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CAPÍTULO II ENTREMEIOS DA LINGUÍSTICA APLICADA, DA ANÁLISE DO DISCURSO

2.3. O signo ideológico e a literatura

2.3.2. O dialogismo e a teoria do discurso

De modo a discorrermos possíveis atravessamentos teóricos entre os estudos do Círculo de Bakhtin e de Pêcheux, iniciamos essa seção com os dizeres de Guilherme (2013), ao buscar estabelecer esse diálogo:

Estou compreendendo ‘confluências epistemológicas como a possibilidade de se lançar um olhar para duas correntes teóricas singulares, mas que em alguns momentos constroem percepções convergentes acerca de determinados conceitos e noções. Isso não significa, portanto, postular que Pêcheux tenha lido Bakhtin e nele se ‘sustentado’ para propor sua teoria do discurso (GUILHERME, 2013, p.260).

Nesse sentido, reforçamos a postura de Guilherme em seu texto Bakhtin e Pêcheux:

atravessamentos teóricos, ao buscarmos reconhecer Bakhtin como um referencial teórico

inquestionável da filosofia da linguagem que pode ser tomado como constitutivo dos estudos do discurso estabelecidos por Pêcheux.

29 Tomamos como interação a própria noção bakhtiniana de interação verbal, como uma relação entre

A aproximação entre os estudos do Círculo de Bakhtin e os do discurso já estabeleceu intensos debates na academia. Sobre essa discussão, inscrevemo-nos na tomada de posição de Brait (2006, p.9-10):

Ninguém, em sã consciência, poderia dizer que Bakhtin tenha proposto formalmente uma teoria e/ou análise do discurso (...). Entretanto, também não se pode negar que o pensamento bakhtiniano representa, hoje, uma das maiores contribuições para os estudos da linguagem, observada tanto em suas manifestações artísticas como na diversidade de sua riqueza cotidiana. Por essa razão, mesmo consciente de que Bakhtin, Volóchinov, Medvedev e outros participantes do que atualmente se denomina Círculo de Bakhtin jamais tenham postulado um conjunto de preceitos sistematicamente organizados para funcionar como perspectiva teórico-analítica fechada” ainda que “o conjunto das obras do Círculo motivou o nascimento de uma análise / teoria dialógica do discurso (...).

Da mesma forma, a nossa intenção aqui é tão-somente reforçar que os estudos do Círculo tomam os saberes de uma forma viva, a partir de “um corpo de conceitos, noções e categorias que especificam a postura dialógica diante do corpus discursivo, da metodologia e do pesquisador.” (BRAIT, 2006, p.29)

Assim, inicialmente, reconhecemos que o princípio do dialogismo pode ser tomado como constitutivo da noção de heterogeneidade, tão caro aos estudos da AD pecheutiana. Bakhtin e seu Círculo pode, ainda, ser considerado uma voz importante na constituição do conceito de discurso (intradiscurso), como um amalgama de manifestações enunciativas, constantemente atravessado por vários outros discursos (interdiscurso). Em síntese, toda manifestação discursiva é sempre um já-dito em outro momento, mas também um jamais-dito numa dada situação única.

Em relação ao conceito de discurso, as teorias divergem um pouco, mas ainda assim é possível estabelecer relevantes pontos do contato. Para Bakhtin, “o discurso se constitui na alteridade entre vozes plenivalentes, ou seja, entre vozes que dialogam sem que um sobreponha a outra” (GUILHERME, 2013, p.264). Já nos estudos de Pêcheux, o discurso deve ser compreendido em sua historicidade, por meio das relações interdiscursivas e concebido como uma materialidade da ideologia, sob a ótica dos processos de interpelação.

No entanto, há pontos importantes que convergem e colocam esses olhares em diálogo. Ambas concepções de discurso estabelecem o atravessamento de fatores externos ao dizer. Sob a ótica do diálogo com o outro ou da interpelação das formações ideológicas, o discurso é atravessado por sentidos sociais e ideologicamente marcados.

O objeto do discurso de um falante, seja esse objeto qual for, não se torna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado, e um dado falante não é o primeiro a falar sobre ele. O objeto, por assim dizer, já foi ressalvado, contestado, elucidado e avaliado de diferentes modos; nele se cruzam, convergem e divergem diferentes pontos de vista, visões de mundo, correntes. O falante não é um Adão bíblico, só relacionado com objetos virgens ainda não nomeados, aos quais dá nome pela primeira vez (BAKHTIN, 2011, p.299- 300).

Assim, é possível estabelecer essa relação constitutiva, uma vez que ambas perspectivas teórico-filosóficas concebem o objeto linguístico vinculado às instâncias sociais e ideológicas. Para Bakhtin, o signo ideológico tem significação apenas em sua materialização no interior do auditório social. Para a AD, a materialidade linguística também só significa quando vinculada com suas condições de produção.

Guilherme (2013, p.266) nos diz, ainda, que a tese de Bakhtin acerca do dialogismo “pode ser percebida como aspecto constitutivo da noção de formação discursiva”. Segundo a autora, podemos perceber isso nas palavras de Bakhtin, quando o mesmo diz ser relevante determinar:

o peso específico do discurso retórico, judicial e político, na consciência linguística de um dado grupo social em uma dada época. Além disso, é necessário considerar sempre a hierarquia social da palavra alheia que está sendo transmitida. Quanto mais intensa for a sensação de superioridade hierárquica da palavra alheia, tanto mais nítidas serão suas fronteiras e menos penetrável ela será pelas tendências comentadoras e responsivas. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 261-262)

Logo, cada manifestação discursiva, em um dado grupo social, obedece a uma hierarquia ideológica que determina a “rigidez” das fronteiras desse discurso. Quanto maior o valor hierárquico de uma enunciação para um grupo social, menos atravessamentos esse discurso sofrerá. As fronteiras de que fala Volóchinov podem ser tomadas como um atravessamento constitutivo da formação discursiva (FD) pecheutiana,

na medida em que funcionam como aspecto fundador para a tese de Pêcheux de que a formação discursiva é a matriz do sentido, ou seja, é o lugar da constituição do sentido, acrescentando, porém, que toda formação discursiva representa, na linguagem, a formação ideológica que lhe é correspondente (GUILHERME, 2008, p.60).

Pêcheux postula a FD como o espaço de constituição dos sentidos e que determina a luta de classes, a partir de uma dada formação ideológica e de um dado posicionamento histórico-sócio-ideológico. Assim, ainda que o espaço da FD não seja passível de fronteirização, existe um arquitema que se sobressai no interior de uma FD.

No entanto, sabemos que o tema não é reiterável pela discursividade. O que apresentamos é a significação articulada pelo interdiscurso em um dado processo discursivo, de acordo com as tomadas de posição das instâncias-sujeito inseridas nesse processo. Dessa forma, se nos estudos do Círculo a instância de significação advém do signo ideológico em dialogismo, em Pêcheux lê-se que o sentido se instaura no interior das formações discursivas.

Outro ponto de encontro entre tais teorias é a relação construída entre as estruturas sociais e o processo da enunciação. Se nos postulados do Círculo, o social envolve os indivíduos que exercem funções de sujeitos nas relações dialógicas de uma dada interação verbal, na teoria de Pêcheux as condições de produção, de ordem histórico-sócio-ideológica, permeiam o processo enunciativo. Ao ocupar um dado lugar social o sujeito se inscreve – e é inscrito – em formações discursivas.

A concepção do “outro” que se estabelece nos estudos do Círculo também pode ser considerada como constitutiva da AD, pelo pensamento de Pêcheux. Esse “outro” reflete a ideia de que a língua é o reflexo das relações sociais dos falantes, o “um” só existe em interação com o outro. Logo, todo enunciado é réplica de outro dito anteriormente. Esse diálogo entre vozes remete ao termo psicanalítico “alteridade”, emprestado por Pêcheux. No processo dialógico os indivíduos se interpelam em um processo de devir, daí aludirmos à noção de alteridade.

Para Pêcheux (1997), o inconsciente é um vestígio de linguagem que advém da historicidade interna do sujeito. Assim, ao se manifestar, o inconsciente é interpelado por uma dada ordem histórico-sócio-ideológica que o coloca em alteridade descontínua. Sob a recusa de “qualquer metalíngua universal supostamente inscrita no inatismo do espírito humano, e de toda suposição de um sujeito intencional como origem enunciadora de seu dizer” (PÊCHEUX, 1997, p.311), a alteridade da AD pecheutiana coloca o sujeito do discurso como um sujeito atravessado pelo inconsciente.

Nesse sentido, acreditamos que esses estudos fazem emergir uma possibilidade sociológica de reconhecer a língua, a literatura, o discurso literário e o seu ensino como instrumentos de luta, capazes de promover transformações sociais. Tomar o discurso literário a partir da concepção de signo ideológico significa também afirmar que a literatura deve ser ensinada sob a égide da interação verbal e de uma percepção da possibilidade heterogênea dos

processos de significação e construção dos sentidos. O discurso literário é, assim, uma instância linguística em que se desenvolvem os embates da luta de classes.

A noção de palavra nos permite tomar a literatura não somente como um sistema estético-formal, mas a partir de um sistema de valores sociais que também constitui o discurso poético e literário. Como o signo ideológico e o discurso de Pêcheux, o ensino de literatura que daqui emerge também se edifica a partir de elementos e condições sociais, bem como do horizonte ideológico e axiológico dos locutores (autores, professores, livros didáticos) e do seu auditório social (leitores/alunos).

Como afirma Brait (2006, p.29):

a pertinência de uma perspectiva dialógica se dá pela análise das especificidades discursivas constitutivas de situações em que a linguagem e determinadas atividades se interpenetram e interdefinem, e do compromisso ético do pesquisador com o objeto, que, dessa perspectiva, é um sujeito histórico.

Tal afirmação endossa a importância desse diálogo, bem como justificativa a nossa inscrição nesses estudos, uma vez que tomamos a literatura enquanto uma manifestação discursiva que precisa ser escolarizada a partir de práticas de letramento que considerem as discursividades e as instâncias-sujeito inscritas no processo de ensino-aprendizagem como determinantes para a construção de sentidos e de um ensino de literatura mais responsivo e responsável.