• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II ENTREMEIOS DA LINGUÍSTICA APLICADA, DA ANÁLISE DO DISCURSO

2.1. A Linguística Aplicada indisciplinar enquanto uma postura ética e responsiva

2.1.1. Fundamentos da Linguística Aplicada Indisciplinar

As disciplinas não são estáticas, domínios demarcados de conhecimento aos quais pedimos emprestados construtos teóricos, mas são elas mesmas domínios dinâmicos de conhecimento. (PENNYCOOK, 2006, p.72)

Como já mencionado, um dos pilares teórico-filosóficos desse trabalho é a vertente indisciplinar, contemporânea, crítica e interdisciplinar da LA, proposta pelos estudos organizados por Moita Lopes (2006). Trata-se de um conjunto de estudos com uma tomada de posição político-ideológica, que discorre sobre o mundo real da vida contemporânea, que dialoga com teorias relevantes à formação dos alunos, por exemplo o “campo dos estudos culturais, ciências sociais, estudos de gênero e sexualidade e teorias socioculturais” (MOITA LOPES, 2006, p.14).

Sobre o caráter interdisciplinar da LA, Pennycook (2006) ressalta:

O trabalho interdisciplinar deve ser entendido não como se estivéssemos sentados à mesa da LA com um menu fixo e escolhendo o que comer (devemos começar com uma tigela de linguística e, a seguir, tentar psicologia como prato principal?), mas, ao contrário, como se estivéssemos naquele momento em um restaurante quando se está examinando o menu e um prato quente e aromático voa em nossa frente nas mãos de um garçom e me pergunto: o que estão comendo? Interdisciplinaridade tem a ver com movimento, fluidez e mudança. (PENNYCOOK, 2006, p.73)

Nesse sentido, o caráter interdisciplinar da LA ressalta a ideia de que cada contexto de pesquisa sobre o processo de ensino-aprendizagem deve ser analisado pontualmente, de modo que eventuais teorias poderão atravessar esses estudos, caso possam contribuir para a reflexão de uma prática social menos excludente. Trata-se de uma área de estudos que propõe alternativas que reflitam visões de mundo e ideologias, a partir de estudos que não colaborem com a “manutenção das injustiças sociais ao não situar seu trabalho nas contingências e vicissitudes sócio-históricas” (MOITA LOPES, 2006, p.21). Por isso nos inscrevemos nessa vertente da LA. Pensar alternativas para a realidade escolar a partir de reflexões teóricas que consideram os sujeitos inscritos nesses contextos com os agentes principais desse processo nos conforta.

Sabemos bem que muito do que se produz dentro da academia acaba por ressoar pouco ou nada na linha de frente da escola. Nesse sentido, ao defender que “politizar o ato de pesquisar e pensar alternativas para a vida social são parte intrínseca dos novos modos de teorizar e fazer

LA” (MOITA LOPES, 2006, p.22), esses estudos oferecem um terreno fértil para nossa reflexão. Constituída pelos princípios éticos da LA indisciplinar, essa pesquisa estabelece propostas para o ensino de literatura que transcendem os métodos tradicionalmente excludentes e elitistas que determinam a relação desse texto com o aluno.

O autor continua:

É assim que a LA precisa dialogar com teorias que têm levado a uma profunda reconsideração dos modos de produzir conhecimento em ciências sociais (cf. Signorini, 1998), na tentativa de compreender nossos tempos e de abrir espaço para visões alternativas ou para ouvir outras vozes que possam revigorar nossa vida social ou vê-la compreendida por outras histórias. Isso parece ser imperioso em uma área aplicada, que, em última análise, quer intervir na ou falar à prática social. (MOITA LOPES, 2006, p.23)

Desse modo, os referidos estudos rompem com LA tradicional, ao se estabelecer como uma LA “mestiça”, inter e transdisciplinar, autorreflexiva, como um conjunto de estudos que se engaja em problemas sociais os quais a linguagem tem papel determinante. Para Pennycook (2006, p.73), não se trata somente de um pluralismo inter-ou-transdisciplinar, mas ainda “um sentido mais ilícito de atravessar fronteiras proibidas, e talvez, no processo, começar a derrubar algumas dessas cercas disciplinares”. Jervis (1999) ainda ressalta que a transgressão interroga a lei, ao apontar os frequentes e arbitrários mecanismos de poder nos quais a lei se baseia para a produção de pretensões universalizantes, bem como de proibições com intenções escusas.

Esse olhar transgressivo e interdisciplinar é indispensável para os nossos encaminhamentos sobre o ensino de literatura. Precisamos derrubar as cercas disciplinares que cerceiam a literatura e pensar o discurso literário como uma enunciação essencial na vida escolar dos alunos. Um discurso literário que não exclua, formate e determine os caminhos, os autores, os sentidos.

Inscrevemo-nos, então, nessa prática problematizadora principalmente por assumirmos que os diferentes atores do processo de ensino-aprendizagem são sujeitos sociais heterogêneos que refletem/refratam visões de mundo, bem como posicionamentos ideológicos.

Nessa mesma seara, ressaltamos também o diálogo de alguns estudos da LA com o Círculo de Bakhtin, que reforça também uma postura essencialmente humanista, interdisciplinar e, acima de tudo, transgressiva. Trata-se de uma visão de linguagem que assume uma dimensão política e social e que considera as ideologias que interpelam e constituem os sujeitos, assim como as diferentes posições sociais e lugares discursivos que ocupam.

Para Molon & Vianna, (2012, p.155), “compreender a linguagem como uma prática social remete, sem mediação alguma, à afirmação do Círculo de que a realidade fundamental da língua é a interação verbal (ou interação discursiva) e que ela se dá entre sujeitos sócio- historicamente situados” Esses autores dissertam sobre a relação entre os conceitos bakhtinianos de interação verbal, signo ideológico e dialogismo, como uma rede conceitual que se estabelece como pilar para uma LA interdisciplinar e transgressiva.

Tomado como uma realidade fundamental da língua, o conceito de interação verbal é muito importante para a construção de uma postura discursiva na formação de professores e também para estabelecer reflexões acerca da realidade das salas de aula. Nesse sentido, reconhecer-se no interior do processo de interação verbal é tarefa primeira do professor de língua ou literatura. Isso porque, ao estabelecer como princípio básico que a comunicação se dá por uma interação entre sujeitos sociais, o professor alcançará uma posição responsiva e ativa e reconhecerá no seu outro (o aluno, por exemplo) um sujeito que deve transcender a passividade da recepção de informações.

Disso deve emergir o reconhecimento detalhado do auditório social (sala de aula; escola; interação professor-aluno) como constituído por sujeitos sócio-historicamente situados e munidos de posicionamentos ideológicos diversos e antagônicos. Assim, considerar as especificidades ideológicas de um dado auditório social é postular a palavra como um enunciado concreto e irrepetível. Nesse aspecto, insurgem os conceitos de signo ideológico e dialogismo como essenciais, uma vez que se o signo é o lugar de tensão ideológica, por refletir e refratar a realidade social e histórica, é também nele que se confrontam valores contraditórios, representativos do processo de luta de classes.

Logo, o professor de literatura que for interpelado teórico/didático/metodologicamente pelos princípios éticos da LA contemporânea, transgressiva e interdisciplinar, transcenderá o valor estético e escolar do texto, em busca de um alcance que permita uma formação mais humanista, filosófica e política. Ao professor, dessa forma, fica a tarefa de estabelecer um olhar mais criterioso em relação ao seu auditório social, para que o mesmo possa selecionar atitudes teórico-metodológicas, bem como textos literários que promovam a produção de discursos que desestabilizem o senso comum e que causem deslocamentos dos sentidos óbvios.

Ao teorizar sobre a formação de professores de línguas, Miller (2013, p.99-100) reforça a importância dos estudos da Linguística Aplicada contemporânea, a partir de quatro justificativas: I - Fortalecimento acadêmico para as práticas de formação de professores, já que ajuda a aprofundar o entendimento dos processos de formação, tanto inicial quanto continuada; II - Fortalecimento metodológico, pois tem contribuído para o desenvolvimento de inovações

alinhadas com a pesquisa qualitativa e interpretativista nas ciências sociais; III - Fortalecimento político no interior da academia, já que tem elevado o status institucional dos formadores e do processo de formação de professores; IV - Foco na transformação social, de ética e de identidade dos diversos agentes envolvidos em processos de formação de professores.

Da mesma forma, acreditamos que a LA contemporânea não só contribui para aqui pensarmos o ensino de literatura, mas ainda, de maneira análoga, refletirmos sobre como esses estudos podem contribuir para, na academia, formarmos professores mais preparados para trabalharem o discurso literário de uma forma a contribuir para a formação social e humanista dos alunos-leitores.

Não estamos a postular que o professor deva se debruçar sobre as teorias da LA, da AD, de Bakhtin, ou optar por trabalhar meramente com os textos “que os alunos gostem”. Mas que o docente construa, por meio do atravessamento político, teórico e filosófico dessas teorias, um equilíbrio entre a dor das leituras escolares e o gozo das escolhas prazerosas, como propõe Freire (1989).

Para tanto, é essencial que o professor possua sensibilidade para reconhecer as vozes que emergem do/no seu auditório social e que promova um incômodo íntimo (DELLI’ISOLA, 2001) em seus alunos, que saiba estabelecer projeções acerca de seu interlocutor e que, por conseguinte, seus métodos promovam um diálogo com esses sujeitos ideológicos. Acreditamos que a LA indisciplinar e contemporânea consegue mobilizar esse incômodo íntimo tanto na figura do pesquisador acadêmico, quanto, a partir do presente estudo, na almejada interpelação teórico-metodológica que esses estudos possam provocar nos alunos e professores de literatura. Nesse sentido, a proposição de um olhar discursivo e transgressivo para o ensino de literatura dialoga com esse conjunto de ideias, também por meio desse diálogo com os alguns pressupostos bakhtinianos, os quais também permeiam estudos sobre o ensino e alguns documentos oficiais da educação (PCN, por exemplo).

Sobre essa questão, Santos & Lima (2013) afirmam que:

Nas discussões sobre as mudanças no ensino e aprendizagem de língua portuguesa, desencadeadas a partir de década de oitenta, os pressupostos bakhtinianos têm contribuído para um redimensionamento das concepções que embasam as práticas pedagógicas. A ênfase sobre a forma, a estrutura, nas reflexões dos temas desenvolvidos nas aulas de língua portuguesa, tem cedido o lugar para um foco centrado na interação, na dialogicidade (…). Mesmo havendo resistência de alguns professores na efetivação dessa proposta em diferentes níveis de ensino, as contribuições dos trabalhos desenvolvidos numa vertente discursiva têm interferido na formação dos professores e nos documentos que embasam as orientações curriculares. (SANTOS & LIMA, 2013, p.2, grifos do autor)

Ainda que se trate de uma afirmação relacionada ao ensino de língua materna, acreditamos que nos cabe como argumento para demonstrar que propostas de ensino atravessadas por concepções bakhtinianas e discursivas já se desenvolvem há, pelo menos, três décadas19. Entretanto, além de existir nos documentos oficiais uma utilização acanhada de alguns conceitos, como de gênero ou de polifonia, sabemos que muitos professores não possuem formação que ofereça uma compreensão razoável da filosofia da linguagem bakhtiniana. Dessa forma, tais noções, tão caras e relevantes como suporte filosófico, são obliteradas em sua essência por documentos oficiais sobre a educação e acabam se esvaziando de sua complexidade. É comum vermos o conceito de gênero textual associado a tipos de texto, ou ainda a polifonia ser reduzida ao princípio da intertextualidade.

A proposta de uma LA contemporânea permite pensar nessas alternativas para o ensino de literatura, bem como amplia nossa reflexão acerca das tomadas de posição para os contextos de uso da linguagem literária. Assim sendo, tomamos a LA transgressiva e de inclinação ideológica como princípio primeiro da rede teórica aqui mobilizada, por combater o saber científico e intelectual como um poder opressivo e arrogante, que serve de maneira perversa aos interesses das elites, em detrimento de grupos sociais marginalizados.

A literatura não foge a essa égide, uma vez que o ensino tradicional se pauta, prioritariamente, numa normatização de um cânone literário escolar, nos critérios de valorização de obras e autores, nos estudos acadêmicos fechados em pequenos grupos, os quais reproduzem valores de uma elite acadêmica e as ideologias das classes dominantes.

Entendemos que a LA alicerça a construção de um olhar mais responsivo e responsável para a literatura, em prol dum engajamento político que propõe a luta e a resistência, e que considera as questões de classes e relações de poder como determinantes/constitutivas também da relação entre o discurso literário e a instância-sujeito aluno-leitor de literatura. Pretendemos submeter a literatura e seu ensino a esse crivo, “fazer ranger as estruturas” de um ensino tradicional que, na maioria das vezes, se ancora em uma teoria literária arraigada em princípios cristalizados e elitistas, os quais priorizam o estudo gramatical do texto, o monopólio das obras e autores canônicos, o estudo da historiografia literária, tudo isso em detrimento do próprio texto literário.

19 Evidentemente isso não quer dizer que todos os professores conhecem ou possuem formação a partir das teorias

bakhtinianas. Ainda que sejam pressupostos presentes nos documentos oficiais e bastante difundidos na comunidade acadêmica, isso não pode incorrer na ilusão de que os docentes assimilaram os estudos de Bakhtin.

Ao falar sobre a necessidade de um ensino de língua inglesa que atingisse a todos os jovens do Brasil, Rajagopalan (2013, p.159) reforça que:

eu disse milhões de jovens brasileiros, do Oiapoque ao Chuí, e não apenas os jovens de classe média e alta que se interessam pela língua inglesa por outros motivos quaisquer, dentre os quais viagens internacionais, intercâmbios, interesse pela literatura, música etc. Não tenho nada contra estes últimos, pelo contrário... minha insistência é que uma proposta de política nacional, com recursos do erário público, não pode se pautar pelos interesses específicos de uma pequena minoria.

Assim também pensamos o lugar da literatura na escola e na vida dos alunos-leitores. Um sistema educacional financiado com recursos públicos não pode produzir um saber literário que atinja somente aos alunos que já possuem uma cultura letrada em casa, que possuem acesso amplo a um acervo literário, recursos para adquirir livros, práticas cotidianas que coloquem a leitura literária como algo corriqueiro. Esses alunos são também importantes, entretanto precisam pouco do aparato escolar público para se inscreverem numa cultura letrada e literária. Para os alunos que não se inscrevem nesse seleto grupo, a escola é, provavelmente, o único lugar em que a literatura lhe será oferecida como um direito.