• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II ENTREMEIOS DA LINGUÍSTICA APLICADA, DA ANÁLISE DO DISCURSO

2.1. A Linguística Aplicada indisciplinar enquanto uma postura ética e responsiva

2.1.2. A LA como reflexão entre o local e o global

O impacto da globalização nas vidas das pessoas se tornou claro em várias medidas e isso pode ser percebido a partir de pelo menos três aspectos. A distância espacial diminuiu, uma vez que as vidas das pessoas são facilmente afetadas por acontecimentos que ocorrem do outro lado do mundo, acontecimentos esses que, em alguns casos, muitos desconhecem. A distância temporal também está a diminuir, já que os mercados e as tecnologias se transformam em tempo real, com impactos diretos nas vidas das pessoas. Igualmente, as fronteiras nacionais também passam por um processo de desaparecimento virtual, não somente em decorrência de acordos comerciais e econômicos, mas principalmente por conta do desaparecimento gradativo de diferenças claras de normas, culturas e valores (KUMARAVADIVELU, 2006).

Feita essa inicial constatação, compreendemos que “as vidas econômicas e culturais das pessoas no mundo todo estão mais intensa e imediatamente interligadas, de um modo que nunca ocorreu antes” (KUMARAVADIVELU, 2006, p.131). Assim, é importante buscarmos refletir sobre como os efeitos do processo de globalização, bem como a relação que emerge entre os

saberes do mundo globalizado e os saberes locais influenciam, determinam e transformam os discursos que constituem o processo de ensino-aprendizagem.

Vários estudos que tratam do processo de ensino-aprendizagem concebem como indispensável que o professor seja um pesquisador de sua própria prática, e que se relacione com as teorias científicas não como se fossem saberes universais e inquestionáveis, mas sim elementos orientadores de sua prática contextualizada. Dessa ponderação, faz-se indispensável refletirmos sobre os conceitos de “saberes globais” e “saberes locais”.

Para Canagarajah (2005), os saberes globais são as teorias e práticas institucionalizadas academicamente e concebidas por cientistas especializados. Em contrapartida, os saberes locais não possuem status de conhecimento acadêmico e científico, contudo representam o conjunto de saberes gerados pelo professor por meio de suas práticas sociais no processo de ensino- aprendizagem. Os saberes locais, assim, consistem nas diversas estratégias criadas pelo professor em seu contexto específico de trabalho, ou seja, as decisões teóricas, didáticas, metodológicas tomadas por ele em sua prática cotidiana.

Canagarajah (2005) postula que os saberes locais possuem três características essenciais, são relacionais, fluidos e híbridos. Relacionais porque existem somente na sua relação e batimento com os saberes globais. São fluidos pois estão constantemente em processo de transformação e plasticidade para atender às demandas do cotidiano de sala de aula. E, por último, híbridos, uma vez que possuem em sua constitutividade elementos dos saberes globais, questão inevitável numa sociedade mundial globalizada.

Ainda que esse construto teórico tenha sido idealizado para reflexões sobre o processo de ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras, acreditamos que a dualidade “saber local” e “saber global” pode funcionar como um elemento teórico importante no desenvolvimento de nossa pesquisa. No ensino de literatura, os saberes globais podem ser associados ao conjunto das teorias literárias tradicionais, dos mecanismos de disseminação, produção e publicação de obras literárias, bem como à escolarização restritiva do cânone literário e de determinados textos e autores, autorizados em detrimento de outros tidos como não-literatura.

Lembramo-nos de Pêcheux (2006, p,55), que diz que “o fantasma da ciência régia é justamente o que vem, em todos os níveis, negar esse equívoco, dando a ilusão que sempre se pode saber do que se fala, isto é, se me compreendem bem, negando o ato de interpretação no próprio momento em que ele aparece”. Assim, entendemos os saberes globais da literatura, como essa ciência régia, canônica, fantasmagórica, que não autoriza sentidos que se configuram a partir de interpretações tidas como vulgares, banais, não acadêmicas, não canônicas, marginais.

Os saberes locais, nessa seara, representam o conjunto de ações do cotidiano didático- pedagógico do professor de literatura, bem como as diversas leituras, análises e interpretações que transgridam os arraigados saberes da crítica literária tradicional e canônica. Aqui também os saberes locais são relacionais, fluidos e híbridos: relacional pois a prática de ensino do texto literário, em nossa visão, requer também um diálogo equalizado com o cânone e com as teorias tradicionais; fluida porque demanda uma flexibilidade contextual que deve levar em conta as inúmeras especificidades do diálogo entre o alunado e questões levantadas pelo texto literário; e híbrida, uma vez que não é possível que o professor se afaste dos infindáveis saberes globais que constituem o ensino de literatura e a própria constituição da obra literária.

A partir de um inegável atravessamento entre esses saberes, Moita Lopes (2013, p.19) cita os estudos de Robertson (1995), autor que postula um mundo glocalizado:

um mundo de mobilidade, de redes digitais, de fronteiras esmaecidas dos estados-nação, de inseguranças, de ambiguidades, de desessencializações identitárias e linguísticas, de superdiversidade etc (...) convivendo lado a lado com um mundo localizado.

Nesse mundo localizado, a vida ainda se move devagar e grande parte das pessoas ainda se colocam perplexas a essas inúmeras transformações do mundo digital, na maioria das vezes, por serem excluídas dele ou até mesmo por não compreenderem novos valores simbólicos. Nesse batimento, o saber glocal emerge de uma dialética em que local e global se interpelam e se atravessam20.

Numa mesma linha de raciocínio, Kumaravadivelu (2006, p.134) estabelece que os estudos sobre glocalização colocam a homogeneização e a heterogeneização cultural como processos que ocorrem de forma simultânea, por meio de uma tensão criativa e caótica. “A transmissão cultural é um processo de dois modos, no qual as culturas em contato modelam e remodelam umas às outras direta ou indiretamente”. De certa forma, essa visão desconstrói a comum ideia de que o global sempre domina, deturpa e domina o periférico.

Esses autores estabelecem que sociedades de modernidade recente semelhantes à brasileira produzem essa atmosfera de conflitos, ou seja, a coexistência de dois mundos cientificamente tão diferentes. Nesse raciocínio, Moita Lopes (2013, p.20) postula ser tão necessária uma “desaprendizagem de crenças arraigadas na produção do conhecimento para lidar com os desafios contemporâneos”, de modo que se produzam pesquisas científicas que

20 Alguns estudiosos do processo de globalização vão determinar que existe somente uma sobreposição dos saberes

globais e, por conseguinte, uma supressão dos locais. A linha de raciocínio a qual Robertson se inscreve postula essa visão dialética.

saibam balizar esse embate (local x global) sem endossar ou ampliar os processos de exclusão social.

Kumaravadivelu (2006) cita novamente Robertson (2003) que assevera, os professores devem buscar diversas alternativas para suas aulas e disciplinas, de modo a preparar os alunos para enfrentarem o mundo globalizado. Assim, a proposta não deve ser abandonar o cânone da literatura enquanto saber global e institucional, mas sim buscar balizas que tomem as construções de sentidos canônicos como um ponto de partida, um gesto de interpretação do texto literário.

Em relação à formação de professores, Miller (2013, p.101) defende uma “postura investigativa inclusiva do formador de professores que decide aprofundar os seus entendimentos sobre a sua própria prática como formador junto com os professores em formação inicial ou continuada”. Entendemos essa proposta também como uma forma de glocalização do processo de formação de professores, em que formadores e professores em formação produzem saberes de forma colaborativa e alternativas mais próximas das necessidades, a partir do diálogo de suas experiências docentes

Nessa esfera, entendemos que esses estudos têm um papel muito importante, não somente no desenvolvimento de pesquisas que reconheçam as especificidades do global e do local, como também no fato de ser uma teoria/disciplina acadêmica de linha frente nos cursos de Letras, como parte constitutiva na formação de professores críticos e reflexivos, capazes de se inscreverem em práticas que denotem discursividades responsivas e éticas21.