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CAPÍTULO II ENTREMEIOS DA LINGUÍSTICA APLICADA, DA ANÁLISE DO DISCURSO

2.1. A Linguística Aplicada indisciplinar enquanto uma postura ética e responsiva

2.1.3. O ensino de literatura e a LA: para o empoderamento das vozes excluídas

Muitos dirão que há uma grade dose de utopia neste capítulo. Ainda que seja de opinião de que não somos nada sem utopia, uma vez que é o sonho que nos faz pensar em alternativas para as questões que se apresentam nas várias esferas de nossas vidas, prefiro pensar que este capítulo compreende a LA como lugar de ensaio de esperanças. (MOITA LOPES, 2006, p.104)

Repensar a forma de fazer pesquisa e produzir conhecimento na universidade dialoga com a necessidade de discorrer sobre o papel dos saberes na contemporaneidade. Dessa forma, se as pesquisas, de maneira geral, representam a incidência do saber científico na vida cotidiana,

21 Ainda que grande parte das reflexões em LA desenvolvidas pelos autores aqui citados esteja relacionada ao

ensino de línguas estrangeiras, defendemos que esses estudos são aplicáveis à reflexão acerca do ensino de literatura.

não faz sentido que se furtem de considerar como determinantes de seu recorte os vários elementos e grupos sociais que constituem o sujeito contemporâneo.

Nesse mesmo raciocínio, acreditamos que não só as teorias utilizadas para a produção dessa tese, mas também o próprio desenvolvimento de nossas análises, precisam contribuir, direta ou indiretamente, para a proposição de alternativas de mobilidade e inserção social dos diversos grupos estigmatizados. A literatura é uma eficaz linguagem para dar voz, por exemplo, aos “pobres, os favelados, os negros, os indígenas, homens e mulheres homoeróticos” (MOITA LOPES, 2006, p.86), grupos que, historicamente, vivem à margem do ideologicamente normatizado. Afinal, para quê literatura na escola se a mesma não for capaz de contribuir, de alguma forma, para melhorar a vida dos que mais sofrem?

Para Moita Lopes (2006), a forma de produzir conhecimento na sociedade atual segue a mesma lógica de mercado, ou seja, uma visão hegemônica de um capitalismo neoliberal avassalador e mafioso, encabeçado pelos países ricos, seus bancos e suas agências diversas. Como na economia, privilegiamos em sala de aula os saberes globais, os discursos científicos “do norte”, representativos de uma elite bem demarcada.

O conhecimento tradicional - e também a literatura - segue a mesma lógica, uma vez que silencia perversamente as vozes e práticas sociais dos estigmatizados, daqueles que vivem à margem, em prol de uma visão de mundo cristalizada, que só inclui a ótica ocidental e imperialista do norte. “A esperança não está na ciência ocidentalista de teorias separadas das práticas sociais” (MOITA LOPES, 2006, p.89).

O autor ainda reitera:

A crítica à episteme ocidentalista pode ser traduzida na preocupação com que é o sujeito inscrito nela. Aqueles que foram postos à margem em uma ciência que criou outridades com base em um olhar ocidentalista têm passado a lutar para emitir suas vozes como formas igualmente válidas de construir conhecimento e de organizar a vida social desafiando o chamado conhecimento científico tradicional e sua ignorância em relação às práticas sociais vividas pelas pessoas de carne e osso no dia a dia, com seus conhecimentos entendidos como senso comum pela ciência positivista e moderna. (MOITA LOPES, 2006, p.87-88)

A literatura deve servir a essa causa. Não pretendemos reduzi-la a só um instrumento ou ferramenta de luta social, como pretexto para a politização da vida social. Mas ampliar a concepção de arte como objeto de fruição também capaz de promover o empoderamento literário, social e político dos diferentes grupos sociais, em especial aos estigmatizados.

O conceito de emancipação social aqui é diferente de sua compreensão na modernidade e no processo de ocidentalização, porque incorpora os diferentes grupos marginalizados (pela classe social, sexualidade, gênero, raça etc.), já que os fatores econômicos, culturais e políticos não podem ser separados, mas também porque não se trata de levar a verdade/conhecimento a esses grupos, mas de construir a compreensão da vida social com eles em suas perspectivas e vozes, sem hierarquizá-los.

A literatura institucionalizada, como a linguística e outros saberes acadêmicos, raramente dialoga com a cultura popular desses grupos excluídos. Logo, esses saberes globais escolarizaram a literatura, impondo-lhe obras específicas, padrões de leitura, bem como uma disseminação mercantilista do texto literário. Daí nos interessarmos tanto pela postura indisciplinar e mestiça da LA, por se constituir como um “projeto ético de renovação e reinvenção de nossa existência que as áreas de investigação têm de abraçar” (MOITA LOPES, 2006, p.89). É crucial que o ensino de literatura se indiscipline frente à teoria literária aos modelos gradeados que a reduzem a fragmentos escolarizados de textos canônicos e estanques da realidade da maioria estatística, porém minoria ideológica da população brasileira.

Pennycook (2006) reitera que o uso do termo transgressivo para se referir à LA representa a “necessidade crucial de ter instrumentos políticos e epistemológicos que permitam transgredir os limites do pensamento e da política tradicionais”. Assim como a ciência moderna, a teoria literária esconde sob o discurso de uma visão apolítica e não ideológica da arte, uma constitutividade positivista, cindida e burguesa do texto literário. Precisamos transgredir a esses aspectos também, uma vez que, sob a falácia da neutralidade científica e de uma racionalidade descorporificada, as tradicionais ciências acadêmicas, como a linguística e a teoria literária, baseiam-se num sujeito homogêneo (homem, branco, classe média, heterossexual) e numa visão despolitizada e autônoma do conhecimento e da arte.

Propomos caminhos que façam frente ao ensino tradicional da literatura, por meio de alternativas que possam emergir inclusive do diálogo entre o cânone (saberes globais) e as alternativas contextualizadas de trabalho com o discurso literário (saberes locais). Desse diálogo é que emergiria o saber glocal. Por isso, tal como a LA de Moita Lopes, acreditamos ser indispensável que o ensino de literatura se hibridize, subverta, uma vez que a clássica teoria literária não dá conta de explicar as nuances e contradições do mundo complexo, fluído, líquido e globalizado que nos interpela na vida contemporânea.

Um “conhecimento que não considera as vozes daqueles que vivem a prática social não pode dizer nada sobre ela” (MOITA LOPES, 2006, p.101). Portanto, considerar as inscrições

histórico-sócio-ideológicas dos sujeitos na produção do saber (e de seu ensino!) é uma obrigação ética de uma pesquisa acadêmica, pois toda homogeneidade esconde uma perversa essência excludente, capaz de causar sofrimento humano.

Sobre a tomada de posição da LA frente a essas questões, Moita Lopes (2013, p.16) reitera:

Se tradicionalmente a pesquisa modernista apagou o sujeito social na produção de um conhecimento positivista, quantificável, experimental, generalizável e objetivista (ou seja, modernista), o qual somente com tal apagamento se tornava possível, a pesquisa na LA em seu desenvolvimento no Brasil o coloca como crucial em sua subjetividade ou intersubjetividade, tornando-o inseparável do conhecimento produzido sobre ele mesmo assim como das visões, valores e ideologias do próprio pesquisador. Em decorrência, questões de ética, poder e política se tornam inerentes à produção do conhecimento.

Para pensarmos olhares outros para o ensino de literatura, não podemos ignorar que professores e alunos, na maioria das vezes, fazem parte das vozes apagadas, silenciadas, castradas em suas subjetividades, que possuem “corpos nos quais suas classes sociais, sexualidades, gênero, etnia etc. são inscritas em posicionamentos discursivos” (MOITA LOPES, 2006, p.103) inferiorizados pelo discurso acadêmico, pelo discurso econômico e também pelo discurso escolar.

Sustentamos que a literatura na escola deve problematizar a vida social, de modo a contribuir para que os sujeitos inscritos no processo de ensino-aprendizagem se reconheçam nos discursos da linguagem literária a partir de suas formações discursivas. Para tanto, o ensino da literatura não pode desconsiderar, por exemplo, as questões sociais e locais que constituem a comunidade, as atuais questões de gênero, a luta feminista, os inúmeros fatores que refletem a desigualdade social, os preconceitos raciais. Esses posicionamentos discursivos representam lugares sociais os quais grande parte dos alunos da escola pública se inscreve e, por isso, não podem ser homogeneizados pelo ensino escolarizado de nenhuma disciplina.

Como argumenta Moita Lopes (2006), não podemos nos furtar da obrigação ética de questionar teorias e saberes os quais, sob diversas justificativas, excluem e causam sofrimentos, bem como oferecem vantagens a determinados grupos em detrimento de outros.