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CAPÍTULO III JOÃO ANZANELLO CARRACOZA E OS CONTOS DE ESPINHOS E ALFINETES

3.2. Reflexões acerca do conceito de morte

Fenômeno inevitável inerente à própria existência da vida, a morte representa, de maneira objetiva, o encerramento das atividades biológicas necessárias à sobrevivência e à manutenção de um organismo vivo. Em termos pragmáticos, há quatro concepções de morte: morte natural, causada por alguma enfermidade clínica, e as mortes não naturais, oriundas de acidentes, homicídios ou suicídios.

No entanto a relação que a sociedade construiu com esse fenômeno mudou radicalmente ao longo dos séculos. O evento, que era natural e familiar na Idade Média, passou a ser tomado como ruptura na sociedade contemporânea. Assim, a morte passou a ser temida, um tabu, um assunto posto numa zona de silêncio em que inclusive se evita falar. Medeiros (2008, p.155) reforça que “o mundo contemporâneo nega ao indivíduo a consciência de que ele vai morrer, até porque a medicina tudo faz para impedir esse processo, como se fosse dado ao ser humano viver eternamente”. O próprio luto, que antes era vivido em sua integridade, foi reconstruído pela sociedade ocidental contemporânea, devendo ser silenciado por aquele que sofre a dor da perda: “a dor da saudade pode permanecer no coração do sobrevivente, não devendo manifestá- la em público, segundo a regra atualmente adotada em quase todo o Ocidente” (ARIÈS, 1990, p. 631).

É a partir dessa relação instaurada pela sociedade contemporânea que estabelecemos um olhar discursivo para a morte, no batimento entre um acontecimento discursivo de caráter social que podem envolver situações de morte física, mas também perdas simbólicas que também causam certo luto.

Para tanto, devemos estabelecer certa reflexão sobre a morte em nosso tempo, uma vez que a morte pode também ser compreendida a partir de situações sociais que não representam o esvaecer de vida biológica de um corpo. Dessa forma, ainda que o falecer de um corpo seja uma constatação bem objetiva, a morte só poderá ser comprovada e, acima de tudo, atestada por instituições sociais chanceladas para tal. Assim, por exemplo, se o indivíduo presenciar o falecimento natural de um parente em casa, deverá chamar um profissional, geralmente uma ambulância ou o corpo de bombeiros, para que isso possa ser atestado por um médico que produzirá um laudo.

Esse documento decorrerá na emissão de um atestado de óbito. Sem tal atestado, a morte não pode ser comprovada institucionalmente, impedindo que quaisquer procedimentos jurídicos, patrimoniais e bancários sejam efetuados em nome da pessoa falecida. Caso a morte possa interpretada como um crime, homicídio culposo ou doloso, exige-se ainda a instauração de um inquérito policial e um processo judicial.

Portanto, a morte não representa somente o perecer de um corpo físico, trata-se de um fenômeno polissêmico e polifônico, uma vez que contempla, acima de tudo, a interrupção das ações de um sujeito social que interage com diversos outros sujeitos sociais de diversas esferas sociais. Nesse sentido, a morte não atinge somente os familiares, mas todo um construto de relações discursivas e sociais estabelecidas em vários lugares discursivos, como: no ambiente de trabalho, nas diversas formas de lazer, na escola dos filhos, nos comércios em que é cliente, na universidade em que estuda, nas redes sociais em que possui perfil e conta, entre outros.

O antropólogo e sociólogo francês Louis-Vincent Thomas classifica a morte em quatro tipos: biológica, psíquica, espiritual e social. A morte biológica representa a destruição definitiva das células do corpo humano, ou seja, a morte em seu sentido mais literal, física, em que o corpo não resiste a mais nenhum tratamento ou medicação.

A morte psíquica está relacionada a problemas mentais e a condutas obsessivas, em que a pessoa se sente atormentada pela angústia do fim de sua vida. Já a morte de caráter espiritual está relacionada ao discurso dos cristãos mais tradicionais, que manifestam o desejo de afastarem do inferno em busca da salvação de sua alma.

A morte social está relacionada a acontecimentos de separação, ruptura, exclusão ou perda que envolve a família e/ou comunidade. Nessa morte, o indivíduo deixa de estar inserido no modelo de vida estabelecido pela sociedade. Pode ser exemplificada com presos (principalmente os submetidos à solitária), moradores de rua, idosos em asilo, portadores de síndromes como a do pânico, entre outras. Além disso, a morte social também pode ser interpretada em um caráter alegórico, representando problemas afetivos ou traições.

Sobre isso, Ferreira (2006, p.11) nos diz que:

A nível social, a morte pode ocorrer durante o percurso existencial do ser humano, quando o mesmo decide ou é forçado a viver à margem da sociedade devido a diversos factores: incapacidade de integração, pontos de vista e conduta inteiramente opostos às normas sociais impostas, distúrbios psicológicos, perda do emprego, problemas familiares ou afectivos, alcoolismo, toxicodependência ou ser atingido por um infortúnio ou uma traição, entre outros.

A classificação e compreensão de uma morte social é muito importante para as análises empreendidas dos contos de Carrascoza, uma vez que, em muitas situações, não se trata somente da morte de alguma instância-sujeito personagem na/da narrativa, mas de uma conjuntura de morte social que interpela essas instâncias. Assim, até em contos que existe um processo de morte física, a morte social é constitutiva dos acontecimentos que compõem a narrativa.

Nos contos, as personagens que narram ou que participa dos episódios de morte sofrem perdas físicas ou metafóricas. Dessa forma, além de construirmos uma reflexão sobre a morte, é essencial discorrermos sobre o luto, conjunto de reações a uma perda significativa, usualmente relacionado ao sentimento de tristeza e pesar pela morte de alguém. Mas também podendo representar um sentimento de desgosto relacionado à perda de algo ou de alguma condição anterior (um emprego, um relacionamento, uma condição física).

O luto é um fenômeno sociocultural análogo à morte e está presente em várias situações do cotidiano. Além do luto relacionado à morte de uma pessoa próxima, sente-se a morte de um ídolo famoso pelos telejornais, a morte fictícia do protagonista de um filme, novela ou série, a morte do personagem de um livro, a morte representada em uma tela de um pintor expressionista, a morte de um avatar em algum jogo virtual ou rede social. Sente-se também a morte de um ideal político, a morte de um casamento dos sonhos, a morte de um projeto profissional, a morte de um sonho a ser conquistado, a morte.

Nesse sentido, se entendemos que são os episódios de morte dos contos de Carrascoza que instauram, reestabelecem e deslocam os processos de memória discursiva, é relevante construirmos um breve exercício de interpretação acerca desses já-ditos. Desse modo, o esquema busca esquadrinhar elementos que constituem um processo de memória discursiva da morte que permeia a sociedade contemporânea, capitalista, cristã e ocidental30:

30 Tal processo de memória discursiva da morte contempla um olhar histórico-sócio-ideológico que, de certa forma,

transcende o acontecimento da obra. Assim, processos de memória discursiva que eclodem como singularidade e convergência das análises dos contos serão descritos no capítulo V.

Figura 5: Memória discursiva da morte.

Fonte: O autor.

O esquadrinhamento desse processo de memória discursiva da morte não determina todas as fronteiras de sentidos que emergem da morte nos contos, mas estabelece um importante prospecto inicial acerca da relação de sentido que a nossa sociedade estabelece com a morte. Dessa forma, outros processos de memória discursiva diretamente vinculados ao acontecimento da obra de Carrascoza serão descritos nos próximos capítulos desse estudo.

Nesse sentido, os episódios de morte dos contos representam momentos de fragilidade emocional, de perda, de superação e, principalmente, de reconfiguração da instância-sujeito que se inscreve, por exemplo, na discursividade do luto. Assim, os elementos vinculados à memória da morte não buscam esvaziar as possiblidades de sentidos, mas fazer funcionar as engrenagens dos dispositivos de análise discursiva que permitem o desvelar de inúmeros efeitos de sentido.

MEMÓRIA DISCURSIVA DA MORTE Causa dor, ausência e sofrimento Produz processos de amadureci- mento É injusta para os jovens e um descanso para os idosos Instaura o luto e pode produzir traumas É um processo inevitável na vida Provoca sentimento de perda Desencadeia lembranças e memórias Acontecimen- to misterioso