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CAPÍTULO II ENTREMEIOS DA LINGUÍSTICA APLICADA, DA ANÁLISE DO DISCURSO

2.3. O signo ideológico e a literatura

2.3.1. O problema do diálogo

Por vezes a concepção de discurso dialógico leva a crer em sua oposição lógica, ou seja, um discurso monológico. No entanto o discurso tomado como monológico também se trata de uma resposta a algo, o discurso é sempre constituído pelo diálogo com diversos outros discursos, trata-se de um primado da sua concepção de linguagem e ignorá-lo é ignorar também a relação existente entre a linguagem e a vida social dos sujeitos.

Entretanto, o enunciado monológico já é uma abstração, apesar de ser, por assim dizer, uma abstração natural. Qualquer enunciado monológico, inclusive um monumento escrito, é um elemento indissolúvel da comunicação discursiva. Todo enunciado, mesmo que seja escrito e finalizado, responde a algo e orienta-se para uma resposta. Ele é apenas um elo na cadeia ininterrupta de discursos verbais. Todo monumento continua a obra dos antecessores,

polemiza com eles, espera por uma compreensão ativa e responsiva, antecipando-a etc. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 184)

Por isso há o embate teórico com a linguística saussuriana, ao demonstrar o quanto a ideologia pode determinar a linguagem e a consciência. O texto de Volóchinov questiona a visão de Saussure, chamada por ele de objetivismo abstrato28. Ao passo que a língua, para Saussure, é um objeto abstrato ideal, um sistema sincrônico homogêneo em que a existência se funda em necessidades de comunicação, para Volóchinov a valorização principal está no funcionamento real da língua, ou seja, na fala, na enunciação, por estarem interligadas às estruturas sociais.

Esse autor ainda reforça que o desenvolvimento da língua deve obedecer a uma dinâmica “positivamente conotada”, uma vez que a variação é inerente a todas as manifestações linguísticas. Além disso, contrariamente à visão saussuriana, o filósofo russo enfoca as leis externas à língua, ou seja, os aspectos de natureza social como tão determinantes da língua como as leis internas (linguísticas). Dessa forma, o conteúdo ideológico é essencial na construção da significação da palavra.

Para o autor, o objetivismo abstrato favorece, de forma arbitrária, a unicidade e prende “a palavra a um dicionário”. Assim, como já afirmamos, ele propõe uma concepção de signo ideológico, um signo vivo, móvel e dialógico, o qual a classe dominante sempre terá interesse em tornar monovalente. E se “a ideologia é um reflexo das estruturas sociais (...) toda manifestação da ideologia encadeia uma modificação na língua” (BAKHTIN, 2006, p.15). Logo, o estruturalismo saussuriano propõe “uma palavra com um único sentido e acento, ao invés da pluralidade viva de seus sentidos e acentos”. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 192)

Dessa forma, uma situação de língua, uma situação enunciativa implicará conflitos e relações de dominação e resistência, uma vez que “em todo signo ideológico cruzam-se ênfases

multidirecionais. O signo transforma-se no palco da luta de classes”. (VOLÓCHINOV, 2017,

p. 113). Dessa forma, os sentidos depreendidos de uma manifestação discursiva dependerão de fatores tais como se os interlocutores fazem ou não parte do mesmo grupo social, ocupam posições inferiores ou superiores na hierarquia social, bem como se estão unidos por laços sociais, como, por exemplo, de pai e filho, marido e esposa, patrão e empregado, padre e fiéis, entre outros.

28 Volóchinov nomeia os estudos saussurianos de objetivismo abstrato por acreditar que os mesmos postulam um

signo estanque e engessado, alheio às questões sociais e ideológicas. Compreendemos ser possível associar os procedimentos desse objetivismo abstrato aos de um ensino de literatura engessado somente nas teorias literárias formalistas e na hegemonia do cânone.

Outro aspecto de crítica em relação à linguística saussuriana é a perpetuação de procedimentos coincidentes aos filológicos. Para o autor, o estruturalismo linguístico reifica o elemento linguístico de forma isolada, como um corpus estanque, monológico, ao fazer do signo um sinal objetivo, submetido a uma norma e a regras de caráter prescritivo. Como não relacionarmos esse procedimento estruturalista às aulas de literatura que formatam os textos para fins gramaticais e/ou historicistas?

Nessa seara, esses estudos estabelecem a enunciação como o objeto fundamental de estudos linguísticos (e nós, do ensino de literatura!), compreendendo-a como uma réplica do diálogo social, uma instância linguística que não existe fora de uma verdade histórica, de um contexto social e ideológico.

Sobre o processo de enunciação, o autor diz:

A língua não existe por si só, mas somente combinada com o organismo individual do enunciado concreto, ou seja, do discurso verbal concreto. A língua entra em contato com a comunicação apenas por meio do enunciado, tornando-se repleta de forças vivas e, portanto, real. As condições de comunicação discursiva, as suas formas e os meios de diferenciação são determinados pelas premissas socioeconômicas da época. São essas condições mutáveis da comunicação sociodiscursiva que determinam as alterações das formas de transmissão do discurso alheio analisadas por nós. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 262)

Mediante essa argumentação, a enunciação não existe fora de um contexto social e, sendo assim, “o mundo interior e o pensamento de todo indivíduo possuem seu auditório social estável, e nesse ambiente se formam os seus argumentos interiores, motivos interiores, avaliações etc. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 205). Dessa forma, o signo e a situação social, ou a literatura e o seu ensino, não podem ser mobilizados fora da orientação social a qual se encontra inscrito.

Da mesma forma, ao postular o texto como objeto de estudo das ciências humanas, em

Estética da criação verbal (2011), Bakhtin coloca o homem não apenas como produtor de

textos, mas como constitutivo deles, ou seja, o locutor se constitui enquanto objeto social por meio dos textos. Logo, um texto não pode ser pensado como um discurso fechado em si mesmo. Ao mesmo tempo que é dialógico (atravessado por discursos outros já-ditos), também deve ser concebido como único e não reiterável (caráter de unicidade), produto de uma criação social, histórica e ideológica, jamais concebido fora do contexto da sociedade em que é produzido. Sobre isso, Volóchinov nos diz:

De fato, são as mesmas condições econômicas que inserem um novo elemento da realidade no horizonte social, tornando-o socialmente significativo e “interessante”; e estas mesmas forças criam as formas de comunicação ideológica (cognitiva, artística, religiosa etc.), que, por sua vez, determinam as formas de expressão sígnica. VOLÓCHINOV, 2017, p. 112)

Nesse sentido, o discurso literário, como a palavra, deve ser reconhecido como um indicador dos embates ideológicos que se estabelecem no interior da sociedade, como expressão das relações sociais. Logo, “a situação social mais próxima e o ambiente social mais amplo

determinam completamente e, por assim dizer, de dentro, a estrutura do enunciado

(VOLÓCHINOV, 2017, p. 206). Portanto, a partir das reflexões do Círculo, tomamos o discurso literário como uma enunciação social e ideologicamente delimitada.

Nessa perspectiva, os interlocutores de um discurso literário devem ser tomados como sujeitos sociais em constante alteridade, já que o Um só pode ser concebido em relação com o Outro. A própria existência do sujeito deve ser reconhecida como dialógica por natureza. Dessa forma, os sentidos de um discurso literário serão apreendidos na interação29 entre as instâncias- sujeito que o produzem (autor e professor; autor e aluno; professor e aluno, entre outros).