostrados como pitorescos, ainda são mostrados, mas não como pitorescos, promovendo um salto qualitativo.