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O (des)envolvimento pela educação e a questão do assistencialismo

4.2 Desenvolvimentismo, dependência e globalização

4.2.2 O (des)envolvimento pela educação e a questão do assistencialismo

Outras questões decorrentes dos recursos financeiros gerados a partir da exploração do petróleo pela Companhia Donabentense são as possibilidades interligadas de assistencialismo e de escolarização. Essas possibilidades são levantadas e promovidas pelos habitantes do Sítio, então alçados à condição de elite econômica da sua região. Antes mesmo de perfurarem o primeiro poço, já aventam possibilidades de usar esses recursos, uma vez que “[...] dinheiro, ganhariam tanto, que a dificuldade seria saber o que fazer dele” (LOBATO, 2010c, p. 93). Narizinho diz que seu sonho seria a construção de “[...] hospitais, creches, bibliotecas, coisas de utilidade geral. Há tanta pobreza e desgraça na Terra...” (Ibidem). Dona Benta comenta essa vontade da neta estabelecendo uma comparação com Rockefeller, sobre o qual passa a dissertar, elevando o industrial norte-americano, que também estava ligado à exploração de petróleo, à condição de modelo de assistencialismo. Chega, inclusive, a chamar Narizinho de “Rockefellerzinha”61. Salienta que o instituto criado pelo norte-

americano beneficiava todos os países, sublinhando-se o fato de que “A grandiosa Escola de Medicina de São Paulo, lá defronte ao Cemitério do Araçá62, foi presente

dele” (LOBATO, 2010c, p. 93 — 94). Dessa forma, a leitura nos remete para o fato de o espelhamento nos modelos estrangeiros não se restringirem ao desenvolvimentismo, tampouco a dependência resumir-se-ia às questões tecnológicas: é preciso também que se copiem os modelos de assistencialismo.

Além disso, as relações que Dona Benta estabelece com o dinheiro advindo do petróleo parecem reproduzir antigos preceitos católicos, beirando à condenação do

61 A referência à figura de Rockefeller como modelo de generosidade também aparece em Histórias de

Tia Nastácia, no momento em que Tia Nastácia e Narizinho falam sobre a ganância dos ricos e Dona

Benta intervém da seguinte forma: “— Não generalize — observou Dona Benta. — Há os ricos ridículos, mas há também os generosos. Rockefeller não distribuiu sua fortuna em benefício do mundo?” (LOBATO, 2009, p. 77, grifo nosso).

62 Nesse trecho, há certa inconsistência na construção da personagem Dona Benta. Se, de acordo com

que é pontuado em diversas passagens das obras que compõem o universo do Sítio, ela nunca saiu do Sítio, não poderia localizar a Escola de Medicina da maneira como o faz, como se fosse conhecedora do local.

lucro, como se ele fosse capaz de trazer desgraças. Segundo a lógica da personagem, se viviam, até então, felizes no Sítio, “O acertado não é mudarmos o nosso viver. Se somos felizes, que mais queremos?” (LOBATO, 2010c, p. 164). A visão da riqueza como um peso, de certa forma, não deixa de incentivar, de certa forma, a manutenção do status quo. Isso porque, seguindo esse raciocínio, se o dinheiro é um fardo, se é nocivo, logo não há razão para não ficar apenas nas mãos daqueles que já o detém. No entanto, partindo do pressuposto de que o dinheiro precisa circular para o bem da coletividade, também resolve gastá-lo com os outros e não apenas consigo, “como fazem os maus ricos” (Ibidem), mas para “[...] beneficiar os milhares de pobrezinhos que nunca tiraram petróleo” (Ibidem, grifo nosso). O emprego do diminutivo “pobrezinhos”, na fala de Dona Benta, revela a representação do estereótipo da caridade, carregada de piedade e, de certo modo, de culpa pelo fato de ela fazer parte do outro grupo, o dos que tiraram petróleo. O uso dos recursos em prol dos desassistidos serviria, então, como uma forma de expiação da consciência. Além disso, paradoxalmente, esse auxílio seria uma forma de divertimento, como sugere Pedrinho — a exemplo do que ocorria e ainda ocorre em uma série de entidades assistencialistas. Isso pode ser constatado na seguinte fala de Dona Benta para o neto:

O maior prazer da vida é fazer o bem. Eu sempre quis beneficiar este nosso povo da roça, tão miserável, sem cultura nenhuma, sem assistência, largado em pleno abandono no mato, corroído de doenças tão feias e dolorosas. Se empregarmos nosso dinheirinho em melhorar-lhe a sorte, não só nos divertiremos, como você diz, como ficaremos com a consciência tranquila. Meu programa é esse. (Ibidem, grifos nossos)

As palavras de Dona Benta revelam, além do caráter utilitário que seu programa assistencialista assume, a postura de época frente aos habitantes do meio rural, diminuindo o valor de suas manifestações culturais e descrendo em sua capacidade de resolução de seus problemas. Retoma-se aqui, conforme já discutimos no primeiro capítulo, em outra roupagem, a mesma questão que circulou em torno do controverso personagem Jeca Tatu.

Os recursos provenientes do petróleo também serviriam, segundo Pedrinho, para melhorar as estradas de “atolagem” do país, que deveriam igualmente seguir um modelo estrangeiro: “[...] pavimentadas de concreto, com um lado para ir e outro para

vir — e uma faixa de grama no meio, como as da Alemanha” (p. 165, grifo nosso). A discussão segue apontando outros dois modelos estrangeiros a serem seguidos: na área da saúde, por meio da contratação dos melhores médicos e construção de hospitais de acordo com os modelos norte-americanos; na área da educação, com a criação de uma universidade aos moldes da norte-americana Harvard, que seria chamada de “Universidade Sabugosa”, tendo como reitor e professor de geologia o personagem Visconde. Chama-nos a atenção que, além do fato de ambos os modelos serem norte-americanos, os sábios locais, representados por Visconde, não serviram para os fazeres práticos, sendo necessária a “importação” de sábios estrangeiros. Contudo os conhecimentos do personagem serviriam para ser ensinados na Universidade Sabugosa, da qual seria reitor por pertencer à classe dominante do Sítio. Nesse mesmo contexto, salientamos o fato de se mencionar que os melhores médicos seriam contratados e não formados aqui. Portanto, percebemos, a partir desse plano desenvolvimentista, certa desarticulação entre os fazeres práticos e urgentes para a superação do atraso do país e a formação de profissionais competentes para tal empreendimento.

Por outro lado, na mesma passagem de O poço do Visconde, Narizinho menciona a ideia de “[...] criar boas escolas profissionais para esta caboclada bronca [...]”, uma vez que a personagem considera que “Eles são aproveitáveis, mas têm que ser ajudados. Por si nada fazem porque nada podem fazer” (Ibidem, grifos nossos). As palavras de Narizinho reforçam as ideias assistencialistas e de subestimação em relação aos habitantes do meio rural. Além disso, apontam para a necessidade de profissionalização de tal contingente de mão de obra a fim de melhor aproveitá-los dentro das engrenagens do capitalismo. Assim, a escolarização não serviria para o desenvolvimento integral do indivíduo, para sua realização pessoal: julga-se que suas necessidades seriam supridas simplesmente por lhe dar um lugar dentro do sistema produtivo. Esse modelo educacional, portanto, estaria a serviço da manutenção do

status quo, sem a formação de cidadãos reflexivos, mas de profissionais “aproveitáveis”. Dentre esses alunos, para aqueles “[...] meninos que mostrarem vocação para os altos estudos[...]” (Ibidem), haveria a oportunidade de frequentarem casas de ciências, as quais dariam origem, mais tarde, à citada Universidade Sabugosa. Esse mecanismo de

seleção, excludente e sexista (o texto fala em “meninos”, não em “crianças”), mostra- nos que a universidade, nesse plano desenvolvimentista, já se projeta elitizada.

Emília, por sua vez, encerra a discussão quanto aos rumos dos investimentos dos recursos com sua explanação acerca da necessidade de se educarem as formigas, uma vez que não se pode vencê-las. Elas seriam treinadas para comerem apenas as ervas daninhas, contribuindo enormemente para agricultura no país. Esse encerramento leva-nos à reflexão acerca da simbologia de tal argumentação. De um lado, temos a recorrência do tema das formigas como obstáculos à agricultura em obras de autores contemporâneos de Lobato, como o fazem Lima Barreto, em Triste fim de

Policarpo Quaresma, e Mario de Andrade, em Macunaíma, obra em que se repete a afirmação “Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são”. Na esteira dessa frase de Macunaíma, é perceptível o olhar desestruturante e até mesmo irônico de Emília frente aos planos desenvolvimentistas que se traçaram no capítulo em questão. Metaforiza a descrença no potencial de aplicabilidade e de sucesso das iniciativas planejadas por Dona Benta, Narizinho e Pedrinho, tendo em vista problemas “subterrâneos”, arraigados na nação que se projeta desenvolvida. Desse modo, a crença no sucesso de tais planos é relativizada, porém não é apenas esse momento pontual que mostra o titubeio em relação à efetividade do movimento desenvolvimentista, uma vez que se disseminam, ao longo de O poço do Visconde, os contrapontos a esse projeto, como os seus reflexos negativos, conforme aqui já apontamos, e o saudosismo em relação à vida pacata do meio rural. Além disso, o fato de o Sítio tentar manter-se impermeável às mudanças mais radicais trazidas na esteira do petróleo, já que as modificações ocorrem em seu entorno, também mostra certa reserva frente a esse desejo de desenvolvimento.

4.2.3 O Sítio como exportador de modelo humanizante: o “gomo exemplar” da laranja