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CAPÍTULO II ENTREMEIOS DA LINGUÍSTICA APLICADA, DA ANÁLISE DO DISCURSO

2.2. A Análise do Discurso de Michel Pêcheux

2.2.1. O estudo da Memória

O arcabouço teórico da presente pesquisa se configura como um respaldo que se vale tanto para a reflexão construída acerca do ensino de literatura, quanto para a construção de uma episteme discursiva para o mesmo. Dessa forma, o conceito de memória foi mobilizado em duas frentes: pensado em diálogo com a perspectiva teórica indisciplinar, discursiva e subversiva que se configura nesse estudo e, ainda, como um conceito contempla as particularidades de significação que se estabelecem da relação entre a teoria discursiva abordada e os contos de Carrascoza.

O conceito de memória é abordado em diversos estudos contemporâneos, valendo-se, constantemente, de múltiplas diretrizes quanto à forma de estabelecer seus processos de retomada. Ainda que a noção de memória fundante dessa pesquisa seja o conceito de memória discursiva engendrada pelos estudos de Pêcheux (2006), desenvolveremos uma breve explanação sobre a memória em uma perspectiva histórico-filosófica, por acreditarmos que tais apontamentos são, de certa forma, constitutivos da memória que será mobilizada nas análises da presente pesquisa.

Os estudos em ciências humanas apoiam-se, em muitos casos, nas considerações de memória individual de Henri Bergson (1859-1941) ou no conceito de memória coletiva, discutido nos diversos trabalhos de Maurice Halbwachs (1877-1945). Esse último estabelece que existe uma importante ligação entre memória coletiva e memória individual e denota que uma não pode ser isolada da outra:

A memória individual, construída a partir das referências e lembranças próprias do grupo, refere-se, portanto, a um ponto de vista sobre a memória coletiva. Olhar este, que deve sempre ser analisado considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do grupo e das relações mantidas com outros meios. (HALBWACHS, 2004, p. 55)

Assim, ainda que haja a identidade entre a memória coletiva e a individual, a última é a que faz emergir as relações do indivíduo consigo mesmo, bem como reflete/refrata os ideais de um grupo, de uma instituição, de um conjunto de saberes. De maneira dialética, confirma-se o ponto de convergência entre os dois tipos de memória apontados pelo sociólogo.

Nesse sentido, a memória não deve ser concebida como um fenômeno estritamente individual, mas coletivo, e não deve ser avaliada isoladamente. Para esses estudos, a memória não depende unicamente do que é subjetivo, porque está intrinsecamente associada ao

relacionamento do indivíduo com um determinado grupo social, seja familiar, profissional, ou outro qualquer. Então, a constituição do indivíduo, tomado como sempre-sujeito, traz em sua configuração o atravessamento da memória individual e a coletiva. Se na primeira trata-se de reminiscências pessoais, a segunda é o conjunto de saberes compartilhados por um determinado grupo26.

A memória chamada de individual será aqui tomada somente como um ponto de unicidade que atravessa a memória coletiva, como nuances discursivas que fazem emergir a referencialidade polifônica de um dado sujeito. Dessa forma, lançaremos também um olhar para as narrativas, ao pesquisarmos como se configura o vislumbrar das imagens e o resgate dos guardados que interpelam a instância-sujeito personagem dos contos em estudo. Ora como meras lembranças, ora como uma constituição enunciativa que faz emergir efeitos de sentidos de uma contingência histórica específica, sendo atualizada ou esquecida de acordo com o processo discursivo, estabelecida como algo que fala sempre antes, em outro lugar.

Nos contos de Carrascoza, a memória reconfigura e preserva experiências vividas pelos personagens e faz emergir uma anterioridade histórica (FRANÇA, 2009), tomada como a sempre-presença do passado no presente, uma construção do inconsciente que, nas narrativas, é a inserção da instância-sujeito em uma discursividade de contexto social e familiar. Cunhamos o conceito de anterioridade histórica em França (2009), que representa o conjunto de enunciados (ditos ou não-ditos) que antecede a instauração de um acontecimento novo, geralmente responsável por interpelar e constituir a forma-sujeito e, subsequentemente, faz emergir uma reconfiguração enunciativa. Tal conceito está ligado a uma tríade teórica: a anterioridade histórica, o acontecimento causativo e a posterioridade histórica.

Ainda, é importante não estabelecermos, nas análises, as reminiscências das instâncias- sujeito personagens como meras retomadas do real acontecido. A ideia de que uma dada lembrança reflete o que veridicamente aconteceu deve ser relativizada, já que as instâncias- sujeito personagens que enunciam, incidem na constituição e na (re)significação dos sentidos. Lembremos aqui do conflito ético que se estabelece como nuclear em Dom Casmurro, quanto à possível traição de Capitu. Se os argumentos que poderiam confirmar o adultério são todos colocados por Bentinho, principal interessado em condenar a esposa, a veracidade das afirmações pode e deve ser questionada.

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Ao pensarmos no aluno-leitor, podemos exemplificar essa reflexão teórica. Dessa forma, o conjunto de sentidos que emergem de um discurso literário estará em diálogo com os saberes que constituem a instância-sujeito aluno- leitor. Por isso é importante um ensino de literatura que compreenda a complexidade da referencialidade polifônica do sujeito.

Sobre essa questão, Meyer noz diz que “a lembrança de um evento exige não apenas a entrada (codificação) e a retenção (armazenamento), mas também a saída. A recuperação é ajudada por indicações associadas com o evento, inclusive as do contexto em que o codificamos” (MEYERS, 1999, p.204). Assim, devemos considerar que, nas diversas lembranças desencadeadas pelas instâncias-sujeito personagens dos contos, ocorre um processo de clivagem, seleção, (re) interpretação e, ainda, distorção por parte de quem estabelece uma dada recordação. Logo, embora sejam os indivíduos/personagens que “lembram”, existe uma instância social, psicanalítica e ideológica que selecionada/interpreta/interpela o quê, como e quando será lembrado.

Em suas análises sobre Bergson, Le Goff (2003, p.471) estabelece que a noção de imagem deve ser tomada como o entremeio da memória e da percepção, ou seja, a imagem que se tem do passado é o produto do que se lembra, atravessado pelas experiências vividas pelo sujeito. Nos contos, existe uma configuração convergente que desencadeia o processo de memória discursiva, a partir dos episódios de morte.

Le Goff (2003, p.471) ainda nos diz que:

no termo de uma longa análise das deficiências da memória (amnésia da linguagem ou afasia) descobre, sob uma memória superficial, anônima, assimilável ao hábito, uma memória profunda, pessoal "pura", que não é analisável em termos de "coisas" mas de "progresso".

Logo, existe uma memória que é sugestionada até mesmo a patologias, como amnésia ou afasia. Entretanto, há uma memória profunda, complexa, que não emerge como lembranças, mas como traços de uma constituição profunda do indivíduo, no caso do estudo, da instância- sujeito personagem. Tomaremos em nossas análises tal memória profunda como constitutiva do conceito de memória discursiva.

Ainda que a perspectiva discursiva da memória seja aqui o foco, não devemos desconsiderar que é na individualidade psicológica das personagens que a memória instaura significações veladas. Assim, é a retomada ou a emergência dos momentos relacionados à morte que ativa/catalisa os processos de significação dos contos e faz instaurar um processo de regularidade enunciativa nos textos de Carrascoza. Nessa perspectiva, Le Goff (2003, p.476) nos diz que a “memória é um elemento essencial do que se costuma chamar “identidade”, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.

Nesse sentido, ao analisarmos os contos de Carrascoza (2010), ambas as instâncias de memória são percebidas. Há inúmeras lembranças do passado, de episódios familiares, mas também apreendemos a instauração de uma memória discursiva, que se faz presente ao longo das narrativas e que significa mesmo quando os personagens não as enunciam explicitamente.

A memória, nesse aspecto, será tomada na presente pesquisa como uma imagem que configura um efeito e, por conseguinte, a lembrança será uma espécie de resgate e transformação em linguagem. Um processo que se constitui como uma ressignificação ou transformação, um lugar em que o indivíduo/instância-sujeito personagem se inscreve para se avaliar, confirmar ou rejeitar eticamente algum fato ou momento de sua vida.

Dessa forma, enquanto lugar de significação do mundo eticamente construído pelos personagens, a memória discursiva é o conceito-chave para as percepções analíticas que temos dos contos de Espinhos e Alfinetes. São as lembranças imbricadas do passado (próximo, distante ou futuro) interpeladas por um processo de morte que delimitam e tomam as rédeas dos processos de significação do acontecimento da obra.

Quando os sujeitos dos contos resgatam reminiscências pessoais, ativadas por processos de morte, permitem uma infinidade de possíveis leituras da anterioridade histórica. Relacionado à morte, esse resgate permite "mostrar os escombros, as ruínas e os processos de desintegração, tornando-se ela mesma [a memória] um testemunho do passado” (DIEHL, 2002, p.15). Quando testemunham, os personagens enunciam sua infância, suas tristezas e, principalmente, os momentos vividos - ou por viver - ao lado de pessoas amadas que morreram (ou se encontram em um processo de morte física ou simbólica).

A leitura dos contos nos demonstra que rememorar as dores pela perda, ou seja, o ato discursivo de retomar a morte dos amados e de alguns sentimentos velados é determinante e constitutivo dos elementos relacionados à identidade das instâncias-sujeito que se configuram nas narrativas. Por isso, é relevante construirmos uma agenda discursiva das regularidades que eclodem dos/nos contos de Carrascoza.

Inscritos em uma dada conjuntura, os personagens são influenciados por fatores sociais, históricos, éticos, ideológicos, que interpelam/atravessam suas individualidades e, por isso, mesmo um simples fato particular e cotidiano pode produzir efeitos de sentidos por influência da memória discursiva. Logo, as lembranças relacionadas aos diversos episódios de morte são, por exemplo, socialmente cristalizadas pela memória discursiva como algo ruim, uma perda, um luto.